Nosso “Samba de Terça” de hoje volta a 2010 e a um samba que será lembrado aqui muito mais pela façanha que empreendeu e o simbolismo de sua vitória que propriamente pela qualidade do samba ou sua perenidade.
Falo da União da Ilha do Governador, escola do bairro onde moro e pela qual adquiri um carinho todo especial.
A escola havia retornado ao Grupo Especial, o Olimpo do Samba, após um longo e imerecido exílio na Segunda Divisão do samba carioca. Foram oito longos carnavais, onde em pelo menos quatro ocasiões a escola poderia perfeitamente ter vencido o desfile e retornado: 2003, 2005, 2006 e 2008. Somente em 2009 a escola havia alcançado o seu objetivo e voltado ao seu lugar.
Para o carnaval de 2010, a escola insulana se conscientizou de que somente com nomes de peso poderia lutar contra uma incômoda maldição: desde 1998 que uma escola abrindo o desfile de domingo não conseguia se manter no grupo.
Mais: de 2003 para cá a escola que vinha do Grupo de Acesso era mandada inapelavelmente de volta para o segundo grupo, inclusive com algumas injustiças gritantes – Santa Cruz em 2003 e o Império Serrano em 2009 são dois bons exemplos. Era uma missão quase impossível.
A escola contratou a campeoníssima carnavalesca Rosa Magalhães, que havia sido demitida da Imperatriz Leopoldinense após dezenove anos de serviços prestados à escola da Leopoldina. Esta propôs um enredo sobre a história de Dom Quixote de La Mancha, traçando um paralelo entre a inglória luta do personagem de  Cervantes com o desafio da tricolor insulana para se manter entre as grandes. Nas palavras da sinopse:
“Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia um fidalgo. Tinha em casa uma ama e uma sobrinha. Orçava em idade, o nosso fidalgo, pelos cinquenta anos. Era rijo de compleição, seco de carnes, enxuto de rosto, madrugador e amigo da caça… 

É pois de saber, que este fidalgo, nos intervalos que tinha de ócio, que eram muitos, se dava a ler livros de cavalaria com tanto empenho e prazer, e era tanta paixão por essas histórias, que chegou a vender parte de suas terras para comprar livros de Cavalaria. O que mais admirava era os “Os quatro de Amadis de Gaula”, primeiro livro de cavalaria que se imprimiu na Espanha. 

E o pobre cavaleiro foi perdendo o juízo. Sua imaginação foi tomada por tudo o que lia nos livros – feitiçarias, contendas, batalhas, desafios, amores e disparates inacreditáveis. Foi assim que acudiu-lhe a mais estranha idéia , que jamais ocorrera a outro louco nesse mundo. Pareceu-lhe conveniente fazer-se cavaleiro andante, em busca de aventuras e viver tudo o que havia lido sobre o assunto”. 

Assim começa a saga de um cavaleiro que se tornou imortal. Escrito por Miguel de Cervantes, a princípio era uma crítica aos romances de cavalaria. Porém sua importância foi além dos limites que imaginara. É considerado o primeiro romance da era moderna e escolhido como o melhor livro já escrito até os dias de hoje. 

Voltando ao nosso herói, ele escolheu um nome, Quixote de la Mancha, batizou seu magro cavalo de Rocinante, tomou um vizinho, lavrador pobre e bastante simplório, como seu fiel escudeiro. E para cavaleiro andante nada mais lhe faltava a não ser uma dama. Foi então que se lembrou de uma aldeã por quem já fora enamorado, embora ela nunca tenha sabido, chamada Aldonza Lorenzo. Pôs-lhe então o nome de Dulcinéia del Toboso. 

Assim, armado e montado em Rocinante, acompanhado pelo escudeiro Sancho Pança montando seu burrico russo, Dom Quixote resolve sair em busca de aventuras, que devo dizer não foram poucas. 

Investiu contra os moinhos de ventos, achando que eram gigantes, obra do grande feiticeiro Fristão, tomou rebanho de ovelhas por exércitos inimigos, e fez o mesmo com uma manada de touros. De um barbeiro, levou-lhe a bacia dourada, pois achava que era o elmo de Mambrino, colocou-a na cabeça e esta bacia passou a fazer parte de sua indumentária enferrujada e antiga, pertencente a seu bisavô. 

Enquanto Dom Quixote se aventura pelo mundo, sua sobrinha, ajudada por amigos, resolve destruir todos os livros de cavalaria dele e bloqueia a porta do seu escritório, para parecer que esta sumira como que por encantamento. No afã de leva-lo de volta para casa, o noivo da moça se disfarça de cavaleiro da Branca Lua e desafia Quixote para um torneio. Caso ele perdesse, teria que se refugiar em casa por um período de um ano, esquecendo-se das aventuras de cavaleiro andante. 

