Hoje, Enredo é o quesito que mais se aproxima de um resumo de todo o desfile. Ele exige um forte sentimento do julgador de pertencimento ao universo das escolas de samba pois para um bom julgamento, é importante saber como o desfile é feito, toda a ritualística que envolve a festa e a carga cultural contida nela. Se o julgador pouco compreende esses pontos, talvez não entenderá o que está passando na frente dele e achará tudo lindo, distribuindo notas 10, ou aplicará descontos de forma totalmente descabida. 

Felizmente, hoje temos um júri bastante integrado à festa e tivemos um bom julgamento do quesito, mesmo que talvez 3 dos 4 julgadores pudessem ter sido ligeiramente mais exigentes em alguns pontos e aplicado um pouco menos de notas 10 e mais alguns 9,7 e 9,6.

Módulo 1

Julgador: Arthur Nunes Gomes

  • Império – 9,8 (concepção 4,9 e realização 4,9)
  • Grande Rio – 10
  • Mocidade – 9,8 (concepção 4,9 e realização 4,9)
  • U. da Tijuca – 9,9 (concepção 4,9)
  • Salgueiro – 9,7 (concepção 4,8 e realização 4,9)
  • Mangueira – 10
  • Tuiuti – 9,8 (concepção 4,8)
  • Portela – 9,9 (realização 4,9)
  • Vila Isabel – 10
  • Imperatriz – 10
  • Beija-Flor – 9,9 (concepção 4,9)
  • Viradouro – 10

Arthur é daqueles julgadores que, após algumas críticas desta coluna em seus primeiros anos, está melhorando a cada ano. Ano passado já tinha feito um bom caderno e este ano escreveu boas e pertinentes justificativas. Dentro do seu caderno, a dosimetria das notas ficou nítida. O único porém é o 10 para o enredo da Vila Isabel, que tinha uma quantidade considerável de problemas bem apontados pelos julgadores dos módulos 2 e 4. Acredito que se o sarrafo para o 10 é um enredo óbvio e com falhas de representação, esse limite precisa ser repensado. Fica a dica para o julgador em seus próximos julgamentos.

Além disso, em um ano em que a disparidade entre a relevância, concepção e realização de enredos ficou evidente no comparativo entre as coirmãs. uma escala de notas que para no 9,7, não dá a justa diferenciação entre os diferentes trabalhos realizados pelas escolas no quesito. Neste ano creio que o piso no quesito enredo poderia tranquilamente ficar em 9,6. Talvez essa supressão na escala de dosimetria inclusive explique o 10 da Vila Isabel.

Em relação ao desconto da Unidos da TIjuca, ele apontou que o setor 5 estaria deslocado do fio da narrativa, já que por ser algo mítico deveria estar logo após o início da escola que fala da mitologia indígena da origem da baía para dar uma “melhor distinção entre as dimensões reais e simbólicas”.

Aqui eu entendi o ponto do julgador na escrita da justificativa pois também foi um setor que me incomodou. Em relação à situação em si, como será algo que o Johnny Soares irá explorar com detalhes no módulo 3, explicarei lá. Porém, talvez as palavras usadas para passar seu ponto de vista talvez não tenham sido as melhores, podendo deixar a impressão para alguém menos técnico de um certo  “eu acho que seria melhor assim”.

Por fim, ressalto o perspicaz olhar do julgador para a ala da Portela sobre o desfile de 1972, Ilu Ayê, que segundo ele “pareceu genérica e não valorizou a magnitude do antológico desfile de 1972”. Por um acaso, desde que olhei essa fantasia no livro Abre-Alas tive exatamente a mesma sensação. Ilu Ayê se destaca por ser um dos poucos enredos totalmente “afro” da história da Portela, é até possível argumentar que seja o único exclusivamente “afro” da história da escola. Uma fantasia toda chapada em um azul escuro não passou um pingo da africanidade necessária para contar essa parte do enredo. 

Módulo 2

Julgadora: Carolina Vieira Thomaz

  • Império – 9,7 (concepção 4,8 e realização 4,9)
  • Grande Rio – 9,9 (concepção 4,9)
  • Mocidade – 9,6 (concepção 4,7 e realização 4,9)
  • U. da Tijuca – 9,7 (concepção 4,9 e realização 4,8)
  • Salgueiro – 9,6 (concepção 4,6)
  • Mangueira – 10
  • Tuiuti – 9,8 (concepção 4,8)
  • Portela – 9,8 (concepção 4,9 e realização 4,9)
  • Vila Isabel – 9,9 (concepção 4,9)
  • Imperatriz – 10
  • Beija-Flor – 9,9 (concepção 4,9)
  • Viradouro – 10

Pelo segundo ano consecutivo, Carolina foi a melhor julgadora do quesito na minha visão. Mais uma prova que apenas currículo não define a qualidade de um julgador. Em um ano em que os julgadores de Enredo tiveram um mão mais leve, ela foi a única que teve a coragem de baixar a dosimetria das piores escolas no quesito para o 9,6, os únicos do quesito, além de ter sido bastante criteriosa com as notas 10 dando apenas 3 delas, justamente para as 3 escolas que saíram com 40 no quesito.

