Mais uma sexta feira, e mais uma coluna “Cinecasulofilia”, assinada pelo cineasta, crítico e professor da matéria Marcelo Ikeda. Hoje a coluna analisa o novo filme do cineasta – e analista político dos mais toscos e reacionários – Arnaldo Jabor. São dois textos entrelaçados.

Como sempre, publicada em parceria com o blog de mesmo nome.

A Suprema Felicidade

Pobre Jabor! A Suprema Felicidade é um filme comovente. Não que isso o faça excepcionalmente bom, não é este o caso. Por outro lado tampouco é o caso de esculhambar o filme pela participação um tanto duvidosa de Jabor como cronista de O Globo, um pseudo-sucessor de Paulo Francis. Nem uma coisa nem outra. A questão é que a melancolia do projeto de A Suprema Felicidade deve ser vista como um resquício de uma trajetória do próprio cinema brasileiro dos últimos vinte anos.

Isso fica claro quando vemos as declarações do Jabor. Na coletiva de imprensa para o lançamento do filme no Rio, Jabor falou aos jornalistas sobre o que estava em jogo com o filme. Tomo como base a interessante matéria de Pedro Martins Freire para o Diário do Nordeste (ver aqui). Pedro vai ao ponto em sua matéria sobre o filme quando diz “Jabor conversou com jornalistas sobre temas que iam além de seu mais recente longa-metragem. Solícito e sorridente, o cineasta fez questão de dar atenção a todos, mas salientava sua satisfação com as perguntas fora do “roteiro”.”

O que são as tais perguntas “fora do roteiro”? Qualquer oportunidade para falar do que está em jogo com o filme: uma espécie de carta de intenções, uma espécie de muro das lamentações de não estar filmando há quase vinte anos, um certo pedido de desculpas, um certo receio de ser considerado traidor. Para Jabor, o cinema é angustiante, o cinema mata, o cinema é destruidor. Ele precisava viver, pagar as contas. Disse que o jornalismo é fascinante pelo imediatismo, de ver realizado um produto final a cada dia, a cada semana, e não de quatro em quatro anos, quando muito, no caso de um filme. Ou seja, Jabor não queria falar propriamente sobre o filme em si, mas sobre suas intenções, sobre sua própria trajetória pessoal.

Mas Jabor se engana em relação a um conjunto de pontos e a fragilidade do seu discurso é muito clara. Ele se engana quando diz que o tema de seu filme NÃO é o passado, e se engana que o cinema mundial hoje está em crise, pois “os cineastas não conhecem mais o mundo”. Pobre Jabor! Ele que se engana! Se engana já que, se por um lado Jabor acompanhava atentamente o mais frondoso cinema dos anos sessenta (Fellini, Antonioni, Malle, Truffaut, etc.), ele, com uma declaração como essa, mostra, mostra estar completamente desantenado do que vem acontecendo no cinema no Brasil e no mundo. Mostra desconhecer o cinema de Jia Zhang-Ke, de Hou Hsiao-Hsien, de Lisandro Alonso, de Carlos Reygadas, de tantos outros. O “cinema contemporâneo” é essencialmente um cinema que abraça o mundo de hoje, um mundo em transformação, através de um cinema que vê a crise da expressão e da narrativa clássica como um sinal de oportunidades, um cinema ético que se coloca de frente para o mundo, com todas as dificuldades dessa opção.

Com isso, quero dizer que as principais dificuldades de A Suprema Felicidade são todas de encenação, ou seja, de como encenar, de como dar forma a uma determinada ideia. De um lado, podemos pensar essa tendência como uma certa ansiedade em filmar, no arroubo um tanto desordenado de cenas que se relacionam de uma forma pouco orgânica. De outro, uma enorme dificuldade em concentrar-se no presente, na cena em si. Jornalista, o Jabor de A Suprema Felicidade avança mais no campo das intenções do que no da realização. Preso às referências do musical americano e do cinema de Fellini, Jabor se perde na névoa do filme que poderia ter feito há vinte anos e se esquece da principal matéria-prima de um cinema que se propõe a falar do presente: olhar para o mundo.

