Os recentes acontecimentos do Rio de Janeiro, teoricamente atribuídos a traficantes praticamente incomunicáveis no interior do Paraná – escrevi sobre o assunto na última terça feira – lançam luzes sobre tema polêmico e que precisa ser melhor analisado, sem pré-conceitos e especialmente sem hipocrisia: a política para as drogas.

A política habitual para o setor é a da proibição do consumo e da repressão pura e simples à venda. Tal política vai desde os agricultores, passando pelo refino ou fabricação – no caso da cocaína ou drogas sintéticas – distribuição, venda e consumo. Entretanto, o aumento da violência, do tráfico e do consumo lançam dúvidas sobre a eficácia desta política.

Vamos por partes.

A produção

Maconha e cocaína/crack são derivados de espécimes vegetais, alvo de cultivo: a “cannabis sativa” e a coca, respectivamente. O Brasil não produz quantidades significativas de coca, cultivada em larga escala no Peru, na Colômbia e na Bolívia. Mas produz maconha, em especial no “Polígono da Maconha”, região localizada no estado de Pernambuco.

A política norte-americana de erradicar plantações de coca na Colômbia mostrou-se absolutamente desastrosa. Não houve apoio no sentido de se oferecer aos agricultores uma opção de plantio economicamente rentável, optando-se pela colcoação dos mesmos na cadeia. Resultado: áreas maiores controladas por grupos como as FARCs, que vêem no cultivo e no transporte uma forma de renda para financiamento de suas atividades.

Ressalte-se, também, que a coca é parte da cultura nacional da Bolívia, onde a folha da planta é utilizada, mascada ou em chá, para amenizar os efeitos da massacrante altitude de cidades como La Paz, Potosi e Oruro. É bastante complicado se erradicar tais culturas sem alternativas de renda factíveis através de outras culturas.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado aos produtores de Pernambuco. Optou-se pela saída fácil da cadeia, ao invés de se estabelecer estímulos para a produção de alimentos “legais”. Ou seja, parece claro que o caminho para se inibir a produção é menos a repressão e mais o estabelecimento de alternativas econômicas aos agricultores.

Refino ou Fabricação

A maconha não é objeto de estudo neste caso, pois basicamente ela é seca e prensada. A cocaína e o crack passam por processos químicos de maneira a transformar a folha de coca em uma pasta básica, depois refinada e misturada para se transformar em pó ou pedras – no caso do crack.

Isto pressupõe algum capital, algum conhecimento de processos químicos e acesso a produtos utilizados nesta transformação. No caso de drogas como o ecstasy a produção é realizada totalmente fora do país, para cocaína e o crack o país importa parte do produto na forma de pasta básica – o refino em si é feito em território nacional e próximo de pontos de venda ou rotas de tráfico.

Não há controle da compra de produtos químicos por parte das autoridades sanitárias, o que já seria um início de combate efetivo ao processo. Mas ainda persiste-se em políticas de fechamento de refinarias da droga.

Distribuição

O Brasil não produz cocaína ou drogas sintéticas. Portanto, há alguma espécie de “rota de importação” ilegal, para que possa o produto adentrar o país. Além das longas extensões de fronteira sem o menor policiamento, parece claro que há algum tipo de burla à fiscalização nos aeroportos para que os produtos – em especial os entorpecentes sintéticos – possam entrar livremente no Brasil.

Este é outro ponto claramente subestimado pelas autoridades policiais em sua política de repressão a qualquer preço.

Venda

Temos aí um grande episódio de hipocrisia. Sabem-se os pontos de venda, os usuários sabem, a Polícia sabe, e… funcionam quase sem serem incomodados. Obviamente que a corrupção policial exerce um papel importante nesta relativa liberdade de venda dos produtos, e recaímos em um problema que já discorri aqui um par de vezes: uma Polícia que não sabemos, honrosas exceções de praxe, de que lado está.

Pior: como diz o “Sangue Azul” e outros livros voltados ao tema, há casos de políticos e comandantes de batalhões como verdadeiros donos do tráfico nas comunidades, o que inclui um outro componente: a falta de vontade política para manter a política de combate efetivo. Como estabelecer uma asfixia à venda se temos relações de poder que se financiam e se locupletam da receita destes produtos ?

Consumo

 
Antes de mais nada, discordo radicalmente de uma corrente que diz que “o viciado financia o tráfico” e, especialmente, “que viciado deve ir preso”. Explico.

