A parte mais imaginativa da promessa distrital é a de que o sistema elegeria parlamentares mais qualificados. Sejamos sóbrios, não é o sistema que elege ninguém, mas os eleitores. Não há método de eleição, nem mesmo reforma política que resolva problemas intrínsecos à nossa sociedade.

Façamos uma simulação dos resultados de uma eleição distrital para deputado no Rio de Janeiro, com minhas desculpas antecipadas aos leitores de outros Estados que não estejam familiarizados com os políticos fluminenses.

Como já dissemos, a capital do Rio teria, aproximadamente, 18 deputados entre os 46 que o Estado elege. Os demais sairiam de distritos no Grande Rio e no interior. Considerando a população dos bairros, a Zona Sul comporia dois distritos. Outro poderia ser formado na faixa que engloba da Rocinha ao Recreio, passando pela Barra da Tijuca e pela parte meridional de Jacarepaguá. Um quarto poderia ser integrado pela Tijuca e os bairros vizinhos.

Pelo menos nove dos mais influentes deputados cariocas estão identificados com essas quatro porções: Chico Alencar, Jean Wyllys, Otávio Leite, Julio Lopes, Indio da Costa, Alessandro Molon, Jandira Feghali, Miro Teixeira, Rodrigo Maia. Conseguem se eleger no sistema proporcional porque têm votações consistentes em todo o Estado, mas, no modo distrital, é provável que tivessem que se aglomerar nos quatro distritos que imaginamos, competindo entre si.

Claro, sempre há políticos que, embora vivam e convivam na Zona Sul, têm chances de se eleger em algum curral eleitoral no subúrbio: Eduardo Cunha, Marco Antônio Cabral, Benedita da Silva… Mas aqui já estamos na segunda divisão.

Considerando os mapas de votação, e deixando de lado, por ora, o ensandecido Jair Bolsonaro, é provável todos os outros 14 distritos da cidade elegeriam pastores, milicianos, cleptomaníacos, tiriricas etc (http://www.tre-rj.gov.br/). Sim, todos teriam uma minoria de eleitores que votaria em candidatos qualificados, mas não conseguiria elegê-los.

Tomemos, agora, uma cidade média como Niterói, que, por sua população, poderia ter um distrito próprio e fazer parte de outro. Uma parcela mais cosmopolita dos niteroienses está habituada a votar em candidatos baseados na capital, mas, numa eleição distrital, essa tendência se manteria? Ou haveria uma inclinação natural a votar em candidatos locais? Eu apostaria na segunda opção.

O mesmo se diga das regiões de Volta Redonda, Barra Mansa, Petrópolis, Nova Friburgo… Em todas essas cidades há gente que vota no Rodrigo Maia e na Jandira Feghali, mas numa eleição distrital a chance de políticos com esse perfil ganharem ali é bem pequena. A paroquialização seria exacerbada.

Em alguns países que praticam o voto distrital é comum os partidos deslocarem candidatos para regiões com as quais eles não têm identificação, por mera estratégia eleitoral. Acontece que em todos esses países há uma cultura arraigada de voto partidário. Os Labours colocaram Tony Blair para concorrer em Sedgefield porque é um “distrito seguro”: naquela região os trabalhistas elegem qualquer deputado que se apresente, desde 1935. No Brasil não há nada nem parecido com isso.

Então, voltemos aos nossos distritos mais “nobres”: na Tijuca, como já especulamos, o Chico Alencar largaria como favorito. Mas, e se as milícias das favelas do entorno resolvessem lançar um membro de seus bandos com a plataforma de “combater a violência”, e se este gângster tivesse a capacidade de agregar os votos conservadores do bairro? A eleição de Alencar não estaria de modo algum segura, e os votos que ele hoje tem no Estado inteiro não poderiam ajudá-lo.

Prossigamos. O deputado federal mais votado nesta eleição na Zona Sul (principalmente Copacabana) e na Barra da Tijuca foi o mesmo que liderou em quase toda a cidade: Jair Bolsonaro! Ele teria eleições mais seguras em outros bairros, mas quem garante que, sendo o que é, não decidiria concorrer justamente onde poderia impor aos moderados sua derrota mais amarga?

Há outra lição que podemos tirar da votação dessa pessoa. Em uma eleição proporcional ele “puxa votos” para uns malandros do PMDB e do DEM que são ruins, mas ainda são menos ruins do que ele. No sistema distrital ele poderia se candidatar em um distrito, colocar todos os seus filhos para disputar em outros, e fazer campanha para todos ao mesmo tempo – no sistema atual ele preferiu não colocar os dois filhos para disputar voto com ele mesmo: um se candidatou a deputado estadual, e o outro, em São Paulo.

Ainda: na modalidade distrital ele poderia inventar como candidatos aliados não só os filhos, mas os irmãos, os sobrinhos e vários companheiros de quartel. Ou seja, a diferença, no quesito “puxar votos”, é que os que entrariam graças ao Bolsonaro seriam escolhidos não por uma burocracia partidária, mas por ele mesmo. O que você prefere?

serra+amauryO resultado deste sistema não seria excluir do Congresso os “partidos minoritários”. Ao contrário, qualquer aventureiro poderia criar um partido para concorrer num distrito remoto. O que estaria alijado do Congresso seriam as próprias minorias organizadas. Seria difícil eleger um deputado com uma plataforma de defesa dos direitos da comunidade LGBT, como o Jean Wyllys. Até mesmo políticas nacionais de educação e saúde ficariam em segundo plano.

O grande proponente do voto distrital no Brasil é José Serra. Parte dos seus aliados comprou a ideia porque notava que o PT tinha muitos votos de legenda, o que só conta no sistema tradicional. Mas o perfil de votos do PT mudou: Os votos de legenda diminuíram e os deputados que o partido elege hoje são, em grande número, líderes locais. O mais provável é que a medida seria um tiro de canhão no pé de todos os partidos minimamente organizados.

O que se vê, pela nova composição do Congresso, é uma pulverização do ecossistema partidário brasileiro. Isto traz dificuldades terríveis para a governabilidade e tende a agravar o quadro de fisiologismo e corrupção endêmica. Um sistema que debilite os partidos mais estruturados só pode aprofundar a crise.

Nosso sistema eleitoral – bem como todo o nosso sistema político – tem sérios defeitos. Mas a maior parte do problema não está no modo de contar votos e formar quocientes eleitorais. Quem deseja melhorar a qualidade da política brasileira precisa pensar além das mudanças cosméticas.

Imagens: TRE-RN e Arquivo Ouro de Tolo

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