Mais um sábado, final de semana corrido, e de volta ao seu dia habitual a coluna “Sobretudo”, assinada pelo publicitário Affonso Romero.

Em u mmundo onde cada vez mais a imprensa enfoca as coisas ruins do dia a dia, texto leve e agradabilíssimo sobre tudo o que gostamos e nos dá prazer. Imperdível.

As coisas boas da vida

Durante a vida inteira, vi o filme A Noviça Rebelde algumas dezenas de vezes.  Umas cem, talvez. Realizado em 1965, ano anterior ao meu nascimento, e considerado um dos últimos grandes musicais da fase de ouro do gênero em Hollywood, o filme estrelado por Julie Andrews é um clássico da minha e outras gerações. Fui percebendo, com o passar dos anos, que outros malucos, mais jovens ou mais velhos do que eu, também eram espectadores seriais daquele musical. A cada lançamento em nova mídia (VHS, DVD, Blue-ray), ou a cada aniversário importante da produção, a cada documentário ou exibição na tevê, uma irmandade de fãs tinha nova oportunidade de rever a obra.

No meu caso, houve um evento em especial que me fez ver e rever, escutar e reescutar alguns trechos do filme mais vezes até que a média desses malucos. Meu pai, que já atuou profissionalmente em teatro, passava por uma experiência administrativa num clube semi-falido do subúrbio carioca. Tentava buscar alternativas para que o clube tivesse algum novo faturamento além do eventual aluguel de quadras e campos esportivos. Uma campanha de retenção e aquisição de sócios, uma reforma no salão de festas, alguns bailes e, finalmente, o salão estava pronto para receber um grande acontecimento: um show de talentos e variedades.  Entre muitos números, um elenco de filhos e filhas dos amigos do meu pai foi escalado para interpretar a canção Do-re-mi, a cena em que a Noviça Maria ensinava aos filhos do Capitão as belezas da música e, em seguida, levava-os a cantar pelas ruas de Salzburgo.

Nós, obviamente, dublamos a música. Um dia desses, volto a este tema da dublagem, que já foi moda no Brasil muita antes de ser descoberta como uma arte travestida. Bem, dublamos a Julie Andrews (representada brilhantemente por minha quase-prima Cristina Couto) e os filhos do capitão, e é com um pavor retrocedente que eu assumo que eu era uma das “crianças tirolesas” sobre o palco. Aos dezoito anos de idade. Dezoito !!!

O trauma poderia ter me afastado da horda de seguidores do filme mas, surpreendentemente, aquela overdose de Do-re-mi fez eu me envolver ainda mais naquilo. Interessante que todos os adolescentes e crianças que passaram juntos por aquele vexame, e se reuniram compulsoriamente para ver a mesma sequência de cenas dezenas de vezes até serem capazes de repeti-las no palco, se tornaram ou se mantiveram fãs daquele musical, pelo menos pelo tempo que ainda mantivemos contato.

Para não dizer que o trauma não me deixou sequelas, até hoje eu evito a tal cena. Comprei recentemente o filme na edição especial para DVD que contém a entrevista com todos os atores (a mais jovem das crianças é uma cinquentona: Christopher Plummer, o ator canadense que interpretou o Cap.Trapp, fará 81 anos em dezembro e foi recém indicado a um Oscar), já vi o filme mais algumas vezes, mas pulo a cena do ‘Do-re-mi’.

Desde aquela época, minha canção favorita – sem trocadilho – é ‘My Favorite Things’, da cena em que a Maria recebe em seu quarto as crianças apavoradas pela chuva com relâmpagos e canta sobre as coisas preferidas na vida, e o poder que estas coisas têm sobre nossos ânimos.

A letra, quase pueril, fala de pingos de chuva sobre rosas, tortas de maçã, flocos de neve e garotinhas em vestidos brancos (opa!) que perfaziam a extensa lista de preferências da inocente babá. É uma enorme tolice, mas tolices fazem sentido em musicais adocicados, e é aí que está a graça toda. Musicais são um universo à parte, são a magia do cinema (ou do teatro) elevada à décima potência porque, se você se permitir, vai chegar ao meio do espetáculo sem nem perceber que deveria haver uma orquestra inteira acompanhando o mocinho e a mocinha aonde eles fossem, porque nenhuma declaração importante ou diálogo amoroso passa sem uma canção e um bailado.

Musicais entram e saem de moda no cinema (recentemente, Nine foi destaque), nunca deixaram de ocupar espaço no teatro americano, e estão em grande momento no eixo teatral Rio-São Paulo. Vi recentemente a montagem de A Noviça Rebelde que esteve no Teatro Alfa (distante de tudo, mas excelente casa) com Kiara Sasso (ótima) e adorei, apesar de me ter sido impossível pular a parte do Do-re-mi.

