A sexta coluna da série “Sambódromo em Trinta Atos”, do jornalista esportivo Fred Sabino, remete ao ótimo desfile de 1989, no qual a luxuosa Imperatriz Leopoldinense e a “esfarrapada” Beija-Flor travaram um duelo inesquecível, vencido pela primeira, num dos resultados que mais discussão gera até hoje entre sambistas e amantes do Carnaval carioca.

1989: No ano que não terminou, foi a Imperatriz que levou

Antes de tudo, amigos, peço licença ao companheiro Aloisio Villar para pegar emprestado de uma belíssima coluna dele o título para o texto desta semana. Afinal, um dos Carnavais mais comentados até hoje nas mesas de bar, mesas redondas, rodas de samba ou fóruns de internet é aquele de 1989. Não sem motivo, como relembraremos adiante.

Em diversas áreas da sociedade, aquele 1989 foi também marcante. Para os torcedores do Botafogo principalmente, pois o jejum de 21 anos sem título acabou com o famoso gol de Maurício sobre o Flamengo. Para os fãs da Fórmula 1 também, graças ao embate entre Alain Prost e Ayrton Senna, vencido pelo francês após este ter causado uma colisão na penúltima prova da temporada, no Japão.

O começo de 1989 também é lembrado por mais uma troca de moeda, no caso o cruzado novo. Mas a inflação continuava firme e forte… Acabar com esse monstro, aliás, era o desafio dos candidatos à primeira eleição presidencial direta desde 1960. No fim, venceu Fernando Collor de Mello, que seria defenestrado do cargo em 1992.

Também em 1989, o Muro de Berlim foi colocado abaixo num símbolo da reunificação da Alemanha e do inevitável naufrágio do Comunismo.

Por aqui, o ano já começou também com um naufrágio, mas este, lamentavelmente, de verdade. A embarcação Bateau Mouche IV afundou na Baía de Guanabara durante os festejos do réveillon – o barco estava com mais do que o dobro da lotação, além de ter diversos problemas de infraestrutura. No fim, 55 dos 142 ocupantes morreram na tragédia.

Sócio de um dos empresários responsáveis pelo Bateau Mouche, Chico Recarey seria um dos homenageados no desfile de 1989, vejam só, pela Estação Primeira de Mangueira. Na época, Recarey era considerado o rei da noite carioca e a escola exaltaria a “Trinca de Reis”, formada por ele, Walter Pinto e Carlos Machado.

Nunca ficou provado, mas muitos disseram à época que Recarey, no auge da fama, teria, digamos, “investido” no desfile. O Baile da Verde e Rosa, diga-se de passagem, acontecia no Scala, famosa casa noturna de Recarey no Leblon, Zona Sul do Rio. Se o enredo por si já era polêmico, o samba escolhido então foi considerado pavoroso pela crítica.

Se a vice-campeã de 1988 estava envolta em críticas, a campeã Vila Isabel recebeu total apoio ao escolher o enredo “Direito é Direito”, sobre os 40 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O samba era dos melhores do ano, mas a escola ainda sofria com a falta de quadra e recursos.

Quem chegava debaixo de muita expectativa era a União da Ilha, com o enredo “Festa Profana”, sobre a história do Carnaval. O samba era muito popular e já estava na boca do povo antes mesmo do desfile. O refrão central, então, era daqueles que grudavam no ouvido: “Eu vou tomar um porre de felicidade/Vou sacudir, eu vou zoar essa cidade”.

A Beija-Flor apostava num enredo extremamente crítico socialmente, sobre o “luxo do lixo” e o “lixo do luxo”. Joãozinho Trinta confeccionou uma alegoria com um Cristo Redentor mendigo e, nos dias que antecederam o desfile, a Igreja conseguiu vetar o carro na Justiça. Mas João prometia levar a alegoria assim mesmo…

Outras escolas tradicionais também vinham com bons enredos e/ou sambas, e esperava-se boas apresentações de Salgueiro, Portela e Império Serrano. A Imperatriz Leopoldinense, depois de escapar do rebaixamento virando a mesa, prometia se recuperar com um samba antológico e o enredo “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”, sobre o centenário da Proclamação da República.

Como nenhuma agremiação acabou rebaixada no Carnaval anterior, 1989 marcou um recorde no número de escolas desfilantes: 18, com o retorno de Arranco e Unidos do Jacarezinho ao primeiro grupo.

OS DESFILES

A escola do Engenho de Dentro abriu bem o desfile de domingo com o enredo “Quem vai querer?”, no qual papéis históricos eram invertidos: por exemplo, os índios exploravam os colonizadores, as aves voavam livremente enquanto os homens ficavam engaiolados e o jogador de futebol negociava o dirigente.

