O New York Times publicou em 10 de junho uma pesquisa realizada em 19 países que estão disputando esta Copa do Mundo. Entre as perguntas, uma era: “Para quem você está torcendo contra?” Descobriu-se que as seleções mais detestadas do planeta são os Estados Unidos, o Irã… e a Argentina. Mas quis o destino que o jogo decisivo da equipe de Lionel Messi na primeira fase acontecesse naquele que é, talvez, o único lugar do mundo em que os argentinos não são antipatizados: o Rio Grande do Sul.

A polícia estimou em mais de cem mil os milongueros que baixaram em Porto Alegre para acompanhar a partida, com o detalhe de que “apenas” trinta mil deles teria ingresso. Os demais vieram apenas para se sentir próximos de sua idolatrada seleção. Escaldada com a invasão no Maracanã, a brigada militar se postou com dezenas de homens fortemente armados na entrada do perímetro de segurança.

DSCN1772Alguns torcedores ainda tentaram a sorte na última hora. Foi a primeira vez que passantes tentaram comprar meu ingresso no caminho para o estádio, e a primeira vez que o guarda do controle de entrada se deteve conferindo se meu ticket era verdadeiro. Também foi a primeira vez que a arquibancada recendia a cannabis.

De cara, ficou evidente que a grande maioria dos presentes era de argentinos e pseudo-argentinos (a.k.a. gremistas). Mas o que chamava atenção era que, diferente dos demais jogos realizados aqui, e diferente dos primeiros jogos da Argentina na Copa, não havia praticamente ninguém vestindo uma camisa amarela. A torcida do Grêmio nem tentava disfarçar sua preferência. A do Internacional, um tanto ambígua, arriscava umas variações, como usar alguma blusa que remetesse à terra de Gardel por baixo do casaco vermelho.

DSCN1788Uma família de colorados que reside defronte ao Beira-Rio enfeitou a varanda do apartamento com bandeiras do Inter, do Brasil e da Argentina. A dona da casa, paramentada de vermelho, lançava sorrisos e palavras de incentivo a todos que passavam. Os argentinos retribuíam com saudações irreproduzíveis.

Fui vestido com um uniforme verde (cor da Nigéria) de Pelé no Cosmos, e logo descobri que acertei na mosca. A rivalidade Pelé x Maradona é uma obsessão para os argentinos muito maior do que a própria competição com o Brasil. A canção “Brasil, decime qué se siente”, grito de guerra dos hinchas nesta Copa e repetida incontáveis vezes durante o jogo, termina com o inevitável bordão “Maradona és más grande que Pelé”, e é justamente este trecho que a multidão canta uma nota acima, incluídos gremistas exaltados e uns colorados mais tímidos.

DSCN1825Os argentinos cantam o tempo todo, e os locais se esforçam para imitá-los, o que resultou num cenário insólito: os gaúchos gritavam “Vamo Argentina!” (com o “v” e o “g” pronunciados à castelhana), e a turba albiceleste respondia com “brazuca hijo de puta!”. Os gremistas bradavam “Dale Boca!”, os colorados, “Dale River!”, e os argentinos de verdade replicavam mandando-os a “la puta que te parió!”.

Esta estranha relação sado-maso-futebolística tem vez porque muitos rio-grandenses estão resolvidos que “se identificam mais com a Argentina do que com o Brasil”, ao passo que os próprios argentinos os identificam como nada mais que brasileiros, iguais a quaisquer outros.

DSCN1828Um dos poucos brazucas assumidos no Beira-Rio, e um dos três ou quatro torcendo para a Nigéria, fui hostilizado com clichês dos estádios portenhos: “maricón”, “concha de tu madre”, etc, etc. Até que um borracho de mullet atirou na minha direção o conteúdo do seu copo, o que acabou molhando outro brasileiro que estava ao meu lado, até então simpatizante da Argentina, que se enfureceu.