Mais uma vez, gostei mais de My Favorite Things. Além de simbolizar a mágica e a leveza do musical à moda antiga é um tema ternário, jazzístico. Não por acaso, de todo o score original de The Sound of Music (o título do filme e da peça em inglês), de autoria dos reis Rogers e Hammerstein, a canção mais regravada por artistas de diversas épocas e estilos é justamente a minha favorita. Ouçam, sempre que possível, a versão cheia de balanço da eterna Sarah Vaughan.

Vim hoje para casa e o computador pensando sobre a coluna e sobre as minhas coisas favoritas na vida. E fiz mentalmente a minha pequena lista, que vou tentar reproduzia aqui. Para começar, eu também gosto de meninas em vestidos brancos, mas certamente esta minha preferência é num sentido totalmente diverso do mencionado pela Noviça.

Gosto de temas ternários jazzísticos, e prefiro os standarts do olimpo Gershwin-Porter-Berlin. Se forem defendidos por gente como Dexter Gordon, Chet Baker, Dizzie, Bird, Evans ou pela voz do Sinatra, do Bennett ou das grandes damas negras como Ella, Sarah, Nancy Wilson e Billie Holiday, a coisa chega perto do ideal. O que talvez explique o meu apreço pelo talento mais comercial da Diana Krall, porque ela pode ser uma versão diluída de um pouco de tudo isso e ser ainda, e simultaneamente, a garota num vestido branco.

Tom , Menescal e Piazzolla fazem o contraponto sul-americano e a JazzSinfônica, como eu comentei aqui na última coluna, é a possibilidade de reunir isso tudo num só pacote.  Apesar de curtir demais música ao vivo, meu favoritismo pessoal ainda é por um HD cheio de arquivos de mp3 tão diversos quanto possível e um earphone plugado nos ouvidos, indo de lá para cá no play-list, cortando músicas ao sabor da impaciência, voltando trechos, ouvindo faixas repetidamente à exaustão. Minha relação com a música é caótica e o mp3 foi a invenção do século para mim. Incrivelmente, poucas coisas me conduzem mais facilmente à paz de espírito do que percorrer esta estrada caótica por sons e canções.

Gosto, ainda, de músicas mântricas, mas nada de som indiano ou exótico. Gosto de mantras pop, mas não os eletrônicos, que eu acho geralmente uma chateação sem fim. Falo de coisas mais finas que podem entrar em looping eterno, canções-viagem como A Rã, de João Donato. Ou Odara, de Caetano (na época em que Caetano valia à pena) ou, em outro extremo da lista, Kashmire, do Led Zeppelin. Pensando bem, esta última é declaradamente um tema indiano e para as outras já couberam bem versões eletrônicas. Ou seja, no final, qualidade é coisa difícil de delimitar.

Mudando um pouco da audição para o paladar, gosto de misturar sabores e saberes. Gostos novidadeiros são sempre necessários, sejam novos vinhos, cervejas ou alimentos. Quando posso, vou para a cozinha fazer novas misturas no meu pequeno caldeirão. Ou ainda, ir a um bom restaurante a quilo, colocar muitos e muitos ingredientes básicos no mesmo prato e testar as combinações e sequências ao paladar.

Há um restaurante a quilo excelente no Centro financeiro de São Paulo, o Nova Opção, e almoço por ali quando passo na área. Esta semana, misturei aspargo fresco e em conserva, cogumelo paris, salmão, costelinha grelhada de tambaqui, azeitona azappa, tomate cereja e mais umas duas dezenas de minúsculas porções e me servi daquilo em combinações de dois ou três ingredientes. Delícia. Talvez comparável a um pote inteiro de sorvete Häagen-dazs de macadâmia.

Gosto do conhecimento. Gosto de descobrir coisas, ler sem compromisso, de bula de remédio a dissertações inteiras. Isso tem sabor e substância. Mas há também o conhecimento empírico, o andar sem rumo por uma nova cidade, descobrir as cores e jeitos de um povo.

Por fim, gosto de uma boa conversa. Falar e calar horas a fio. Já fiz isso muito com os amigos, hoje estou num círculo cotidiano bem menor. Por muitos dias, passo minha horas de descanso só com a Mara, minha esposa. É que foram tantos anos de desencontro que a gente se dá a este luxo da companhia quase exclusiva por um fim de semana inteiro, às vezes.

Se eu tivesse que reinventar a letra de My Favorite Things para uma noite de chuva particular teria que contar para mim mesmo uma estória em que eu pudesse ouvir minhas músicas preferidas, em frente a uma lareira, na companhia da Mara e da Pandora (nossa Llhasa), experimentando novos sabores, conversando e calando horas a fio.

E, ainda assim, faltaria tanta coisa que eu teria que ser dois ou três, de tantas coisas imperdíveis a vida dá de opção: a companhia dos  amigos, estar perto do meu filho Eric, o calor dos meus pais, debater pela internet, preguiça de manhã sem compromisso, queijo brie até enjoar, vitórias do Flamengo de virada com Maracanã cheio, mojito, sonhar dormindo ou acordado…

E pensar que, nos meus dias cinzas, eu acho a vida uma coisa chata. Ora, ora, chato sou eu quando me faço esquecer das minhas “favorite things”.