Neste sábado, mais uma edição da coluna de contos sambistas do compositor Aloisio Villar.

O prédio

Enquanto Feitosa lamentava e contava dos predicados de Sheila eu olhava o jornal. Com a chamativa manchete “Pagando a Chantagem” a reportagem dizia que Nicanor ainda estava no hospital em coma induzido e Rico tomara alta, mas foi preso devido à chantagem que fez com Sheila e a levou à morte.

Logo depois Feitosa fechou a banca e sentou-se conosco no bar para beber. Almeidinha nos serviu e comentou que faltavam duas semanas pra desocuparem o bar e Manolo recebera a segunda parte da venda. Só faltava a terceira que pagariam no ato da desocupação. Lamentei o que parecia ser inevitável, o fechamento do bar. Almeidinha se perguntava o que fazer da vida, pois sempre trabalhou ali. Feitosa riu e comentou que o garçom já era um patrimônio histórico, devia ser tombado.

Ri da piada. Parei pra pensar um pouco e me levantei dizendo que precisava telefonar. Dei um telefonema para uma pessoa importante que há tempos não conversava e voltei para beber.

Enquanto bebíamos e comíamos umas calabresas meu pai comentou que duas semanas era também o tempo para o casamento da Bia. Peguei uma linguicinha e “agradeci” meu pai por lembrar. Almeidinha estranhou e perguntou “Ué, sua mulher vai casar?”. Respondi “Sim, só não sei quem será a noiva”. O garçom nada entendeu e meu pai disse que era besteira minha.  Batemos papo por mais um tempo e meu pai reclamou de dor de cabeça.

Perguntei se queria ir embora e ele respondeu que sim. Paguei a conta e partimos. Fomos em silêncio até sua casa e quando ele desceu pedi que fosse ao médico ver os motivos dessa dor de cabeça. Andando em direção a porta meu velho falou “verei, verei”. Senti um aperto no coração vendo meu pai caminhar para casa e me preocupei com “meu negão”. Sim, sou branco e meu pai é mulato. Minha mãe era branca e sou fruto da miscigenação que tanto marca esse país. Que faz o Brasil, que faz nosso carnaval.

A semana prosseguiu. Chegava mais próximo o casamento de Bia e o fechamento do “casa de bamba”. A fase não estava nada boa para mim. Quer dizer, tinha coisas boas ocorrendo também. O Fantástico aproveitou o gancho de minha reportagem e fez matéria sobre tráfico humano. Três dias depois meu telefone tocou freneticamente em uma manhã.

Atendi e era do jornal mandando que eu ligasse a televisão. Atendi e tive uma grande e agradável surpresa. Na Globonews passava reportagem do desbaratamento de uma quadrilha que traficava pessoas e um homem algemado. Era o Rubens. Também mostraram mulheres resgatadas, uma escondia o rosto, mas pelo corpo e a foto que vi lembrava muito Mariana.

O telefone tocou de novo e era Andressa chorando e agradecendo por tudo que fiz. Realmente era Mariana e ela estava livre. Orgulhoso, respondi que ela não precisava agradecer porque apenas fiz meu papel. Poucas vezes me senti tão orgulhoso na vida. Poucas coisas me senti tão feliz de ser eu.

Fui para a redação do jornal e me receberam com aplausos. Meu chefe me chamou até sua sala e me deu um abraço. Ele nunca nem apertara minha mão.

Sentei em meu local de trabalho e recebi um SMS. Era da Bia dizendo “Estamos orgulhosas de você”. Eu estava com a alma lavada. Faltava o contato de seu Jair, mas de certa ele aproveitara pra dormir mais um pouco. Entretido com o trabalho ouvi um “Ta com tudo hein magnata?”. Quando olhei era Luisinho, o estagiário. Ri e brinquei “Fala aí comilão”. O rapaz sentou-se ao meu lado e disse que eu estava com moral, tanto que merecia uma história nova.

Perguntei quem ele tinha comido daquela vez. O rapaz respondeu que ninguém, mas tinha gente que comera e se dado mal.

Estava falando de Gentil. Homem que entendia tudo de carnaval. Foi harmonia, compositor, mestre-sala, cantor até que virou diretor de carnaval. Nas horas vagas trabalhava em um escritório de arrecadação de direitos autorais no centro do Rio.

Começou pela Villa Rica. Tradicional escola de Copacabana, passou pela Leão de Nova Iguaçu até que parou na Acadêmicos do Cubango. Escola de belos sambas de Niterói. Casado com Djanira. Baiana da Acadêmicos do Sossego, também de Niterói o que levou o destino do casal para lá.

Alugaram uma casa na cidade pra facilitar a vida e Gentil ia trabalhar no Rio pegando barca e apreciando a natureza como sempre gostou. Não tinham filhos então podiam curtir o samba. Djanira era a responsável pela feijoada do Sossego, a mulher era muito boa na cozinha e dizem que prendeu Gentil pelo estômago.

Gentil conheceu Djanira fora do samba. Alguns anos antes na Estudantina, famosa casa de gafieira no Rio de Janeiro. O homem sempre foi um sedutor, pé de valsa de primeira. Viu a baiana em um canto e rapidamente lhe chamou pra dançar.

Ambos eram viúvos. Djanira por sinal três vezes e em algumas semanas o homem já chegou de mala e cuia na casa da baiana. Era tratado como um rei com Djanira preparando na cozinha todas as coisas que Gentil adorava. O sambista arrumara a sorte grande.

Eram um casal respeitado, casal 20 pro mundo do samba e Gentil considerado um diretor de pulso firme, mas respeitador. Produtor de grandes carnavais foi convidado pelo presidente Pelé pra assumir o comando da Cubango. Era a grande chance de sua carreira, botar a Cubango no especial.