Como explanei rapidamente nas linhas acima, há toda uma estrutura de produção, refino, distribuição e venda que é combatida de forma absolutamente inadequada – minha vontade era escrever outro termo, mas… A questão não é a demanda que gera o tráfico, mas a demanda ser abastecida por uma estrutura à margem da lei.

Por outro lado, deixemos uma vez mais de sermos hipócritas: todo mundo sabe que na Zona Sul, em redutos de alta classe, fuma-se maconha e cheira-se pó de forma ostensiva sem que haja o menor incômodo por parte das autoridades. Também, vai o soldado ou o cabo prender alguém ? Além da Justiça soltar – rico no Brasil só vai preso se atrasar pensão alimentícia – nunca se sabe se o sujeito em questão tem um pai poderoso que pode arruinar a vida profissional do pobre policial que agiu de acordo com a lei.

O ex-Chefe de Polícia Civil do Rio de Janeiro Hélio Luz cunhou duas frases que resumem bem o que eu escrevo acima: “Ipanema brilha à noite”, sobre o consumo de cocaína pelas classes mais abastadas; e “a lei é feita para o crime até 1 000 reais. Daí em diante, é sigilo bancário”, explicando a injustiça da Justiça brasileira.

Na prática, prender viciados somente vai encarcerar usuários de classes baixas, negros em especial. Em um sistema prisional como o nosso, que é muito mais um depósito de gente do que regenerador e recuperador, na prática o viciado estará fazendo a faculdade de “Tráfico de Drogas”, transformando-se de usuário em vendedor – e outras graduações na “empresa do pó”.

Algumas Idéias

O quadro é este que apontei acima. Confesso aos leitores que não tenho opinião formada sobre a liberação ou não do consumo – pelo menos da maconha, de menor grau de devastação orgânica – mas elenco abaixo algumas idéias que podem e devem ser levadas em consideração em um debate sobre o assunto – que precisa ser feito:

Liberação e venda controlada – liberar a venda, estritamente controlada, com impostos altos e preço caro?
 

Penas alternativas – prender não adianta. Talvez valesse a pena instituir sanções alternativas, como trabalho sócio-educacional ou memso a internação em clínicas para tratar o vício;
 
A questão da repressão – da forma como está colocada hoje, a política de repressão à venda e ao consumo de droga está fadada ao fracasso. Algum tipo de alteração na política há de ser feita a fim de tornar mais eficiente e menos hipócrita o combate ao tráfico, se for este o caminho adotado;
 
Alternativas ao produtor – como vimos no início, há de se fornecer em especial ao produtor de maconha incentivos e garantia de renda a fim de que se torne economicamente viável a troca de plantio;
Reformas nas Leis e no Judiciário – parece claro que o arcabouço legal do Estado brasileiro é inadequado para enfrentar a questão. Urge uma atualização e simplificação das leis referentes ao tema e sua adaptação em caso de eventual descriminalização ou liberação. Isso, sem contar a estrutura extremamente injusta do Judiciário brasileiro.
Menor Corrupção – bom, não adianta nada se combater a venda e o consumo de drogas se maus policiais apreendem produto e o revendem a favelas rivais. Ou se temos chefões da Polícia como verdadeiros donos de morros.
Estou longe de esgotar o assunto aqui, mas aproveito estes dias tensos no Rio de Janeiro para conclamar os agentes públicos e formadores de opinião a um debate sem preconceitos e em cima de argumentos lógicos sobre o tema.
(Fotos: O Dia e O Globo, pela ordem)

6 Replies to “Algumas notas – e hipocrisias – sobre o combate às drogas”

  1. Meus comentarios:

    1) Usuario nao vai mais preso. No maximo – e raramente – eh condenado a pena alternativa;
    2) Sou contra a legalizacao (jah fui a favor) mas posso admitir, dado o elevado consumo. Seja lah o que for, eh preciso dissociar o debate da legalizacao da maconha da questao da violencia
    e criminalidade, pois uma coisa pouco tem a ver com a outra. Tabaco, por exemplo, eh legalizado e tem intensa atividade criminosa no seu entorno, tanto pelo contrabando quanto pelo roubo de carga (a cada dia, 3 caminhoes de cigarros sao roubados por dia no RJ);
    3) Ha pelo menos uma decada o comercio de drogas eh soh um componente do crime organizado – o grande negocio eh o controle territorial, como mostrado no filme Tropa de Eliete
    4) Ao contrario do alardeado, o crime no RJ eh desorganizado e descentralizado, o que dificulta o seu combate, pois as liderancas sao facilmente substituiveis.