Mais uma vez, ocorreu com a Grande Rio o que ocorreu com a Portela ano passado, só a Carolina observou o mesmo que eu para chegar a conclusão que a nota correta para o enredo da Grande Rio era 9,9. Acredito que este ano houve alguns problemas no desenho de certas fantasias da Grande Rio que, com excesso de informações, acabou não passando a mensagem pretendida inicialmente. Foi exatamente a justificativa usada pela julgadora para retirar o décimo da Grande Rio, observando essa falta de comunicação nas alas 16, 18, 19 e 20.

Também acho importante ressaltar que as justificativas tanto das duas notas 9,6 como das duas notas 9,7 foram bastante detalhadas e pertinentes, justificando perfeitamente a dosimetria utilizada em todo o caderno. Ressalto aqui o erro da Mocidade – percebido pela julgadora – que ao propor um paralelo não demonstrado entre as peças de xadrez e a obra surrealista de Mestre Galdino deu a entender que a invenção do xadrez nordestino em miniatura era dele, quando na verdade é de outra artista, Marliete Rodrigues, citada em outra parte do enredo.

Por fim, acredito que a única possibilidade de discussão neste caderno seja a justificativa da Beija-Flor. Eu entendi e concordo com o ponto ressaltado pela julgadora que o enredo da Beija-Flor tentou ser tão abrangente que acabou não explorando com a profundidade necessária nenhum deles. Mas da forma como a justificativa foi escrita, abre a possível discussão do “se o enredo estava abrangente, por que se descontou?”. Talvez o problema ficasse mais claro se a justificativa deixasse claro que o excesso de abrangência prejudicou a formação da interconexão entre os diversos temas abordados, o que prejudica a coerência e a coesão do enredo e justifica a perda do ponto.

Ao mesmo tempo, é muito preciosismo exigir esse tipo de filigrana de um julgador após o cansaço de 2 dias tensos e ainda tendo que escrever seu caderno debaixo de um som pesado de funk vindo do camarote ao lado, que ainda fazia tremer a estrutura metálica do módulo de julgamento. Além disso, reforço que o problema apontado é merecedor de desconto, tanto é que a escola não recebeu sequer uma nota 10 no quesito, mesmo com a benevolência dos outros 3 julgadores.

Por mais Carolinas e Fernandos (de Alegorias) com seus olhares atentos e criteriosos no júri.

Módulo 3

Julgador: Johnny Soares

  • Império – 9,8 (concepção 4,9 e realização 4,9)
  • Grande Rio – 10
  • Mocidade – 9,7 (concepção 4,9 e realização 4,8)
  • U. da Tijuca – 9,8 (concepção 4,9 e realização 4,9)
  • Salgueiro – 9,8 (concepção 4,9 e realização 4,9)
  • Mangueira – 10
  • Tuiuti – 9,8 (concepção 4,8)
  • Portela – 10
  • Vila Isabel – 10 
  • Imperatriz – 10
  • Beija-Flor – 9,8 (concepção 4,9 e realização 4,9)
  • Viradouro – 10

Inicialmente, o que falei para o Arthur no módulo 1, vale para Johnny neste módulo. Faltou uma “prateleira” extra na dosimetria, faltaram mais 9,7 e 9,6 e provavelmente nisso sobrou um 10 discutível para a Vila Isabel. Além disso, creio ter havido erros de dosimetria nas notas do Salgueiro e da Mocidade, como explicarei abaixo, além de uma nota dez polêmica para a Portela.

Quanto às justificativas em si, a “discussão conceitual” antiga que travo com este julgador quanto às diretrizes de julgamento de Enredo e à despontuação dobrada pelo mesmo problema, algo que relato em vários anos anteriores deste julgador, continuaram este ano.

Para começar, exatamente igual ao que pontuei na justificativa dele para a Imperatriz no ano passado, neste ano ele despontuou o Império em realização para a “falta de criatividade da representação do elemento cenográfico ‘O que é o Amor?’ que apresentou grande desnível visual assim como o tripé ‘Caciqueando no Fundo de Quintal ao pé da Tamarineira’…” (grifos nossos).

