[N.do.E.: este é o primeiro de uma série de quatro artigos, a serem publicados sequencialmente de hoje a quinta feira. PM]

Em 1954 o cenário político brasileiro encontrava-se num momento bastante conturbado. Em agosto, o presidente Getúlio Vargas suicidara-se com um tiro no peito, e seu vice-presidente, João Café Filho, assumira a Presidência com um discurso de conciliação, congregando em seu governo, as principais forças de oposição a Vargas e ao trabalhismo. As eleições presidenciais estavam marcadas para outubro do ano seguinte e caberia a Café Filho conduzir o processo político, de transição, rumo ao pleito eleitoral que definiria o novo presidente da República.

Naquele malfadado mês, Roland Cavalcanti de Albuquerque Corbisier, um professor de filosofia, também formado em Direito pela Faculdade Nacional, no Largo de São Francisco, e ligado nos anos 1930 à Ação Integralista Brasileira, trabalhava como secretário-geral e coordenador da Assistência Técnica de Educação e Cultura (ATEC) – órgão ligado ao Ministério da Educação e Cultura[1]. Em 1954, Corbisier deixara o cargo de diretor da Divisão de Ação Social da Reitoria da Universidade de São Paulo, transferindo-se para o Rio de Janeiro, onde acabara de fixar residência, rompendo não só laços profissionais, mas também familiares.

Na ocasião, ele não desempenhava nenhum envolvimento político-partidário. Conhecera Juscelino Kubitschek, político mineiro e governador de Minas Gerais pelo Partido Social Democrático (PSD) através do poeta Augusto Frederico Schmidt, amigo em comum de ambos, na casa do engenheiro Israel Klabin. O objetivo da reunião era apresentar Juscelino a um grupo de intelectuais – paulistas e cariocas – que vinha se reunindo periodicamente na cidade fluminense de Itatiaia para discutir as principais questões nacionais e que haviam fundado o Instituto Brasileiro de Sociologia e Política (IBESP), no Rio de Janeiro. Aquele grupo de intelectuais deveria assessorar Juscelino durante – e depois – de sua campanha eleitoral, rumo à Presidência da República. Corbisier conhecia vagamente o candidato mineiro, mas simpatizara com suas propostas.

Em dezembro daquele mesmo ano, Roland Corbisier comandaria um programa radiofônico diário, na Rádio Mayrink Veiga, no Distrito Federal. O programa, que teve início em 20 de dezembro de 1954, ficou no ar até o dia 02 de junho de 1955, e tinha como objetivo discutir o cenário político brasileiro naquele momento, comentar o dia a dia dos (potenciais) candidatos à Presidência da República, além de avaliar suas propostas e contradições no período que antecedia as eleições presidenciais em 1955. Os programas assumiam uma posição notadamente legalista e principalmente de defesa à candidatura de Juscelino Kubitschek – candidato da legalidade e da ordem constitucional – nas eleições daquele ano. A série de programas fora iniciada em meio a um clima carregado de ameaças, intimidações e boatos.

Café-FilhoCorbisier vivenciara de perto os acontecimentos que antecederam a morte de Vargas. Estivera na casa de Café Filho (foto) na madrugada de 24 de agosto de 1954, levado por seu amigo Mário Pedrosa. Observara políticos e militares opositores ao governo. Seu engajamento na luta sucessória se dera, portanto, diante do suicídio do presidente e à mudança no cenário político do país. Para ele, a luta contra Vargas seria a mesma luta que se travaria contra Juscelino Kubitschek. Em suas memórias, décadas depois, seriam as mesmas forças que golpeariam a democracia em 1964.

Juscelino fora indicado, pelo diretório regional do PSD, à Convenção Nacional do partido. Era, portanto, candidato a candidato. Mas essa simples indicação já mobilizava adversários políticos – os mesmos, segundo Corbisier, que tramaram a renúncia e impeachment de Vargas, naquele ano.

Em seu primeiro programa de rádio, apresentou aos ouvintes qual seria a linha de conduta dos programas, defendendo o sentido da campanha de Juscelino à Presidência da República. Discutiu o lançamento de sua candidatura, que ia de encontro ao desejo de determinadas forças políticas, que defendiam uma candidatura única, de conciliação, de união nacional – desejo compartilhado também pelo presidente Café Filho.

