Anualmente as Escolas de Samba realizam as disputas que definem seus sambas de enredo. Centenas de obras são inscritas, porém apenas uma sagra-se vencedora e tem a honra de embalar o cortejo das agremiações. Muitas vezes, as finais apresentam sambas de grande qualidade, tornando a escolha uma tarefa um tanto árdua. Noutros casos, menos dignos, o samba vencedor é definido por “forças ocultas”, em detrimento de sambas realmente merecedores. Estes, infelizmente, tendem a cair no esquecimento.

Pensando em resgatar sambas de enredo derrotados, o genial Martinho da Vila lançou no carnaval de 2014 o ótimo álbum “Enredo”. E, recentemente, o álbum ganhou uma versão em DVD. São 24 sambas gravados, sendo quatro hinos da extinta Aprendizes da Boca do Mato (Carlos Gomes, Tamandaré, Rui Barbosa e Machado de Assis), onze sambas de enredo vencedores na Vila Isabel e outros nove sambas cortados na quadra.

enredoÉ notório que a qualidade da discografia da Escola do Bairro de Noel muito se deve à genialidade de Martinho José Ferreira. Para dimensionar sua importância, basta citar que dos seis Estandartes de Ouro da Vila Isabel no quesito samba de enredo no Grupo Especial, cinco são composições de Martinho, com ou sem parceiros.

Contudo, o que mais chama a atenção é, sem dúvida, a qualidade dos sambas derrotados. Dois já eram de meu conhecimento, por fazerem parte da coletânea “20 anos de Samba”, lançada em 1997. São as obras “Tribo dos Carajás” e “Ai, que saudades que eu tenho”. Este perdera em 1977 para a parceria de Gemeu. Em que pese ser Gemeu um grande compositor, a obra de Martinho da Vila é muito superior. Ao ouvirmos o samba, somos transportados para aquela boemia dos anos de Noel Rosa.

Já a derrota do samba “Tribo dos Carajás”, em 1974, é ainda mais dolorosa quando comparado à obra levada para a Avenida. Talvez a escolha tenha se pautado pela letra “chapa branca” da parceria vencedora, que enaltece a megalomania dos militares na construção de estradas que integrariam o país, cortando as matas e terras indígenas. (A grande estrada que passa reinante / por entre rochas, colinas e serras / leva o progresso ao irmão distante). O samba de Martinho, além de melodia e letra superiores, tem uma postura crítica face às políticas desenvolvimentistas que ignoram os direitos indígenas.

Outros dois sambas que merecem destaque e pelos quais me apaixonei são as obras “Vila Isabel anos trinta” e “De alegria pulei, de alegria cantei”. O primeiro é uma parceria de gigantes – Martinho da Vila e Luiz Carlos da Vila. A união destes dois compositores consagrados resultou numa obra belíssima, que consegue transmitir com maestria a atmosfera do Bairro de Noel na década de 1930. Este samba fantástico foi derrotado em 1982 pela obra do compositor J.Albertino, que somente deve ser lembrada pelos mais fanáticos fãs do gênero. E, em 1986, outra derrota para um samba de qualidade inferior, desta vez, para a parceria de Davi Corrêa.

vilacampea2013Os outros sambas cortados em quadra e que completam o CD/DVD também são interessantes (e melhores que os sambas vencedores), como o “Teatro brasileiro” (1975), “Dique, um Mar de Amor” (1978), “Por ti América” (2006) e “Trabalhadores do Brasil (2008) e merecem ser ouvidos com atenção.

Por fim, louvo a iniciativa do Martinho e sua prole, que nos presentearam com este belíssimo álbum e nos permitiram conhecer (e lamentar) obras não cantadas na Avenida. Certamente, a vitória destes sambas aumentaria ainda mais a qualidade da discografia da querida e tradicional Unidos de Vila Isabel.

Abaixo o leitor pode ouvir cinco destes sambas que não foram à avenida: “Prece ao Sol”, “Dique, Um Mar de Amor”, “Trabalhadores do Brasil”, “De Alegria Pulei” e “Por Ti América”.

[N.do.E.: tenho o CD, não o DVD, mas uma coisa que já disse inclusive ao Tunico da Vila, filho do grande compositor, é que o encarte deveria trazer a diferenciação entre os sambas vencedores e os que não foram para o desfile. Um ouvinte que não conheça a história da Vila Isabel certamente irá ficar confuso. PM]