Mais uma vez tenho que ressaltar no caderno deste julgador que a criatividade está nos critérios do quesito Enredo, mas do ponto de vista de contar a história, não na criação plástico-visual da mesma do ponto de vista artístico, como parece estar justificado. A plástica, do ponto de vista da arte, não deve ser julgada em Enredo, mas em Alegorias e Adereços ou em Fantasias, cabendo ao julgador de Enredo julgar apenas a comunicação do enredo por meio das mesmas. O quesito enredo deve apenas se apegar a transmissão da mensagem; não se está esteticamente bonito ou feio ou se segue ou não padrões de conceito de arte.

Pior que, como muito bem ressaltado em todas as outras 3 justificativas do Império, o que não faltou nesse Enredo foram problemas, seja de conceito ou realização. O julgador não precisava apelar para o ”desnível visual” para despontuar. 

O exemplo é muito simples: o próprio tripé apontado, apesar de teoricamente simbolizar a tamarineira, não tem qualquer elemento que passe a mensagem de uma tamarineira. Isso é um erro de realização de enredo, não o “desnível visual”, que não pertence aos critérios de julgamento de Enredo. Tanto é que nenhum outro julgador sequer escreveu justificativa próxima disso para nenhuma escola.

Depois, na Mocidade, ele mais uma vez incorre no que chamamos em Direito Penal de “bis in idem”, ou seja, dupla penalização pela mesma falta. Ele retira ponto da Mocidade em conceito porque o setor 3 tem argumentação frágil e não consegue elucidar a correlação entre o surrealismo de Galdino e as peças de xadrez com a proposta se mostrando hermética e complexa.

Logo depois em realização, ele retira ponto do mesmíssimo setor 3 porque as fantasias não traduzem seus significados na avenida, sendo de difícil compreensão. Mas esse é exatamente o problema do conceito do setor 3 que ele mesmo levantou em concepção! Ou seja, ele apenas descreveu o mesmo problema de outra forma. Problema também foi o que não faltou no enredo da Mocidade como muito bem apontado pelos outros julgadores, não precisava usar esse subterfúgio.

Ele ainda finaliza a Mocidade dizendo que em “praticamente todas as alas… não ajudam a representar a estética do barro, o que tornou o desfile algumas vezes sem sentido e monótono”. Ele mesmo diz que um problema relativamente grave ocorreu na escola praticamente inteira e ele só retira um décimo de realização? Aqui está, na minha opinião, um claro erro de dosimetria deste caderno.

Por fim, é complicado entender como o enredo do Salgueiro recebeu a mesma nota de Tijuca, Império e Tuiuti. Creio ter havido mais um problema de dosimetria aqui. Em concepção ele “retira um décimo devido à falta de um fio condutor para unir os argumentos da história cuja narrativa foi construída de forma fragmentada, o que dificulta o encadeamento e prejudica a coesão da roteirização e o seu entendimento. O homenageado que inspira o enredo (Joãozinho Trinta) não acompanha o desenvolvimento dos setores, sendo apenas lembrado na Comissão de Frente. Contudo o Abre-Alas, sinaliza que seus devaneios oníricos seriam a conexão do enredo. Infelizmente, essa conexão não é clara ou percebida.”

Ele descreve um problema grave de estrutura argumentativa que permeia absolutamente todo o enredo da escola e descumpre de uma só vez todos os 3 critérios de julgamento de concepção e retira apenas 1 décimo? Acredito que esta seja a raiz do problema que deságua nessa nota 9,8. Aplicando o correto desconto de 0,2 ou 0,3, iria para uma zona de 9,7 ou 9,6 bem mais compatível com o visto na avenida.

Pelo menos este ano ele não exigiu desnecessariamente cronologia em enredos não-cronológicos como ele já fizera algumas vezes ano passado.

Porém, também há o que se elogiar. Mesmo com todas nossas longas divergências, reconheço que Johnny tem um bom olhar em certas situações. Ano passado foi ele quem descontou o “bonde branco” da Vila. Neste ano, creio que seu maior acerto foi descrever com clareza o problema do setor 5 da Unidos da Tijuca. 

Segue o texto “Retira-se um décimo do setor/capítulo 5 (Do Reino) que mistura ecossistema (real) e lendas (simbólico) em um mesmo subtema, prejudicando o perfeito entendimento da narrativa. Três alas neste setor (19, 21 e 22) são ilhas cujas simbologias e lendas são descritas no Abre-Alas. Já a ala 20 (Ouro Negro), aborda o petróleo na Baía de Todos os Santos, parecendo um apêndice deslocado na roteirização”.