“O candidato único, assim como o programa ou partido único, contrariam a essência do regime democrático, que postula a variedade , a multiplicidade de opiniões. A gravidade da situação nacional não justificaria a imposição ao eleitorado, de um só candidato, pois semelhante imposição implicaria no confisco de sua liberdade de escolha. O que assegura essa liberdade, e a possibilidade de exercê-la concretamente, é a pluralidade das candidaturas. Os partidos políticos existem para drenar e organizar a opinião pública, apresentando ao eleitorado os nomes que consideram mais representativos e mais aptos para o exercício das funções públicas.” (CORBISIER, 1976: 25-26)

Finalizava, com um aviso àqueles que desejassem tumultuar o ambiente político e eleitoral:

“Queremos deixar bem claro o seguinte: estamos dispostos a repelir com maior energia qualquer tentativa de intimidação, qualquer ameaça, venha de onde vier. Não suportamos mais essa atmosfera de terrorismo que vem se criando na capital do país. Queremos a luta, que, normal em regime democrático, é salutar, porque estimula e galvaniza. Evitaremos o debate no campo pessoal, procurando mantê-lo no plano dos princípios, das idéias, dos programas. Mas não recusaremos a luta, onde quer que ela se nos apresente. A sorte está lançada e, se não depende de nós forçar a vitória, de nós depende lutar até o fim”. (CORBISIER, 1976: 26-27)

Ao longo dos programas, Roland Corbisier centrava comentários e análises em cima de alguns nomes: Odilon Braga – deputado federal da União Democrática Nacional (UDN) no Distrito Federal e presidente do partido entre 1950 e 1952, sendo um de seus fundadores[2]; Etelvino Lins, que fora governador de Pernambuco e era ministro do Tribunal de Contas da União, indicado pelo presidente Café Filho; Carlos Lacerda – jornalista, diretor do jornal Tribuna da Imprensa, pertencente à UDN e fundador do Clube da Lanterna; e o general Juarez Távora, que integrara a Coluna Prestes e apoiara a Revolução de 1930, sendo apelidado de Vice-Rei do Norte, por causa da sua influência nas forças nordestinas que apoiaram Getúlio Vargas naquela ocasião. Anos depois, o general romperia com Vargas, conspirando a favor da queda do presidente, em 1954.

O deputado estivera presente numa reunião do Clube da Lanterna, realizada na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e fizera o discurso de encerramento, abordando o problema da sucessão presidencial, desenvolvendo a tese de que as forças democráticas não deveriam se deixar envolver pelos golpes políticos daqueles que mantiveram relações estreitas com a oligarquia que deixara o poder em 24 de agosto.[3] Naquela reunião, a Comissão Diretora Nacional do Clube da Lanterna, representada por seu presidente, Amaral Neto, e seus dirigentes Raimundo Padilha e Odilon Braga, aprovara um telegrama, que seria enviado a Carlos Lacerda – fundador do Clube da Lanterna – que encontrava-se na Europa. A seguinte nota foi distribuída para a imprensa e publicada no Diário de Notícias, em 28 de novembro de 1954:

“A Comissão Diretora Nacional do Clube da Lanterna, com a aprovação dos diretórios de São Paulo, Pernambuco e Bahia, com o referendo do Conselho Nacional, resolveu tornar pública a sua repulsa formal à candidatura do sr. Juscelino Kubitschek para a Presidência da República. Essa deliberação foi tomada tendo em vista as origens da tal candidatura. Considera o Clube da Lanterna como um acinte e uma audácia dos que exploram e roubam este país há quase vinte e cinco anos, a apresentação do nome do governador de Minas. A partir desta data, o clube realizará em todo o país sistemática campanha contra a candidatura em apreço.

(…) A candidatura Juscelino nasceu de um conluio de gregorios, viúvas, dilapidadores dos dinheiros públicos e agentes da corrupção que arrasou este país, forçando a derrota dos bravos, honestos e leais representantes do PSD de alguns Estados que, por certo, não permanecerão por muito tempo ombro a ombro com dirigentes inteiramente desqualificados para representar qualquer parcela, por mínima que seja, da opinião pública.