Com a mudança para perto da quadra passava o dia inteiro na agremiação. Uma parte do tempo na quadra, outra no barracão. Gentil era do tipo que dizia que o gado só crescia com o olho do dono. Era implacável nos ensaios de comunidade. Botava os desfilantes da Cubango pra ensaiar três vezes por semana. Queria tudo certo pra Sapucaí tanto que pediu licença no escritório pra se dedicar apenas a Cubango.

Mas tem um detalhe da personalidade de Gentil que eu ainda não contei. O homem era safado. Consertando: era muito safado.

Mulherengo desde pequeno quando era “acalentado” pelas amigas da mãe Gentil não podia ver um rabo de saia. Seja velha, nova, alta, baixa, gorda, magra, vascaína ou botafoguense o homem não queria saber. Queria “passar o rodo”. Mas sabia ser discreto. Apesar de rolar burburinhos quase nada chegava a Djanira e quando chegava o homem se exaltava e respondia que era inveja por ele ter uma mulher maravilhosa como a baiana.

Cínico ainda completava “Deixa que falem, a inveja deles faz a minha fama”. E claro que Djanira caía no conto do vigário. Como eu disse antes Gentil era sedutor, galanteador e era capaz até de convencer pastor evangélico a ir a terreiro. Chegava sempre em casa com um buquê de flores, uma caixa de bombom que adocicava a mulher e lhe dava tempo porque enquanto ela estava nas nuvens com tanto galanteio ele lavava a camisa que tinha marca de batom.

O homem era demais e em um desses ensaios da Cubango encontrou uma nova “presa”.

Viu um menino chorando, devia ter uns dez anos e perguntou qual era o problema. O garoto respondeu que se perdera de sua mãe. Gentil pediu que alguns harmonias procurassem pela mulher enquanto ele tomava conta do menino. Enquanto conversava com o garoto e lhe acalmava apareceu uma mulher dizendo graças a Deus por encontrar seu filho. Uma loura com mais ou menos trinta anos, balzaquiana linda que imediatamente balançou o coração safado de Gentil.

Gentil deu um sorriso e comentou com o menino “pronto, aí está sua mãe”. A loura agradeceu ao homem por ter cuidado de seu filho e claro que Gentil aproveitou pra puxar assunto comentando que nunca lhe vira por lá. Apresentou-se como Gentil, diretor de carnaval da escola e a loura disse que se chamava Madalena e o filho começara naquele dia na ala mirim da escola.

O diretor achou interessante e perguntou se ela não iria desfilar na agremiação. Madalena respondeu que não, não tinha dinheiro pra comprar fantasia, nem tempo pra ensaiar três vezes por semana com a comunidade e assim Gentil deu o endereço do barracão para ela pedindo que comparecesse no dia seguinte que daria um jeito.

O carnaval estava próximo, mas ele daria um jeito. Ah se daria… No dia seguinte a mulher estava no barracão e Gentil perguntou se ela queria sair em carro alegórico. Madalena irradiou felicidade e o homem, charmoso, disse que seria tudo como ela quisesse.

Madalena entendeu o jogo e gostou. Falou ao homem que topava e nem sabia como agradecer. Gentil respondeu que pensara em várias formas de agradecimento e a loura disse que também, mas só podia depois do carnaval.

O diretor chamou auxiliares e pediu que tirassem as medidas da nova componente do carro. Madalena mandou beijinho para o homem, saiu com os auxiliares e exultante Gentil falou sozinho “esse carnaval tem que passar logo”.

O carnaval chegou e a Cubango fez um belo desfile, muito cotada para vencer o carnaval. Enquanto todos cumprimentavam Gentil pelo desfile Madalena passou por ele e disse em seu ouvido “quarta eu posso, me ligue”. O homem vibrou, mas depois lembrou que era o dia da apuração. E aí? Como fazer? Ligou para a mulher tentando marcar para outro dia, mas não teve como. Só podia quarta de tarde.

Na terça pensativo Gentil chegou em Djanira e comentou que não iria à apuração. Espantada a esposa perguntou o motivo e o diretor mentiu contando que fora convocado para trabalhar no escritório. Na verdade ele só voltaria segunda, mas resolveu “antecipar” para a esposa.

A Cubango se reuniu em uma mesa na Apoteose com a expectativa de subir. Djanira lamentava que o marido não estivesse lá e tivesse que trabalhar em momento tão importante quando notou que as pessoas não paravam de olhar para ela e lamentar. Djanira perguntou qual era o problema. Ninguém tinha coragem de falar até que uma senhora teve e disse “O prédio onde fica o escritório que o Gentil trabalha desabou”.

A mulher ficou branca, quase desmaiou, tiveram que dar água, abanar Djanira que ficou perto de um enfarte. A mulher chorava em desespero imaginando seu marido nos escombros quando alguém deu a idéia “liga pra ele!!”. Outro respondeu que ele não teria como atender soterrado, mas a pessoa insistiu falando que poderia ocorrer um milagre. Djanira respirou fundo e com lágrimas nos olhos comentou “custa nada”.

Ela ligou e o safado atendeu. Gentil estava no motel “Carinhus” localizado na Baixada Fluminense, bem distante de tudo. Em desespero Djanira perguntou “onde você está homem?” e sem saber de nada Gentil respondeu “Ora aonde, trabalhando ué?”.

Djanira engoliu o choro e desligou o telefone. Uma pessoa se aproximou e perguntou se Gentil estava vivo. A mulher respondeu.

“Por enquanto sim”.

Parece que Djanira ficaria viúva pela quarta vez.