A grande chave de elucidação da posição de Jabor é o personagem de Nanini, não à toa o mais encantador de todo o filme. Uma espécie de bon vivant que vive sem culpas as alegrias do presente, ainda que sempre temporárias. “Estar alegre, nunca feliz”. A Suprema Felicidade é uma tentativa de expiação do passado recente de Jabor, de sua carreira de cineasta abortada por opção própria, ou – se quiserem assim acreditar – pelas dificuldades do próprio Brasil. Jabor diz que deixou o cinema para não enlouquecer, mas vários de seus personagens são loucos, bêbados ou variantes de um certo estado de sonambulismo.

Ao final, há a síntese de toda esta carta de intenção, uma despedida melancólica e comovente. Nanini, quase como um ritual de morte, dança à beira do mar, imaginando como se estivesse num show de gafieira. Imagina o show de gafieira como um musical de Hollywood visto pelas chanchadas brasileiras, só que agora numa produção de R$10 milhões, com apoio da Globo Filmes. No fundo, dança só, na noite escura, de costas para o presente. Imagina seu mundo passado e não tenta conhecer as casas noturnas do presente, os jovens do presente. Não tenta falar com seu neto, mas apenas que “ele também já amou”, e a lhe contar sobre seu passado. “Estar alegre, nunca feliz”. É com esse ritual de passagem para a morte, uma “chanchada fúnebre” que Jabor encerra o seu comovente filme. Pobre Jabor!

mais sobre Jabor

Eu entendo perfeitamente quanto Jabor diz que fez seu filme não interessado no passado, mas no presente. Mas é como se Jabor não estivesse interessado no “presente”, mas apenas no “presente dele”, isto é, A Suprema Felicidade não é um filme jovem, é um filme velho. Ela olha para o presente de uma perspectiva pouco alinhada com o presente, mas com o passado. Ele olha para o presente com um olhar passadista.

Isto não é uma mera questão de idade (Zhang-Ke tem trinta e poucos anos; Jabor, sessenta e tantos). Penso por exemplo no filme de Nolot: um velho (ele próprio) que olha para o presente com melancolia e se lembra do passado. Acontece que Nolot não tem um olhar passadista, pela forma como ele olha para o seu presente, ou seja, pelas suas soluções de ENCENAÇÃO. Tudo no filme de Nolot se reflete numa forma ÉTICA de encenar (de se “autoencenar”) DE FRENTE.

Em suma: enquanto Jabor encerra seu filme com seu personagem dançando numa gafieira imaginada, de costas para o presente, Nolot prefere fazer seu personagem (no caso, ele mesmo, ator-autor-personagem) entrar no Pigalle travestido de mulher, ou seja, uma “gafieira do presente”, REAL, que ele nunca teve coragem de entrar (o “bar dos negros” de Clube dos Cafajestes…). Nolot abraça esse presente, consciente de toda a dificuldade dessa opção, de toda a fragilidade, a precariedade, e de sua própria decadência física, psicológica, emocional. Abraça seu desejo (mórbido, doentio, pervertido, libertador, esperançoso, redentor) DE FORMA ÉTICA E DE FRENTE, sem se esquivar de si mesmo, mesmo que doa.

Jabor prefere que não doa. Não quer mais sentir dor voluntariamente. Prefere o imediatismo do jornalismo e viver com mais conforto. Entendo perfeitamente, e isso fala não só de si próprio mas (o que me interessa propriamente) DE UMA TRAJETÓRIA DE UM BRASIL E DE UM CINEMA BRASILEIRO.

Acontece que dói do mesmo jeito. Viver o tempo todo sob o efeito da morfina. Talvez doa até mais. Eu só sei que EU (moleque jovem) – até mesmo pelas decisões recentes que tomei em minha vida – prefiro tentar entrar no Pigalle.”

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