Eu sei, há um estranhamento no título da coluna de hoje. Afinal, o mínimo que se espera numa resenha literária é que o colunista tenha lido o livro. Mas o que compartilharemos abaixo é tão inusitado – e de tão diversas formas e motivos – que a proposta de resenha de um livro ainda não lido é o de menos.

Estamos falando de um fenômeno editorial chamado “Capital no Século XXI”, do economista francês Thomas Piketty (foto ao alto do post). É líder de vendas nos Estados Unidos, ultrapassando Game of Thrones e até a ficção científica pop Divergente, que acaba de virar filme holywoodiano.

Isso mesmo, um livro sobre economia não apenas está no topo entre os mais vendidos, como está esgotado na maioria das livrarias americanas e também lidera a lista de e-books da Amazon.com. Um tijolão de 700 páginas, cheio de gráficos e estatísticas, cuja temática é vista como uma arma apontada contra o estabilishment americano.

171013_homelessO autor, um francês com grande credibilidade no meio acadêmico, foi convidado a um seminário na City University, em Nova York, ao lado de dois Prêmios Nobel em economia: Paul Krugman e Joseph Stiglitz. Houve três sessões extras lotadas do encontro, no qual os dois decanos elogiaram o trabalho de Piketty. Apenas mais um sintoma daquilo que já está sendo chamado de Pikettymania. A Casa Branca o quer como assessor, mas concorre com outras instâncias do mesmo governo, como o Departamento do Tesouro.

O melhor é que, apesar de tão incensado, o economista não é unanimidade, confirmando a máxima rodrigueana de que uma unanimidade seria burra. Mas Piketty é tão amado quanto odiado. Amado por uma legião crescente de leitores, críticos, economistas, políticos progressistas, movimentos sociais. Odiado pelas publicações conservadoras, como o Wall Street Journal, bem como toda a turma alinhada ao tea party. O que não deixa de ser altamente elogioso.

Na capa do seu livro, a palavra “Capital”, em letras vermelhas garrafais, é uma evocação provocativa a Karl Marx. Mas o autor está longe de ser classificado como marxista, apesar de ter desenvolvido uma carreira ligada ao estudo da distribuição de renda e das desvantagens da concentração para o desenvolvimento econômico sob a égide capitalista. Curiosamente, apesar de ser bem recebido na França, quando foi lançado há alguns meses, foi o lançamento da edição em inglês que catapultou o autor ao estrelato no seio do liberalismo mundial.

Pelas resenhas que andei lendo, a grande vantagem do livro, e que o credencia parcialmente a tanto sucesso, é que ele se baseia em dados pacientemente coletados ao longo de anos, utilizando critérios e fontes novas (como declarações de I.R.), desconstruindo cruelmente o mito de que as diferenças sociais no sistema capitalista ocorrem como forma natural de premiação pela meritocracia.

Não há diferença entre as conclusões de Piketty e as conclusões às quais chegaram centenas de pensadores de esquerda ao longo de mais de um século. Mas enquanto estes se baseiam em ideologia, princípios humanistas e noções de justiça social, o economista francês demonstra o mesmo através de números, lógica cartesiana, pesquisa exaustiva e o estudo dos mecanismos de desenvolvimento do próprio capitalismo.

americanA proposta por trás do livro não é a de derrubar ou contrapor o capitalismo, mas a de salvar o sistema capitalista da arapuca liberal concentradora. A solução passaria pelo fortalecimento do Estado como regulador implacável, dos impostos sobre ganhos de capital como mecanismos de regulação e desenvolvimento, o que contraria toda a ladainha liberal em moda há 30 anos.

Neste sentido, Piketty ousa ao não se alinhar ao pensamento hegemônico norte-americano e recebe as glórias de sua coragem. Mas a grande novidade deste surpreendente sucesso, a meu ver, não está no conteúdo do livro em si. Senão que no ambiente das sociedades pós-industriais nestes anos de profunda crise financeiro-econômica: as pessoas, mesmo conservadoras e de classe média, concordam que precisam ouvir uma nova mensagem. Talvez pela primeira vez depois dos árduos anos 1930, o cidadão comum não se sente esperançoso em relação ás possibilidades de melhora de vida no sistema capitalista.

Isso é ainda mais inusitado quando lembramos que estas novas teorias, das quais Piketty é apenas o mais famoso arauto, encontram reverberação e ótima aceitação não em países terceiro-mundistas, que sofreram décadas de processo de concentração de renda e intransponíveis fossos sociais. Mas em países que, até a crise de 2008, tinham uma classe média predominante, otimista, controlada e com aspirações de ascensão.

eua_extrema-pobrezaEm vez de apenas contrariar a noção de que democracia se equivale a liberalismo, as ideias do autor combinam com o sentimento (ele prova, concreto) do eleitor médio de que não se sente representado Estado “democrático”. Comprova-se, efetivamente o Estado passou a ser controlado pelo capital e pelas corporações, ameaçando a democracia mais do que possíveis ideias esquerdistas poderiam fazê-lo.

O sucesso de Piketty é a constatação de que a bolha de esperança, sustentáculo básico de todo o sistema capitalista, estourou. Ao perder as esperanças, a classe média acorda de uma anestesia secular, abrindo a possibilidade real de mudanças no ‘status quo’ mundial.

[N.do.E.: infelizmente, o livro está disponível apenas em inglês, não havendo ainda a tradução para o português. PM]