O restabelecimento das relações diplomáticas dos Estados Unidos com Cuba, anunciada ontem pelos presidentes Barack Obama e Raúl Castro, é um marco histórico, mas apenas o primeiro passo para a desconstrução do verdadeiro ponto sensível entre os dois países: o embargo econômico.

Esta relíquia da Guerra Fria é, na verdade, um complexo de leis que não podem ser revogadas pelo Presidente por decreto. A dificuldade será grande, porque os republicanos têm hoje ampla maioria no Congresso, mas fatalmente cairá, porque não reflete mais o momento histórico.

Internamente, a maioria do povo americano tem mantido uma opinião de modo geral negativa sobre Cuba. Na primeira pesquisa do Instituto Gallup sobre o assunto, de 1996, 81% dos americanos disseram ter uma visão desfavorável sobre a ilha de Fidel Castro, contra 10% com uma opinião favorável. A diferença vem caindo ano a ano, e em 2014 foi a menor da série histórica: 57% x 38%.

Ainda assim, uma maioria consistente tem se manifestado pelo restabelecimento de relações diplomáticas (média de 60% a 30% na série histórica) e pelo fim do embargo (média de 50% a 40%). Todos sabem que a política americana, além de ultrapassada, é contraproducente.

raul castroA posição da comunidade internacional é a de que o comércio entre os dois países é um assunto bilateral, mas nos anos 90 o embargo foi ampliado para envolver terceiros. Por exemplo, a Lei Helms-Burton impõe sanções a qualquer companhia estrangeira que faça negócios com Cuba. Imagine uma empresa francesa que produza queijos e geleias, e usa na geleia açúcar cubano. Uma tal empresa não poderia sequer exportar seus queijos para os EUA.

Desde 1992 a Assembleia Geral da ONU tem aprovado anualmente uma resolução pelo fim do embargo por maioria avassaladora. Em outubro deste ano o resultado foi 188 x 2 (EUA e Israel), e mesmo as colônias de facto dos EUA no pacífico (Palau, Micronésia e Ilhas Marshall) se abstiveram.

Como começou esta inimizade? No fim do século XIX o Império Colonial Espanhol estava reduzido a um punhado de exclaves na África e a algumas ilhas no Caribe e no Pacífico. Estas ilhas (Cuba, Porto Rico, Filipinas, Guam) foram o butim da Guerra Hispano-Americana, movida pelos EUA para “libertá-las” do domínio espanhol, ou seja, para tomá-las como suas próprias colônias.

Em Porto Rico, Filipinas e Guam o plano funcionou, mas em Cuba, onde já havia um movimento bem organizado lutando pela independência, não foi possível estabelecer uma colônia americana nos moldes tradicionais. A ilha se reposicionou como Estado formalmente independente, mas na prática era uma área de influência dos EUA. A “cessão” da Baía de Guantánamo se deu neste contexto.

A situação chegou a um nível dramático nos anos 50, quando o ex-presidente Fulgencio Batista deu um Golpe de Estado e instalou uma ditadura corrupta que submeteu Cuba aos negócios do submundo dos EUA. A ilha ganhou a alcunha de “Las Vegas Latina” e se tornou o destino preferencial de americanos que buscavam cassinos, drogas e prostituição. Mafiosos como Lucky Luciano e Meyer Lansky tinham status de donos do “balneário”, sendo que o primeiro chegou a se mudar em definitivo para lá.

Enquanto os turistas se divertiam, havia repressão brutal aos próprios cubanos. Estima-se que 20.000 oponentes do regime tenham sido executados em 7 anos de governo Batista, mais que em 55 anos de ditadura dos irmãos Castro.

A Revolução Cubana começou como uma guerrilha típica da América Latina, e não tinha originalmente uma ideologia comunista. Mas seus líderes perceberam, ao conquistar o poder, que qualquer desenvolvimento independente do país dependia de contrariar interesses americanos – a começar pela nacionalização de empresas. Na época, a única forma de fazê-lo era oferecer amizade à União Soviética.

fidel-castro-che-guevara-imagemUm aliado da URSS a 90 milhas da Flórida era inadmissível para os EUA, que deflagraram a fracassada Invasão da Baía dos Portos em abril de 1961. Na mesma época, os EUA haviam instalado mísseis nucleares na fronteira da Turquia com seu inimigo vermelho. A resposta cubano-soviética aos dois episódios foi o envio de armas atômicas para a ilha, o que resultou na Crise dos Mísseis de 1962.

Todos sabem que a crise foi solucionada com um acordo entre as duas superpotências segundo o qual cada uma retiraria suas armas das bordas do inimigo. Uma parte pouco conhecida da história é que Cuba, não tendo sido consultada, num primeiro momento recusou-se a permitir a saída dos mísseis soviéticos, pois os considerava essenciais para proteger-se das investidas norte-americanas. Uma segunda rodada de negociações, entre Fidel Castro e Nikita Kruschev, foi necessária para aparar as arestas.

Este breve desentendimento serviu para mostrar aos soviéticos que Cuba tinha seus próprios interesses nacionais e não estava disposta a ser um fantoche da URSS nas Caraíbas. De fato, ao contrário dos países do Pacto de Varsóvia, os quais tinham seus recursos sugados pelos russos, a ilha caribenha obteve inúmeras vantagens de sua aliança estratégica com a União Soviética nos 40 anos seguintes.

Os EUA não queriam saber de nada disso, e lançaram a Operação Mongoose, um espetacular conjunto de missões de sabotagem e terrorismo contra Cuba na década de 60. O regime castrista sobreviveu a estes assaltos, como sobreviveu ao embargo, e possivelmente se alimentou dos mesmos.

Apesar de parte da elite americana nunca ter se conformado com a independência efetiva de uma nação que lhe escapou entre os dedos, há dados de realidade na mesa: os EUA não são mais tão poderosos quanto há 50 anos; a América Latina não é mais um mero quintal ao sul do Rio Grande; o mundo caminha para um quadro multipolar.

Uma ilustração de como a balança de poder tem oscilado pode ser extraída das relações multilaterais neste hemisfério. Ainda em 1962, os EUA conseguiram excluir Cuba da OEA por 14 votos a zero e 6 abstenções (Brasil inclusive). Em 2009, sob protestos norte-americanos, o órgão votou pela anulação da expulsão, mas Cuba avisou que não tinha interesse em se reassociar. Entrementes, a organização viu-se esvaziada em benefício da CELAC, que reúne todos os Estados da América Latina e Caribe, inclusive Cuba, mas não os Estados Unidos e o Canadá.

Outro dado relevante é que a China se tornou um parceiro comercial decisivo dos países da região. Os EUA sentem a necessidade reconstruir sua relação com os vizinhos do sul, e no século XXI isto só poderá ser feito em bases mais equilibradas que no passado. O restabelecimento de relações diplomáticas com Cuba, como já dissemos, deve ser entendido como um primeiro passo.