Continuando a relembrar meus cinco anos de blog, chego a essa coluna de 28 de agosto de 2011. Tinha quatro meses no Ouro de Tolo e pela primeira vez toquei no assunto composição de samba-enredo.

Um texto crítico, debochado e por incrível que pareça já desatualizado para pior. As quantias que escrevi no texto podem esquecer. Os cinquenta mil gastos para fazer um samba campeão já se aproximam de cem e os 700 para um cantor de Grupo Especial mal pagam um de acesso hoje em dia. Os do especial recebem mais de 1.500. Os palcos contam com pelo menos dois cantores do Grupo Especial e hoje ainda tem o vídeo-clipe. Aquele vídeos maneiros em que compositores sentam em mesas fingindo tocar alguma coisa quando alguns no máximo só tocam punh… deixa quieto.

Ironizei que instrumentos que nada tem a ver com samba chegariam aos palcos e realmente chegaram. Mas evidente que também ocorreram coisas boas. Como vocês podem ver no “P.S.” lá eu cito o surgimento de um samba diferente, de um concorrente da Portela para o carnaval 2012.

Com o tempo ele ganhou a alcunha de “Madureira sobe o Pelô”, eu apelidei aqui de “Barcelona dos sambas” em uma coluna e essa obra fez que os compositores melhorassem e muito o nível dos sambas e tivéssemos um ressurgimento do gênero com lindas músicas nos últimos anos.

Mas pouco, muito pouco para o comércio que tomou conta do samba-enredo e só tende a piorar. Samba virou coisa de empresa, conglomerados e não é qualquer um que pode se tornar um Bill Gates da folia.

Com vocês, Samba-enredo S.A.

Samba-enredo S.A.

Já que as pessoas estão gostando do assunto samba-enredo farei mais uma coluna sobre o assunto. Como prometi alguns meses atrás contarei um pouco como é uma disputa de samba-enredo.

Para quem não sabe, antes mesmo do desfile das escolas de sambas as agremiações já estão pensando no desfile do ano seguinte.

Muitas vezes com um enredo já em processo final de definição. Existem vários tipos de enredo que podem ir pra avenida: falar de uma localidade, de uma lenda, uma personalidade ou até mesmo de empresas ou produtos. Enfim, contar uma história, e nos dias de hoje se essa história trouxer dinheiro para a agremiação, melhor ainda.

Desse enredo é feita uma sinopse. A sinopse é um livreto com aquilo que a escola contará na avenida, com seus setores, carros alegóricos, alas e o resumo da história que servirá como base pra fazer um samba-enredo.

O samba-enredo nos tempos atuais é uma coisa fantástica. Acredito eu ser a única especialização em arte que você não precisa ser artista pra executar. Resumindo, no samba de hoje para você ser um compositor precisa nem mesmo saber ler e escrever – não é uma coisa fantástica?

Basicamente hoje em dia pra você concorrer em uma escola de samba do Grupo Especial nem adianta tentar fazer sozinho o samba, mesmo que você seja uma pessoa talentosa. A não ser que você seja o Eike Batista – neste caso só posso lhe desejar boa sorte.

Uma disputa no Especial rende valores expressivos em direitos para a parceria campeã – algo em torno de 300 a 350 mil reais brutos – e evidente que tendo um prêmio desses também traz muitos gastos. Dificilmente você fará parte de um samba campeão na elite carioca se sua parceria tiver menos de cinquenta mil reais pra investir.

Faz como então?

Geralmente, hoje as escolas permitem que quatro ou cinco pessoas assinem um samba. Nesse grupo de compositores é essencial que tenha o integrante que forneça o suporte financeiro: pode ser um cara que tenha esse dinheiro ou saiba como arrumar. Tem que ter o “cara da política”, aquele que é bem relacionado dentro da escola, que todos gostem. Geralmente ele participa das atividades sociais dela.

Tem o “cara da torcida”. Ah, esse é muito importante porque você pode concorrer com um hino nacional que se não botar torcedor você perde pra um “atirei o pau no gato” que tenha torcida. Uma pessoa dessas geralmente é de alguma comunidade (jeito mais politicamente correto de chamar ‘favelas’) e traz o povo para torcer por seu samba.

Mas eles não vêm apenas porque você é um cara bonito não. Para botar torcida em uma quadra tem que ter ônibus pra buscá-los. Um samba campeão nem precisa de muitos ônibus: “bastam” uns quinze a vinte por noite de eliminatórias. Tem que bancar bebida da galera, churrasco, geralmente dão camisas também e evidentemente os ingressos. A parceria também costuma usar uniforme lembrando os bons momentos de escola – a diferença é que se você “tirar 10” na prova ela passará na Globo.

Não esqueça que você tem que contratar cantores, cantores do Grupo Especial claro – já que você quer ser um compositor vencedor. Barato contratar um desses, com “apenas” 700 reais por apresentação (que muitas vezes dura cinco minutos) você contrata um. Evidente que o gasto não é só com ele: você tem que contratar pelo menos mais um três cantores como base dele até porque muitas vezes o seu cantor do especial não aparecerá – porque ele fechou com mais três escolas do Rio e duas de São Paulo no mesmo dia.