    Walter Monteiro

  2. Boa lembrança do Walter. Usuário não vai preso, o que não reprime a venda.

    Se alguém quisesse reprimir a venda, a venda teria de ser reprimida nos usuários também (o livro SuperFreakonomics diz isso e eu concordo!), pois sem demanda, a oferta encalha e estes têm de buscar outras maneiras (pôr fogo em carros e ônibus para fazer chantagem, assaltar cidadãos, sequestrar…) de arrecadar recursos.

    Se o usuário não é tratado como criminoso, financiador do tráfico, então estou com o FHC. Que se libere a droga, que se libere a venda, afinal, tabaco faz tanto mal e é liberado, certo? A diferença é só a aceitação social.

    Mas, que fique claro, liberar ou não a droga NÃO resolverá o problema da violência. Violência vem de falta de oportunidades E má índole. Porque falta de oportunidades mais da metade da população do país sofre. Nem por isso somos uma nação de assaltantes.

    Só de corruptos…

  3. Desde quando o usuário vai preso? E é fato sim que quem consome, seja o playboy da zona sul, seja o marginal da favela, faz parte dessa cadeia do tráfico e financia sim a bandidagem.

    Sou totalmente contra a liberação da venda das drogas, o estado talvés seja até mais corrompido que os traficantes, e seria um atestado de incompetência do governo.

    E ainda, ok, libera a venda, acaba com o tráfico, mas para onde irão os bandidos? Eles irão evaporar? Sumir? Vão virar cidadãos bons, ou vão pra fila do desemprego?

    Claro que não, são bandidos, vão procurar outros meios de se manterem.

    Sou totalmente contra uma espécie de indenização ao produtor da maconha, que absurdo.

    Ainda, todos sabemos qual a fronteira que vem a cocaína, e lá da Bolívia, e o que o governo federal faz? Absolutamente nada, enquanto o Evo Morales continua aumentando sua plantação de coca e os países vizinhos tomando na toba.

    E quando me apresentarem uma outra fórmula para combater o tráfico e as drogas que não seja a repressão, me avisem.

    A guerra nunca vai acabar, mas não é por causa disso que vamos deixar de combater e liberar tudo. Se for assim, que libere o assalto a carros, afinal esse crime nunca vai acabar, ou libere a pedofília, afinal esse crime nunca vai acabar, oras.

  4. Oi Migão!
    Também não tenho nada a declarar pq é assunto que exige especialidade e muito conhecimento, vc que é local, pode falar e emitir uma opinião verdadeira dos fatos.

    Pois bem,o que acho lamentável é a forma pela qual a imprensa-globo- mostra este tipo de acontecimento para “todo o Brasil”.
    Não estou contra a tal emissora até pq sei que o ela precisa informar mas me parece que eles perdem a linha na hora de prestar serviço. Quem mora aí sabe do jeito, como e aonde acontece essas ações. As vezes, a impressão que dá é que todos os cidadãos precisam andar com coletes a prova de balas feito os respórteres. Isso que é explorado pela Tv não é o Rio de Janeiro é sim, um problema do tráfico que precisa ser combatido nas regiões específicas e bem como vc escreveu nos pontos em que os bandidos estão perdendo o poder.
    Por exemplo, é desnecessário a chata da Ana Maria Braga ficar 1h mostrando a favela em um programa de culinária e que se diz nacional. Isso sem contar as besteiras ditas por ela que a toda hora perguntava ao Rodrigo Pimentel qual seria a fórmula mágica para controlar a bandidagem ao mesmo tempo que tentava acalmar a população do Brasil,enfim, uma xarope de quinta, rsrsrsrs
    No mais, adoro o Rio pq é sim uma cidade maravilhosa.
    :)

  5. Alvíssaras, de volta uma das mais estimadas comentaristas !

    É exatemente essa a precepção que também tenho, e vou mais além: a emissora em questão age muito mais como um partido político que como um órgão jornalístico.

    quanto ao anônimo capixaba do comentário anterior, digo apenas duas coisas:

    1) se precisa sim estabelecer algum tipo de alternativa atraente economicamente para desincentivar o cultivo. Senão a escolha será entre cultivar a maconha/coca ou a fome – ou um subemprego nas cidades, quando os há;

    2) sua comparação com assaltos e pedofilia é improcedente, até porque o viciado só faz mal a ele mesmo. o fato é que a política de repressão atual se encontra falida por ineficaz;

    abraços

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