*por Daniel Botelho, jornalista

Vai começar. Pouco a pouco, emerge ao horizonte a luz de um novo dia, como se fora o palco de um espetáculo sendo tomado progressivamente por intensas luzes projetadas sobre a passarela fascinante, por holofotes pujantes, vigorosíssimos.

Mais um dia, tão dia quanto todos os outros dias, um dia como qualquer outro dia, mas não um dia como um dia qualquer: é o dia. Preciso, objetivo, único, singular, com artigo definido e tudo, pra não ter erro nem dúvida, artigo definido de “O Maior Espetáculo da Terra”, de “A Majestade do Samba”, de “A Estação Primeira”, de “A Deusa da Passarela”, de “A Academia do Samba”, de “O Reizinho de Madureira”, por exemplo. Distinto, específico, definitivo, especial.

O ecoar do despertador, feito uma sirene estridente, como se fosse um alto-falante, anuncia um novo dia: o dia. “Vem aí!”, proclama o locutor da rádio, sem falha no sistema de som. Clareou, clareou, já vai começar. O sol colorindo é tão lindo, tão lindo, e a natureza tingindo, tingindo, como disse certa vez o poeta.

Uns despertam cantando – um samba-enredo, de preferência – é feito tradição: todo dia a mesma música, aquela música, aquela tão linda música, que embalou os mais lindos sonhos, de tantas boas lembranças, a trilha sonora de nossos grandes momentos, versos e melodia que já alvoreceram tanto nossas tantas vitórias. Esses “uns” acordam cantando como em um esquenta, esquenta de um novo dia, o dia. E assim começa o dia. Agora, imaginem um mundo sem início, um dia sem começo. Seria como um mundo sem esquentas.

Os porteiros, os seguranças, as recepcionistas, os atendentes e os comerciantes dão as boas-vindas ao pessoal que por aqui chega, saúdam o público, acenam à gente, sorriso sempre em rosto, gentis, elegantes, bem vestidos, como se com fraques e cartolas, conhecem tudo aquilo que virá, informam a todos tudo aquilo que os espera daqui – da porta – até o final, como se fossem comissão de frente.

“Bom dia, seja bem-vindo ao nosso estabelecimento, aproveite.” Como diz o ditado, a primeira impressão é a que fica. Agora, imaginem um mundo sem essa gente, sem essa gentileza, sem essa primeira impressão, idealizem o caos, elaborem. Seria como um mundo sem comissões de frente.

O motorista de ônibus manobra seu carro pensando ser um piloto de carro alegórico: anda, pára, volta um pouco, empurra mais, olha a curva, cuidado com o “joelho”! Ele está ali, como o piloto de carro alegórico também está, mas ninguém o vê, assim como ninguém vê o piloto de carro alegórico. Nenhum “bom dia”, “boa tarde” ou “boa noite”. Agora, imaginem um mundo sem motoristas de ônibus, idealizem o caos, elaborem. Seria como um mundo sem pilotos de carros alegóricos.

No transporte, a menina com laço de fita batuca na marmita pra não ver o tempo passar, o almoço vira repique no improviso do tédio. A criancinha faz da merendeira sua caixa de percussão. O desempregado toca delicadamente com a caneta no metal do metrô e improvisa o barulho do agogô. A senhora ri da piada no jornal e emite um som parecido com uma cuíca.

O pedinte é surdo e faz ele mesmo a marcação. A caixa de isopor balança tanto que parece carregar chocalhos ao invés de cervejas. A massa abandona o recuo, esquece a evolução e corre antes que as portas se fechem – ou que o tempo estoure – e a coisa se complique lá na dispersão. Agora, imaginem um mundo sem som, sem batuque, nenhum barulhinho, nada, idealizem o caos, elaborem. Seria como um mundo sem baterias.

Aquela história, que você ouviu da sua mãe, que ouviu da sua avó, que ouviu da sua bisavó, acredite, é uma história. Aquela história que você contou pro seu amigo, que ouviu de um colega – que inventou um detalhe no meio – a conversa que você leu com o rabo de olho no celular alheio, a fofoca que você ficou sabendo da fulana, que é filha do beltrano e que saiu com o sicrano, o monólogo do taxista durante a viagem, o caso sinistro do motorista do Uber que seguiu o GPS e foi parar numa roubada, o relato sofrido do vendedor ambulante, a piada sem graça do seu tio, a memória da senhorinha na fila do banco, a aula da professora sobre a migração paquistanesa ao Maranhão, o repente nordestino improvisado, o partido alto feito na hora, acredite, é tudo história, transmissão de conhecimento. História beirando a poesia. Agora, imaginem um mundo sem histórias, idealizem o caos, elaborem. Seria como um mundo sem enredo.

Ao fim do dia, o dia, o grande dia, relembrem todos os seus passos desde o amanhecer, relembrem o acender dos holofotes, o esquenta, a comissão de frente, o enredo, as alegorias, a evolução, a bateria, a harmonia, a dispersão, tudo, e componham um samba-enredo sobre o seu dia, o grande dia, o dia: “É hoje o dia, da alegria…”

Agora, imagem um mundo sem hoje, sem alegria, amor, paixão, vibração, harmonia, laços, comunicação unidade, progresso, evolução, carinho e samba, idealizem o caos, elaborem. Seria como um mundo sem Carnaval.

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