Por mais que aceitemos a licença poética do carnavalesco, o Reino de Aioká (um dos nomes para Yemanjá) fica no fundo da baía, ou no máximo no mar, próximo a costa, onde seriam os “domínios” de Yemanjá. Não obstante, mesmo com toda a licença poética do carnavalesco, tudo retratado nesse setor ou ficava fora dos “limites” de Aioká (petróleo baiano, especialmente) ou em ilhas, bem acima de onde ficaria o tal reino. Foi um setor que me incomodou bastante, especialmente pela ala do petróleo, já que o petróleo baiano fica bastante terra adentro, ou já em mar aberto, fora do “Reino de Aioká”.

Apesar de tudo, devo ressaltar que são vários anos consecutivos escrevendo os mesmos pontos sobre este julgador e entendo que isso acaba interferindo no resultado da avaliação do mesmo.

Módulo 4

Julgador: Marcelo Figueira

  • Império – 9,9 (concepção 4,9)
  • Grande Rio – 10
  • Mocidade – 9,8 (concepção 4,8)
  • U. da Tijuca – 10
  • Salgueiro – 9,7 (concepção 4,8 e realização 4,9)
  • Mangueira – 10
  • Tuiuti – 9,9 (concepção 4,9)
  • Portela – 9,9 (concepção 4,9)
  • Vila Isabel – 9,9 (realização 4,9)
  • Imperatriz – 10
  • Beija-Flor – 9,9 (realização 4,9)
  • Viradouro – 10

Marcelo é outro julgador de bom histórico e mais uma vez fez um julgamento com dosimetria coerente dentro do próprio julgamento, apenas o senti bem mais benevolente com as notas do que nos outros anos. Ele é um julgador que aplica os 9,7 ou 9,6 quando necessário, porém neste ano quando pelo menos 3 enredos (Império, Mocidade e Salgueiro) eram bastante complicados, ele só soltou um 9,7 para o Salgueiro e outro 9,8 para a Mocidade. De resto, apenas 9,9 e 10 em um ano “Marcelinho paz e amor”. Vejamos no futuro se será a nova tendência do julgador ou apenas uma exceção.

Em relação às justificativas, não há o que se comentar. Todas elas pertinentes ao que se viu na avenida e dentro dos critérios de julgamento contidos no Manual do Julgador. Estranho o 10 para o falho enredo da Unidos da Tijuca, o único do quesito, mas sendo uma nota não justificável, é difícil comentar. 

Dentro da própria dosimetria utilizada pelo julgador em seu caderno, creio que os problemas apontados para a Beija-Flor; tais sejam: o excesso na representação de todo o setor 5, o excesso de legendas em todo o setor 4, além dos figurinos dos destaques a frente do tripé 1 e da ala 1; justificaria uma nota 9,8 e não o 9.9 dado. Porque a problematização de 2 setores inteiros da escola, ou seja, 40% da escola, além de uma quantidade considerável de figurinos na abertura aproxima muito mais a Beija-Flor da Mocidade, cuja nota fora 9,8, do que os menores problemas apontados para as outras escolas que receberam o 9,9.

Por fim, ressalto a excelente percepção do julgador na justificativa da Vila Isabel quando reclamou com propriedade do excesso de detalhes em dourado em uma fantasia de baianas representando a lavagem do Bonfim e Oxalá, cuja cor é o branco. O dourado acaba chamando demais a atenção e é um erro na representação do enredo.

Faço questão de ressaltar esse problema na representação dos elementos de matriz africana pois a própria escola por duas vezes no Livro Abre-Alas utilizada o epíteto “divindade afro-brasileira” para adjetivar Yemanjá, quando ela é essencialmente africana. Aliás, o Abre-Alas da Vila tinha vários pequenos deslizes de conceitos.

Recomendações para a LIESA em relação ao quesito Enredo:

  • Clarificar com mais detalhes os limites da avaliação de criatividade no quesito Enredo, deixando claro que a avaliação deve se concentrar apenas na forma de comunicar o enredo, não na questão artística das fantasias e alegorias.
  • Explicitar claramente no Manual do Julgador que a falta de cronologia não deve ser despontuada se isso não afetar a mensagem do enredo que a escola está contando.

[N.do.E.: conforme expliquei no vídeo, a questão do petróleo na Unidos da Tijuca tem outro problema conceitual: o fato de, historicamente, ser uma exploração em terra – apesar do campo de gás natural de Manati, que realmente fica na Baía de Todos os Santos. E esta questão é amplamente conhecida, não sendo algo específico do setor. PM] 

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