O deus africano dos metais forjados, da tecnologia e das batalhas – Ogum para os iorubás; Nkosi-Mucumbi para os bantos; Gu ou Gun para os fons do Daomé – é um dos mais populares no Brasil; sincretizado com São Antônio em alguns lugares (na Bahia, por exemplo) e São Jorge em outros (como no Rio de Janeiro, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Os baianos aproximam São Jorge de Oxossi, o caçador de uma só flecha).

É bom registrar que infelizmente ainda prevalece no senso comum a ideia do sincretismo como “uma maneira que os negros encontraram para cultuar os seus orixás e evitar a repressão dos brancos”, conforme li recentemente em um livro didático de História. A velha e ultrapassada tese do fingimento, em suma.

Não custa lembrar que o sincretismo é fenômeno de mão dupla, vem de negros e brancos, tem influências ameríndias, pode ser entendido como estratégia de resistência e controle – com variável complexa de nuances – e pode ser entendido – é obvio, mas quase ninguém fala – como fenômeno de fé. A incorporação de deuses e crenças do outro é vista por muitos povos como acréscimo de força vital; e não diluição dela ou estratégia pensada friamente.

Ogum ocupa, na mitologia dos iorubás, a função do herói civilizador e senhor das tecnologias. Foi ele, por exemplo, que ensinou o segredo do ferro aos orixás e mostrou a Oxaguiã como fazer a enxada, a foice, a pá, o enxadão, o ancinho, o rastelo e o arado. Desta maneira permitiu que o cultivo em larga escala do inhame salvasse da fome o povo de Ejigbô. Em agradecimento ao ferreiro, Oxaguiã passou a usar em seu axó funfun [a roupa branca da corte de Obatalá] um laço azul: a cor de Ogum nos candomblés de Ketu.

Ogum virou general para acabar com as guerras. Em um mito bastante conhecido nos candomblés, Ajagunã brigava sem parar  e não atendia aos apelos de nenhum orixá. Ogum se aproximou de Ajagunã e pediu para que ele lhe entregasse as armas e o escudo. Ajagunã obedeceu e entregou os utensílios de batalha a Ogum – que prometeu jamais usá-los em um conflito desnecessário.

A partir dessas histórias, as mais emblemáticas e que fundamentam o culto a Ogum, chego ao ponto que me parece crucial. No Novo Mundo, especialmente no Brasil e em Cuba, a face mais marcante do orixá – a do ferreiro, patrono da agricultura, inventor do arado, desligado de bens materiais, senhor das tecnologias que mataram a fome do povo e permitiram a recriação de mundos como arte – praticamente desapareceu.

A agricultura nas Américas estava, afinal, diretamente ligada aos horrores da escravidão. Como querer que um escravo, submetido ao cativeiro e aos rigores da lavoura, louvasse os instrumentos do cultivo como dádiva? Como enxergar no arado, na enxada e no ancinho instrumentos de libertação, quando os mesmos representavam a submissão ao senhor e o fruto da colheita não pertencia a quem arava o solo?

Ogum foi perdendo, então, o perfil fundamental de herói civilizador e seu culto entre nós, cada vez mais, se ligou apenas aos mitos do guerreiro. Ogum é o general e esse perfil militar se reflete nas maneiras como foi sincretizado.

A aproximação de Ogum com Santo Antônio é facilmente explicável. O santo católico, afinal, aparece inúmeras vezes em episódios na História do Brasil produzindo milagres durante batalhas. A título de exemplos lembramos que em 1640, na Ilha de Boipeba, no sul da Bahia, ele ajudou a expulsar invasores estrangeiros; em 1710, durante a invasão de Duclerc ao Rio de Janeiro, auxiliou os cariocas a lutar contra os piratas franceses e foi empossado, em cerimônia feita frente a uma imagem, como secretário de segurança da cidade.

Fiéis lotam a Igreja de São Jorge no centro do RioEm virtude de coisas desse tipo, Santo Antônio recebeu a patente de oficial do Exército na Paraíba, Pernambuco, Bahia, Espírito Santo, Goiás, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas; ganhando soldo correspondente, que era destinado a conventos franciscanos.

O sincretismo com São Jorge deriva certamente do perfil guerreiro atribuído ao santo da Capadócia. Impressiona, por exemplo, a força que tem na Umbanda o mito de que Ogum/ São Jorge teria lutado na Guerra do Paraguai ao lado das tropas brasileiras (compostas por muitos negros). Há vários pontos que citam a presença de Ogum nos campos do Humaitá, fortaleza paraguaia que foi um dos cenários mais importantes do desenrolar da guerra:

“Bandeira branca de Ogum / Está içada no Humaitá / Representando o general de Umbanda / Ogum vence demanda em qualquer lugar.”

Hoje é dia, certamente, de este ponto ressoar, dentre dezenas de outros, nas canjiras cariocas que celebrarão, desde a alvorada, o santo guerreiro que virou orixá.