A candidatura Juscelino Kubitschek é a suprema tentativa dos restos da oligarquia Vargas para conseguirem com a eleição do governador de Minas, não só a impunidade para os crimes que praticaram, como também um passe livre para o retorno deste país ao regime de negociatas e favoritismos.

O lema do Clube da Lanterna nesta campanha será: “Basta de gregórios e Juscelinos”.[4]

Roland Corbisier dedicara o programa do dia 21 de dezembro a comentar a entrevista de Odilon Braga ao Diário de Notícias, quando o deputado afirmara categoricamente que a eleição de Juscelino significaria a vitória das mesmas forças ocultas e dos mesmos homens e processos que arruinaram o governo de Getúlio Vargas, e deixaram a nação no desespero, sem moeda, sem câmbio, sem repouso e entregue aos círculos infernais da inflação.[5] Odilon terminava a entrevista com a seguinte declaração: “O problema não é propriamente o de eleger um ótimo candidato e sim o de evitar, seja como for, a eleição de Juscelino e a volta da turma do golpe e da corrupção. Recebemos de pé atrás a candidatura de Juscelino, precisamente porque surgiu das maquinações do getulismo perigoso, isto é, dos getulistas que muito depressa se esqueceram do chefe morto para alegremente se dedicarem a um novo chefe.”[6]

Para Corbisier, Odilon Braga era dotado de falta de imaginação e de coerência, ao insistir no impedimento da candidatura de Juscelino. O fato de pertencer ao Clube da Lanterna colocava em dúvidas a sua credibilidade.

Em 27 de dezembro, Corbisier chamava a atenção para o clima de intranquilidade, preocupação e alarme, e boatos sobre a sucessão e um possível golpe:

“Sabemos, de fonte segura afirma que certos grupos militares, representados pelos coronéis, estariam propensos a interferir nos acontecimentos, impedindo a realização das eleições e desfechando o golpe contra o regime. Somos da opinião que o problema político deve ser posto em termos eleitorais e não em termos de violência e de pronunciamento militar” (CORBISIER, 1976: 34)

No mesmo programa, questionava José Américo de Almeida, que fora ministro da Viação e Obras Públicas de Vargas. José Américo compartilhava a idéia de que, se Juscelino renunciasse à candidatura, haveria uma conciliação favorável a uma candidatura de união nacional. Corbisier discordava dessa idéia, pois achava que a conciliação se daria em torno de um candidato imposto pela UDN ou então oriundo da órbita militar. Afinal, o PSD era o partido majoritário e quando seu diretório regional indicou o governador de Minas Gerais à Convenção Nacional, a legenda exercera apenas seu direito, num regime democrático. Portanto, qualquer proposta fora do “jogo jogado” da democracia, seria um diagnóstico de desespero da UDN.

Corbisier deixava transparecer, no programa de 29 de dezembro, que os boatos de golpe militar eram cada vez mais frequentes na capital da República. Ele temia um novo 24 de agosto:

“Se querem a ditadura, o salazarismo ou o naguibismo, deverão vencer previamente a nossa resistência, a resistência de todos aqueles que não querem a ditadura. Se querem a democracia, devem transferir a decisão para o povo e resignar-se ao pronunciamento das urnas. Pois seria contraditório e absurdo querer salvar a democracia instaurando uma ditadura” (CORBISIER, 1976: 37)

Notas:


[1] A ATEC era formada por um grupo de pensadores reunidos para analisar a situação da educação e cultura no Brasil, sugerindo ações a serem implementadas nessas áreas, fiscalizar a atuação e os projetos do Ministério da Educação e Cultura, além de servir como órgão consultivo para o ministro titular da pasta e o Congresso.

[2] Odilon Braga havia concorrido, nas eleições presidenciais de 1950, na chapa do brigadeiro Eduardo Gomes, como vice-presidente.

[3] Diário de Notícias. 25/11/1954.

[4] Diário de Notícias. 28/11/1954. p.4.

[5] Diário de Notícias. 20/12/1954. p.4.

[6] Idem.