Quixote é vencido por seu oponente e, como era fidalgo de palavra, volta para casa, para júbilo de todos, e aos poucos vai recobrando a sensatez e esquecendo-se das aventuras do grande D. Quixote de la Mancha. 

“Quixote encanta pela loucura da luta por ideais dos quais a razão desistiu. Os humanistas domesticados pela razão cínica viraram técnicos em acomodação”. 

Quixote, como Cervantes, foi-se em agitação criativa e penúria material. Quatro séculos após a sua vinda, restam o quixotesco de anedota, frases divertidas, fugaz admiração. Do ideal, apenas a glória do derrotado. Venceu o pragmatismo de Sancho. 

Mas vale a pena ler, quimeras são sempre divertidas, a infância ou a loucura ainda mora na essência das nossas almas quixotescas… 

“Sonhar,
Mais um sonho impossível 
Lutar
Quando é fácil ceder
Negar quando a regra é vender…
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão”.

Rosa Magalhães
Carnavalesca

Bibliografia consultada: 

– Dom Quixote de la Mancha – de Miguel de Cervantes – Ilustrações de Gustave Doré – Tradução – Viscondes de Castilho e de Azevedo – Lello e irmão editores – Porto – 2 volumes – s/data

– Dom Quixote de la Mancha – de Miguel de Cervantes, tradução de Ferreira Gullar – editora Revan – 2002

– Artigo – Quatro séculos do maluco beleza – Alcione Araújo – Revista Argumento número 8 pág 117

– Sonho impossível – Musical Mano of la Mancha – de Dale Wasserman, Joe Darion, Mitch Leigh – tradução Chico Buarque de Hollanda.

O samba escolhido é fruto de uma junção entre duas composições. Quem acompanhou a disputa desde o início garante que a soma das composições teve motivos políticos, a fim de acomodar correntes que auxiliavam a agremiação. ‘Mumunhas’ de disputas…
A escola foi a primeira a desfilar domingo de carnaval deste ano, 14 de fevereiro. Depois de dois anos desfilando pela escola houve um problema e tive de me contentar em assistir do Setor 3.
A União da Ilha fez um desfile com extremo bom gosto em fantasias e alegorias, embora estas últimas não tivessem tamanho muito ampliado. A bateria sustentou bem o ritmo e permitiu à escola um bom desfile, apesar dos problemas para a entrada de dois carros.
Na apuração da Quarta Feira de Cinzas, a surpresa: referendando o bom desfile da escola, e contando com o péssimo desfile da Unidos do Viradouro – e seus problemas políticos – a União da Ilha obteve o décimo primeiro lugar, com 293,8 pontos. O Branca Lua, inatingível, estava vencido.
Sem dúvida alguma é uma lição para todos nós – eu inclusive: nada é impossível. Nossos “Brancas Lua” podem ser invencíveis agora, mas com perseverança temos totais condições de superar nossas barreiras e alcançar nossos objetivos.
Por outro lado, muitas vezes desistimos de nossos sonhos em favor de conveniências outras…
Vamos ao samba e, abaixo, o “esquenta” da escola neste ano.

Autores
Grassano, Gabriel, Márcio André, João Bosco, Arlindo Neto, Gugu das Candongas, Marquinho do Banjo, Barbosão, Ito e Léo

Puxador
Ito Melodia

Voltou a Ilha
Delira o povo de alegria
Nessa folia sou fidalgo, sou leitor
Cavaleiro sonhador
Num mundo é de magia
Vou cavalgar no Rocinante
Meu escudeiro é Sancho Pança
Se Dulcinéia é meu amor
Quem eu sou?
Sou Dom Quixote de la Mancha


O gigante moinho me viu deu no pé
O povo grita olé
Nesse feitiço tem castanhola
A bateria hoje deita e rola


Vesti a fantasia, fui à luta
Venci manadas, rebanhos
Fiz de uma bacia, meu elmo de glórias
Meus livros se perderam pela história
Enfim, fui vencido pelo Branca Lua
Voltei, pra casa esquecendo as aventuras
No tempo ficou, os meus ideais
Quimeras são imortais

A Ilha vem cantar
Mais um sonho impossível… sonhar
Quem é que não tem, uma louca ilusão
E um Quixote no seu coração

One Reply to “Samba de Terça – "Dom Quixote de La Mancha – O Cavaleiro dos Sonhos Impossíveis"”

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