Os stewards apareceram imediatamente para repreender o cabeludo, mas o sujeito ao meu lado estava descontrolado, e exigiu que aquele fosse retirado do recinto. Deixando rapidamente de “se identificar” com qualquer outro país que não o Brasil, sacou um distintivo de policial do bolso e deu uma clássica “carteirada”. A hinchada se uniu para proteger seu companheiro. Eu contemporizei, e, a partir de então, a jactância arrefeceu.

DSCN1809O jogo foi franco e ofensivo, como tem sido o padrão desta Copa, mas o prazer de ver as equipes sempre em busca do gol tem deixado em segundo plano algo que talvez inquiete as torcidas na fase final: a fragilidade das defesas. O holandês Robben, destaque da primeira fase, deve estar tão ansioso para enfrentar Daniel Alves e Zabaleta que é duvidoso que esteja conseguindo dormir sem medicação.

Messi foi novamente o craque da partida, com dois gols em chutes certeiros (um de bola parada), e o futebol de Di María finalmente apareceu. Agüero e Higuaín ainda estão bem abaixo do que se espera. A Nigéria evoluiu muito em relação à campanha medíocre da Copa das Confederações.

Na saída os hermanos foram se tornando mais fraternos. Um de meia-idade me propôs uma troca de camisas, o que gentilmente recusei. É um hábito deles. Outro me pediu para tirarmos uma foto juntos, o que fiz mostrando os cinco dedos da mão. Um caminhão da Quilmes se posicionava em locais estratégicos para atender a demanda dos platinos ao preço de US$ 1,00 a lata.

DSCN1850Na Fan Fest o quadro era muito mais heterogêneo. Diferente do público das arquibancadas, formado basicamente pela “elite branca” de Buenos Aires e por aspirantes a argentinos, nas ruas havia uma multidão de pessoas muito mais afáveis: gente apaixonada por la selección, disposta aos maiores sacrifícios para segui-la onde for.

Dezenas de milhares de fãs argentinos sem ingresso haviam assistido ao jogo no telão da FIFA. O Parque Harmonia se tornou um repositório de peregrinos que enfrentaram dois dias de viagem para estar em Porto Alegre, dormindo nos próprios carros ou em ônibus cheios de gente. Muitos tentavam pagar a despesa vendendo vinhos e miçangas. Não é para menos. Se um ano atrás R$ 1,00 valia $2,40 Pesos, agora vale $3,70.

Alguns, menos afáveis, mas não menos fanáticos, partiram para o roubo de ingressos. Outros tentaram entoar os hinos provocativos num trem suburbano e deram azar de encontrar outro tipo de porto-alegrense, que reagiu como se estivesse na SuperVia. Os garçons de Porto Alegre, que haviam ficado mais encantados com holandeses e australianos que as moças da cidade, deram nota 5 aos vizinhos do sul.

DSCN1800Apesar da agressividade no jeito de torcer, das fixações e provocações infantis, dos conflitos de identidade pessoal e nacional, da exploração oportunista do Olé e do Galvão Bueno… estamos todos no mesmo barco. Temos a mesma realidade e os mesmos problemas, inclusive no futebol.

Na TV: Juan Pablo Sorín, agora repórter e comentarista da ESPN, entrevistou o aniversariante Lionel Messi após a partida e aproveitou para presentear-lhe com uma cuia de chimarrão “em nome do povo de Porto Alegre”. Não sei se Sorín fora agraciado com o título de embaixador honorário do município, e creio mesmo que ele nunca morou aqui, mas estou certo de que todos os porto-alegrenses reiterariam a homenagem. Eu também.

PS: Vários brasileiros ficaram impressionados com os cânticos elaborados da hinchada, e estão tentando criar algo que os responda à altura, em substituição ao deprimente “Sou brasileiro com muito orgulho e muito amor”. Este pode acabar sendo o maior legado da Copa.

[N.do.E.: pretendo publicar amanhã meu relato sobre Camarões e Brasil, mas houve distribuição de papéis para o público com letras de músicas para serem entoadas no estádio. Já é um começo. PM]