Causou grande repercussão no início desta semana a morte da dona de casa Fabiane de Jesus, de 33 anos, na cidade do Guarujá – São Paulo. Ela foi linchada na última noite de sábado por um grupo de populares e faleceu na manhã da última segunda feira. Ela deixa dois filhos, de 13 e um ano de idade.

Seria mais um caso bárbaro de assassinato, não fossem as circunstâncias: Fabiane foi “justiçada” por ser acusada de sequestrar crianças na região. O detalhe é que não havia registros disso na região, e o retrato falado divulgado por um perfil em rede social era de uma tentativa de sequestro ocorrida aqui no Rio de Janeiro em 2012.

Ou seja: assassinou-se covardemente uma pessoa inocente.

O fato traz à baila uma série de reflexões. A primeira, e mais óbvia: com todos os defeitos, as esferas para o combate ao crime são a lei e a Justiça, não a anomia e a criação de bandos de justiceiros. O correto seria, se fosse o caso – nem era – solicitar à Polícia que investigasse a conduta de Fabiane e os eventuais sequestros de crianças.

Mas não: corriam rumores, um perfil em rede social divulgou o retrato falado – que era falso – e um grupo de justiceiros investigou, julgou e executou Fabiane. Uma família destruída por conta desta ação tresloucada.

Em fevereiro e março, por ocasião de eventos com dinâmica semelhante, escrevi artigos sobre o assunto e nele, chamava a atenção para o papel que setores da imprensa exerciam neste fenômeno. Não irei repetir aqui os argumentos daquela ocasião, mas quero explorar outro ângulo: a disseminação, consciente ou não, de coisas incorretas.

O pretenso crime de Fabiane foi divulgado e amplificado por um perfil em rede social, que divulgou um retrato falado feito para outra ocasião – ou seja, falso. Com mais de 50 mil compartilhamentos, certamente catalisou a reação que causou a morte da dona de casa.

Ou seja, deveria haver responsabilidade em quem divulga informações na rede. Ao menos checar. Mas não: difundem-se informações muitas vezes falsas com o objetivo de reforçar a sua opinião e impô-la aos outros. Falo de justiçamento, mas há outros exemplos: o que mais tenho visto são informações incorretas divulgadas por adversários do atual governo federal com o objetivo de desestabilizar a ordem econômica ou democrática do país. Mas esta é outra história.

rachel_sheherazade_img_prc_w1Cabe analisar também a responsabilidade de jornalistas como a âncora do SBT Rachel Sherazade, que defendeu recentemente os justiçamentos em rede nacional e ainda debochou de quem defende o respeito à lei e a seu cumprimento: “tá com pena? Leva pra casa”.

Em uma sociedade já descrente na eficácia das instituições que têm a prerrogativa de aplicar a lei e decorrentes punições (Polícia e Justiça), declarações de jornalistas como elas e outros acabam funcionando como um rastilho de pólvora para situações como essa.

 Ou seja, pelas mãos destes jornalistas também corre o sangue de uma inocente.

Fazendo um parêntese, aliás, é que se percebe como o conceito de “liberdade de imprensa”, no Brasil, é elástico. Em nome dele se defendem coisas como o direito desta jornalista incitar à prática de crimes em rede nacional, o que por si só é um crime previsto no Código Penal. Ou propaganda eleitoral escancarada sob a forma de “notícia”. Infelizmente, qualquer tentativa de se estabelecer um marco regulatório para este setor é classificada imediatamente como “censura”, o que bloqueia o debate sobre o tema – o Brasil é o único país do mundo no qual a mídia não tem qualquer tipo de regulação.

Curiosamente, tal pensamento – que resvala fortemente no fascismo – parece estar nas graças dos donos da mídia brasileira: notícias em sites especializados indicam que a jornalista do SBT citada teria recebido uma proposta de R$ 350 mil mensais para se transferir à TV Bandeirantes. Outros jornalistas nesta linha também são regiamente remunerados por seus empregadores, o que me leva a pensar que, no Brasil, defender e incentivar a barbárie traz lucros expressivos para todas as peças desta engrenagem.

Ressalte-se, também, que não se viu 1% da comoção comparada à dedicada ao recente assassinato de um dançarino do programa “Esquenta”, da Rede Globo de televisão. A frase de George Orwell em seu livro “Revolução dos Bichos” me soa perfeita: “todos são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”. Os seres humanos são mais ou menos importantes de acordo com sua origem, condição social ou financeira, ramo de atuação ou relacionamentos que tenham. A vida de um empresário é mais valiosa que a de um favelado, por esta concepção.

presidio_1E você, leitor que defende a Justiça com as próprias mãos, também tem o sangue de uma inocente em suas mãos. Também é responsável por este assassinato. Você que compartilhou a postagem irresponsável do perfil na rede social, idem. Além de ser hipócrita: critica a violência e reclama do Governo e da Polícia, mas apoia atos de violência contra terceiros.

Para finalizar o assunto, em negrito e caixa alta: LUGAR DE BANDIDO É NA CADEIA, NÃO ASSASSINADO. O ESTADO BRASILEIRO NÃO PREVÊ A PENA DE MORTE!

Acha que a legislação é falha? Lute para que ela mude, e não incentive o não cumprimento da lei. Linchamentos como o desta INOCENTE poderiam ter sido evitados, ou ainda as vidas dos milhares de executados em “autos de resistência” Brasil afora. Muitos sem qualquer envolvimento com o crime.

Descanse em paz, Fabiane.

Imagens: UOL, Ig e EBC

One Reply to “Você, que defende justiça com as próprias mãos, é um assassino”

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