Como já se previa há pelo menos três meses, as primárias dos partidos Democrata e Republicano confirmaram Hillary Clinton e Donald Trump como os pretendentes de cada partido à Casa Branca. As indicações deverão ser confirmadas nas convenções de julho, e, até o momento, a despeito do descontentamento do establishment republicano com Trump, não se cogita de nenhuma candidatura independente competitiva.

O que houve de mais notável na campanha até o momento foi que todos os principais pré-candidatos sinalizaram para o passado – e cada um tinha em mira uma época favorita. Como é natural, o olhar era sempre para uma imagem idealizada da História. Sinal claro de declínio imperial, a obsessão com tempos idos também ajuda a explicar a sorte de cada presidenciável nas primárias.

Comecemos com os maiores fracassos, Jeb Bush e Marco Rubio. Ambos remetiam ao último período dos republicanos na Casa Branca, os anos de George W. Bush (2001-09). O primeiro tinha uma conexão óbvia, o fato de ser irmão do ex-presidente. Mau candidato, perdeu espaço ao longo da campanha para Rubio, que ele próprio havia iniciado na política. Jeb devia suspeitar que o passado que ele invocava não era recordado com muito carinho pelos eleitores, tanto é que omitiu o sobrenome em seu logo de campanha.

bushnote1Rubio, ao invés, adotou o motto “A New American Century”, que tinha por finalidade associar diretamente sua imagem ao governo do último presidente republicano. Para quem não sabe, este era o nome do think tank que reunia os principais falcões que davam suporte ao governo W. na academia e na política, inclusive o irmão Jeb.

Há poucas dúvidas hoje de que a crença de que o século XXI podia ser “americano”, além da disposição de forçar o mundo a aceitar isto, foi o grande erro estratégico dos neocons, responsável pelos atoleiros em que Bush se meteu no Oriente Médio. Como pouca gente quer aquele tempo de volta, e como a derrocada no Iraque ainda está fresca na memória, não surpreende que Marco e Jeb tenham fracassado fragorosamente.

rubioHillary Clinton foi mais feliz ao direcionar a memória seletiva do eleitorado para a década anterior, quando o presidente foi seu marido Bill Clinton (1993-2001): “De que parte da paz e da prosperidade vocês não gostam?”, costuma perguntar, em tom provocativo. Agora que está lidando com Donald Trump, Hillary será forçada a lembrar-se com frequência do lado escuro daquele período glorioso: os casos mal explicados de enriquecimento exponencial do casal Clinton e os casos excessivamente explicados de seu marido com outras mulheres.

Trump, por sua vez, apontou para os anos Reagan (1981-89), chegando ao ponto de roubar o motto de sua primeira campanha presidencial (“Make America Great Again”). De fato, sua figura tenta emular, de forma meio desajeitada, a de Ronald Reagan: um homem prático, midiático, que não perde tempo com teorias nem com excesso de informação. A plataforma é pro-business, com redução de impostos e a filosofia do “cada um por si”.

Ainda, há em Trump uma exibição de patriotismo populista, que no seu caso particular assume a forma de xenofobia, mas que, na parte que se comunica com o de Reagan, invoca uma postura antagonística: assim como se supõe que Reagan tenha “vencido a Guerra Fria”, Trump se propõe a “derrotar” a China, o Japão, o México e quem mais vier pela frente.

trumpHá outra coincidência curiosa – e sutil – entre esses dois ícones oitentistas. Uma das principais acusações que Trump recebe de seus correligionários é a de que não seria um “verdadeiro conservador”. Acontece que, paradoxalmente, o “conservadorismo” é uma moldura ideológica de um quadro em permanente mutação. Reagan, hoje tido como um baluarte do conservadorismo supostamente “autêntico”, foi, na realidade, um renovador do conceito.

É duvidoso se Trump terá capacidade de introduzir um novo paradigma, mas os anos 80 mostraram que este tipo de façanha independe de méritos intelectuais. Trata-se muito mais de servir de símbolo e encarnar o espírito do tempo.

O certo é que, no imaginário da maioria dos republicanos contemporâneos, Ronald Reagan foi o grande presidente de nosso tempo, assim como Bill Clinton é o melhor modelo presidencial que a memória democrata alcança. Eis porque os candidatos que conseguiram estabelecer uma identidade com eles foram bem-sucedidos nas primárias.

Bernie Sanders, por exemplo, embora se apresentasse como “socialista”, prometia uma espécie de volta à Era de Ouro do Capitalismo (1945-73), uma época de hegemonia do pensamento keynesiano e de expansão econômica, pleno emprego, ascensão da classe média, mobilidade social e redução drástica da pobreza, tudo financiado com impostos pesados sobre os mais ricos.

Já Ted Cruz era ambíguo. Para o grande eleitorado, foi o candidato natural do Tea Party e explorou discretamente a mitologia da “fundação” dos EUA em fins do século XVIII, centrando no federalismo e na obsessão americana pelo direito de portar armas. O conservadorismo comportamental e o zelotismo religioso foram enfiados no pacote, embora não tenham sido traços marcantes daquele tempo.

bush yearsMas para os financiadores de campanha estava claro que Cruz acenava com uma volta à Gilded Age (1870-1900): liberdade irrestrita para os grandes negócios, impostos baixos e regressivos (defendeu um IR fixo de 10% para todas as faixas de renda) e supressão dos direitos sociais (Cruz é contra o salário mínimo e propôs a extinção do Departamento de Educação).

Contar histórias de passados idealizados é um dos passatempos favoritos dos políticos. O azar deles (ou, no mínimo, de seus eleitores) é que o passado nunca volta -salvo, talvez, como farsa. Cada uma das Eras cantadas pelos presidenciáveis americanos foi superada por razões que a História conhece de cor.

O ideal individualista de Cruz, embora tenha deixado marcas no espírito do país, foi ultrapassado, no século XX, pela progressiva democratização política, social e racial. A Golden Age só foi notável nos países desenvolvidos, e viria a ser sepultada pela globalização econômica (Crise do Petróleo, deslocamento da indústria para países periféricos) e por interesses financeiros do próprio Norte (desregulamentação e desmonte do sistema de Bretton Woods). Ambos os fatores estão mais vivos do que nunca.

A crise da hegemonia americana, que explodiu nos Anos Bush e que, desde então, vem sendo administrada por Obama, já era previsível nos governos de Reagan (que lidou com a evolução gradativa do MCE e com um esplendor sem precedentes do Japão) e Clinton (que viu a UE consolidar-se e a China tornar-se um poderoso ator global). A liderança aparentemente incontrastável nos anos 90 foi uma miragem provocada pelo colapso repentino do Império Soviético, mas aquele quadro “unipolar” simplesmente não tinha como durar.

O século XXI com certeza não será “americano”. Lidar com este dado de realidade é um dos deveres de um presidente dos Estados Unidos empenhado em manter, não o poderio militar, mas a democracia, a liberdade e a qualidade de vida de que desfrutam seus cidadãos.

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