Tem que contratar cavaco: dois cavaquinistas, um para a base e outro para a ‘firula’. Tem que contratar violão e há parcerias em algumas escolas que colocam sax, flauta, teclado – parece uma grande orquestra. Qualquer dia ouviremos em um palco guitarra, triângulo e até, pasmem, um tamborim!!!

Mas evidente que isso não basta. Para chegar lá você gravou um CD que deve ter custado mais de mil reais a gravação e fez mais de mil cópias dele com prospecto de primeira qualidade. Na quadra, em sua apresentação, além de tudo que citei é bom colocar umas faixas com versos do samba, uma maior do lado do palco com a letra inteira, máquina de papel picado, gelo seco, raio laser, telão com imagens da vaidosa parceria e a letra do samba, além de queima de fogos.

Cada apresentação sua tem que ser uma mistura de virada de ano em Copacabana e abertura de Jogos Olímpicos.

E muita, muita gente carregando bandeiras de seu samba, pulando na quadra, cantando sua obra. Não precisa necessariamente serem pessoas da área, sua torcida não precisa nunca mais pisar na quadra – o que importa é aquele momento. A diretoria fica feliz ao ver a quadra cheia.

Bem, tá tudo aí para você ter um samba campeão, acho que não precisa de nada.

A impressão que estou esquecendo algo…

…ah sim, tem que fazer o samba também.

Mas isso é o de menos.

Como eu já disse, cada parceria deve ter no máximo cinco pessoas assinando, mas tem que ter o cara da grana, da política, da torcida, de repente cantor pra amenizar gastos… O cara que escreve pode “botar por fora”, isso é, não assinar o samba. Afinal no Samba Enredo S.A. ele é o menos importante: geralmente o cara que escreve é o pobre, não sabe cantar, não tem política, não tem torcida e a única coisa que tem a seu favor é que faz a letra e a melodia e, convenhamos, um compositor saber escrever o samba é muito pouco.

Bota esse pobre coitado por fora e se o samba ganhar dá uma grana para ele depois. Ele ainda tem que agradecer: afinal não adiantaria nada ele com todo seu talento botar samba numa escola do Especial apenas porque sabe escrever, sem as outras condições que eu disse para vencer uma disputa. Provavelmente cairia na primeira eliminatória.

Para dizer a verdade, nem precisa desse cara que escreve. Deixa-o para lá fazendo seus sambinhas, gravando em fundo de quintal e caindo de cara.

Para fazer o samba tem grandes conglomerados artísticos que chamamos carinhosamente de “escritórios”. Eles são formados por grupos de compositores que fazem sambas para muitas escolas e colocam pessoas dessas escolas para assinar. Esses sambas têm o singelo nome de “pombo”. Os caras escrevem os sambas, mandam e geralmente essas parcerias acabam tendo uma estrutura monstruosa – quase sempre vencem seus concursos.

Com esse fenômeno natural de revoada dos pombos para o hemisfério carnavalesco, que ocorre todos os meses de julho e agosto no Rio de Janeiro, ocorrem duas situações fascinantes. A primeira é que têm muitos compositores consagrados, alguns considerados talentosíssimos, que não escrevem uma única linha; outra que em vez de falarmos ao ouvir algum samba que esse samba é da “escola A” ou “escola B” só pelo tipo de samba feito hoje falamos que tal samba é de “compositor A” ou “compositor B”.

Essas situações que citei na coluna, somadas com os enredos patrocinados que muitas vezes obrigam os compositores a criar em cima de enredos que não dão o mínimo de condições, e as sinopses de samba-enredo hoje que em sua maioria são engessadas e não permitem muito ao compositor criar são os principais motivos de termos sambas hoje que, assim que são feitos, se tornam clássicos. Sambas muito diferentes um do outro, que não seguem padrão definido de dois refrões de quatro linhas e falar nome da escola no refrão principal. Sambas que, passou o carnaval, lembramos e cantamos em nosso dia a dia.

Não concorda? Acha que fui irônico nessa coluna inteira? Ah tá, vai me dizer que se eu pedir para você leitor agora cantar pelo menos cinco sambas do carnaval 2011 você não cantará de cara, sem precisar consultar CD, encartes nem internet? Claro que você consegue…

Essa coluna me fez lembrar minha primeira situação de concurso musical.

Em 1994 participei de concurso para a escolha do hino da minha escola. Fiz uma música que gostei muito, mas fui cantar e fiquei em último. Quem ganhou foi um grupo chamado “os filhos do sapateiro”. Quando acabou, um professor disse a mim que minha música era maravilhosa, mas eu cantava mal e tinha que ter arrumado alguém para interpretar. Tinha que ter investido em minha obra.

Os filhos do sapateiro investiram e venceram. Mesmo eu nunca mais tendo ouvido falar deles, são os autores do hino do colégio.

Eu achei aquilo na época um absurdo e virei depois compositor de samba-enredo…

Bem-feito.

P. S.: Depois que entreguei a coluna aparece o samba de Wanderley Monteiro e parceiros na Portela que coloca em xeque tudo que eu escrevi nela e ameaça derrubar o Samba-Enredo S.A. Por essas e outras o samba nunca irá morrer

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