Diante de uma realidade que permite a compreensão de dois Brasis, um referente à valorização de sua própria essência e outro relacionado ao desconhecimento da mesma, pode-se entender aquilo que Machado de Assis apontou, em crônica de 18 de dezembro 1861, como País Real e País Oficial. Para ele, o primeiro é “bom e reserva os melhores instintos”, ao passo que o segundo mostra-se “caricato e burlesco”.

É essa perspectiva que Ariano Suassuna explora na tônica da dramaturgia e da literatura que produz, estendendo o tema, naturalmente, às palestras que apresenta. Em uma de suas aulas-espetáculo, ele analisa essa oposição que Machado de Assis aponta para comentar sobre a cultura popular e a cultura de massa, explicitando as diferenças expostas na visão de um país esmagado pela indústria cultural e de outro concebido a partir das raízes da arte popular. Defensor incansável das manifestações de um povo que segue esquecido e negligenciado pelo discurso histórico comumente adotado, o fundador do Movimento Armorial buscou sempre a mediação entre a cultura oral e a letrada.

Cabe dizer que o Movimento Armorial foi lançado em outubro de 1970, no Recife, com o objetivo de promover uma arte brasileira erudita a partir da cultura popular, de modo que esta fosse respeitada e valorizada por muitos que ainda desconhecem sua origem. Nesse sentido, Suassuna faz com que tal pensamento esteja sempre atrelado ao seu trabalho com a palavra, fato que pode ser percebido até mesmo na expressão usada para designar suas palestras: “aula-espetáculo” congrega dois substantivos com significados referentes, respectivamente, ao erudito e ao popular. Além disso, a representação literária do Movimento lançado é feita magistralmente no Romance da Pedra do Reino, cujo título do primeiro capítulo – “Pequeno cantar acadêmico a modo de introdução” – já expressa a junção do canto popular com a erudição acadêmica.

2O narrador-personagem do romance, Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, é a personificação das dualidades tão ressaltadas pelo seu criador, porque reúne, por exemplo, o religioso e o satírico, a fidalguia e a plebe, o drama e o riso. A maneira como ele enxerga o Sertão é a mesma maneira de Suassuna enxergar o Brasil. Quando Quaderna – dessa vez em O Rei Degolado, romance do qual ele é também narrador-personagem diz achar “o Sertão bonito exatamente por causa daquilo que os delicados acham feio nele”, o que se tem é a subversão do olhar que geralmente é adotado para analisar nosso próprio território.

Com a intenção de produzir uma arte genuinamente brasileira, o escritor mostra-se contrário ao desvirtuamento que a indústria cultural causa no produto artístico. A padronização que torna a arte submissa ao mercado retira a peculiaridade das origens da cultura popular para transformá-la e passar a concebê-la como mercadoria. Desse modo, a falta de compreensão ou conhecimento daquilo que é popular pelos próprios brasileiros é um fator decorrente dos preconceitos burgueses pertencentes à sociedade moderna, que promove cada vez mais o desencantamento dos nossos valores.

É por isso que as apresentações e produções de Ariano Suassuna são imprescindíveis para compreendermos a relevância das miudezas tão irrelevantes na concepção de quem desconhece o que há de melhor na cultura nacional.

Ele é uma grande possibilidade para nós, brasileiros, adentrarmos no País Real e nos aproximarmos dos encantamentos que o País Oficial afasta por ser “caricato e burlesco”.

[N.do.E.: a homenagem do Império Serrano a Ariano Suassuna foi objeto de post recente neste blog, que pode ser lido aqui. PM]