A coluna da jornalista Milly Lacombe analisa o futebol brasileiro a partir dos lamentáveis acontecimentos do último domingo na partida entre Atlético Paranaense e Vasco.

A gente somos selvagens

Estão procurando culpados pela barbárie desse domingo em Joinville. Há até um site dedicado à busca: exibe as imagens dos selvagens e pede que quem puder as identifique. Tão eficiente quanto tratar de infecção generalizada lixando as unhas do paciente.

Para curar a doença, é preciso ir à causa. E a causa tem três letras: CBF. Os animais que protagonizaram a selvageria de ontem são o sintoma, a inevitável consequência da administração que a CBF faz do nosso futebol há décadas. Quando tratam homens como bichos, eles se comportam como bichos. É bastante simples. E é assim que nós, torcedores, estamos nos comportando há muitos anos: como bichos.

É a coisa mais fácil do mundo separar cada um de nós daqueles marginais de ontem. Mas a verdade é que somos feitos do mesmo material, somos humanos e capazes das mais grotescas atrocidades. E as instituições que poderiam nos resgatar e nos proteger de nós mesmos, inclusive com condenações e oportunidades para nos tornarmos menos brutais e mais conscientes, e depois extrair o que de melhor temos a oferecer, estão falidas.

Em campo, a selvageria do nosso jogo, corroborada por árbitros omissos, predomina faz muito tempo, e tentar separá-la do que vimos no domingo em Joinville é exercício de alienação. Futebol retranqueiro, faltoso, desleal, violento. O que vale hoje é conseguir um cartão para o adversário, simular uma falta, deixar o outro time com um, ou dois, ou três, a menos. A malandragem vestida em sua pior casaca.

Houve um tempo em que a malandragem no futebol tinha nome, e status: era o drible, a mais bela de todas as enganações. Mas hoje o drible é ofensa. Driblou, ofendeu a masculinidade do adversário, e tudo será ajustado no próximo lance, quando uma falta colocará o driblador em seu lugar. “Pra cima de mim não, seu safado. Tá querendo me humilhar?” 

E se o jogo em campo é sofrível, deixa eu olhar para o lado e ver quem é o palerma que está xingando meu time.

Enquanto isso, a juizada permite que o pau role. Cartão amarelo agora só depois da quinta falta, e olhe lá. Alguns juízes contam as faltas nos dedinhos bem explicitamente, a fim de serem flagrados por câmeras e torcedores antes de mostrar a punição, como quem diz: “Pô, cara, já é a quinta, agora vou ter que amarelar, sinto muito.” 

Por isso hoje assistimos partidas com 40, 50 faltas em 90 minutos. Jogos disputados em jardas, como o futebol americano. Bola corre, falta. Bola corre mais um pouco. Outra falta. E assim um time se aproxima da intermediária adversária. Selvagem, tediosa, acovardadamente.

Felipão deu entrevista ao New York Times na semana passada e disse que aqueles que preferem o futebol bem jogado que perde ao futebol feio que ganha são idiotas. Como se quisessem saber se prefiro dias frios de sol ou quentes de chuva. Mas eu prefiro quentes de sol, e ainda que entenda que nem todos os dias serão quentes e com sol, continuarei a preferi-los porque se trata de combinação possível.

Essa idiota que aqui escreve acredita no futebol bonito com algumas vitórias, porque não se pode ganhar sempre, embora certos pachecos não percebam isso.

Essa idiota aqui crê em filosofia de jogo, e acha que a cultura de um povo tem que ter impacto sobre a forma como se joga – e não o oposto, como pensa a CBF. E somos um povo alegre, carnavalesco, divertido e bem humorado, a despeito do que estejamos flagrando nas arquibancadas.

Arquibancadas onde, aliás, cada vez menos gente quer pagar para ver esse futebol. Os poucos que topam ir, vão sabendo que o programa não é dos mais confortáveis: banheiros imundos, estabelecimentos caindo as pedaços, campos alagados, esburacados, cheios de terra. Ou vão armados para eventos que não estão diretamente ligados ao jogo.

Ah, mas agora temos arenas. “Agora” é tarde, e deveríamos refletir: “A que custo teremos enfim meia dúzia de bons estádios? Era para ser assim? Para pagarmos por isso?”. Ter meia dúzia de boas arenas a essa altura da pancadaria é como oferecer quarto com vista panorâmica para paciente em coma.

A FIFA garante que a Copa será realizada na mais santa paz. E será mesmo. Porque, obviamente, a FIFA tá se esfolando para o que acontecerá depois da Copa. O embargo a que ela submeterá nosso pais durará um mês. Nesse período, a corporação vai lucrar como puder: com tickets, passagens aéreas, hotéis, bebidas alcoólicas, PPVs etc etc etc, e depois baterá em retirada, deixando para trás o lixo para ser recolhido pelo cidadão brasileiro.

Nada disso é novidade, aceitamos assinar o contrato, e todas as cláusulas estavam bem explicadinhas ali. Aceitamos alugar o Brasil e deixar que o inquilino faça o que bem entender durante a estadia. Por 30 dias, para lucrar desse jeito, vale uber-investir em uber-policiamento, em avenidas limpas, em moradores de rua fora de cena para garantir a beleza estética e higienizada evento. Depois… well, depois é com vocês aí, ladies and gentlemen.

Mas se nosso futebol é pobre em todos os sentidos possíveis, quem o administra é rico. A CBF dos contratos milionários é riquíssima, e é riquíssima há anos. Ainda assim, foi incapaz de abrir mão da santa margem de lucro em nome do desenvolvimento do futebol no Brasil: estádios modernos, gramados e iluminação decentes, treinamento de juízes, filosofia de jogo, apoio às bases, incentivo à manutenção de craques no Brasil etc etc etc.

E nossa presidenta tem a cara-de-pau de continuar a dizendo ao mundo que somos o país do Futebol. Não somos, Presidenta. Somos o país dos desvios, dos helicópteros cheios de cocaína sem dono, dos cartéis de trem, dos mensalões, dos Sarneys e Barbosas, dos julgamentos para inglês ver, dos mandos e desmandos, mas não mais do futebol.

A briga que assistimos horrorizados nesse domingo (e para a qual deve haver punição, é bom deixar claro antes que me xinguem por defender marginal) começou em 1979, quando a CBF nasceu, e não está perto de terminar. Prendam os vândalos, punam os clubes, multem quem quer que seja. A grande barbárie do nosso futebol não está descamisada, com porretes nas mãos e de pé nas arquibancadas, mas engravatada e sentadinha em salas com ar condicionado dentro de luxuosas instalações na Barra da Tijuca.

(Foto: Uol)