O agradável samba dos compositores Sylvio Paulo, Juan Espanhol e Jarbas da Cuíca foi muito bem cantado e tinha um belo verso que sintetizava o enredo: “E no avesso que criei/Você pode ser o rei desta folia”. 

A escola parecia com boas chances de permanecer no grupo, mas infelizmente o desfile acabaria marcado pelo acidente da destaque Neuza Monteiro, que caiu de um carro alegórico na dispersão e, dias depois, viria a perecer.

Em seguida, passou a Unidos do Cabuçu, homenageando Milton Nascimento com um bom samba-enredo mas sem um conjunto estético dos melhores. O carnavalesco Alexandre Louzada deixou a escola no meio da preparação, que ficou a cargo de Beto Sol, e a agremiação não tinha tantos recursos.

Como Milton só aceitou ser homenageado se o desfile fosse ecologicamente correto, ou seja, sem plumas e enfeites de origem animal, o trabalho do carnavalesco ficou ainda mais limitado.

Mas, como já vinha sendo praxe na escola, foi mais um enredo em homenagem a uma personalidade da cultura brasileira e por isso a assimilação para o público foi fácil, já que a divisão de carros e alas foi coerente. Uma apresentação simpática.

Já a Unidos da Ponte, ao contrário de anos anteriores, não tinha no samba-enredo o seu ponto forte, a despeito de contar com o grande Aroldo Melodia como intérprete para a trilha sonora do enredo “Vida que te quero viva”, sobre a preservação da natureza.

Tradicionalmente uma escola sem muito dinheiro para o barracão, a Ponte voltou a passar com alegorias e fantasias bastante simples. Com isso, a simpática escola de São Mateus era candidata ao descenso já que quatro agremiações seriam rebaixadas.

A primeira das grandes a entrar na pista foi a Mocidade Independente de Padre Miguel, com uma homenagem a Elis Regina. Sem contar com Fernando Pinto na confecção do desfile, a escola foi bem em fantasias mas nem tanto em alegorias – inclusive um carro quebrou ainda na concentração e nem passou.

O longo samba era muito agradável, sobretudo no refrão principal “Agora sou uma estrela/Trago um sorriso de amor e de verdade/Eu sou o samba/Sou a Mocidade”, e a Bateria Nota Dez como de costume o sustentou com muita firmeza no que seria o último desfile do cantor Ney Vianna, morto meses depois.

Cercada de boas expectativas após a ótima estreia em 1988, a Tradição voltou a se apresentar com um excelente samba de João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro sobre o Rio de Janeiro.

Mas a escola não repetiu a boa exibição, muito por conta de problemas de evolução causados pelo excesso de alas coreografadas e pela demora na entrada devido ao longo grito de guerra, que só acabou quando o cronômetro já apontava mais de cinco minutos de desfile.

ilha1989Pouco antes das 4h30 de segunda-feira, a União da Ilha entrou com tudo na avenida. O samba de J.Brito, Bujão e Franco (este sem assinar) – ou marchinha “descarada e sem-vergonha” na opinião do comentarista da TV Manchete Fernando Pamplona – explodiu como se esperava e a Tricolor fez a melhor exibição até aquele momento.

A escola contou os origens do Carnaval desde os séculos passados, passeando por outras manifestações que remetessem ao que nós conhecemos como a Folia de Momo. Falando nele, a comissão de frente tinha seus componentes representando o rei da folia. O bonito carro “Carruagens de Fogo” seguiu o cortejo, com fumaça saindo da parte traseira e coloração alaranjada representando o sol da Ilha. Logo depois, alas de pierrôs, arlequins e colombinas mostravam os personagens do Carnaval.

Outros belos elementos mostraram a folia no Egito, em Roma e em Veneza. Na alegoria que representava a Grécia, quem fez a festa de forma, podemos dizer, um tanto desinibida, foi a modelo Enoli Lara (foto), completamente nua… Em 2015, ela escreveu o pósfácio do livro “As primas sapecas do samba”, dos jornalistas Anderson Baltar, Eugênio Leal e Vicente Dattoli (ed. Nova Terra), sobre Caprichosos, São Clemente e União da Ilha. No texto, a ex-modelo, que havia tido relacionamento com Paulo Roberto Falcão, comentou o nu total no desfile da Ilha: ilha89

“Convidada pelo carnavalesco Ney Ayan para encarnar Afrodite na avenida, fiquei à vontade para criar minha fantasia. Passara o domingo do desfile fazendo amor com o ‘Rei de Roma’. Na avenida, senti-me como um totem espargindo energia sexual, vibrações e emanações amorosas na orgia sacro profana. O carro alegórico reproduzia um templo, e eu, no alto trazia nos braços uma capa de musseline transparente, que, em movimentos dançantes, num abrir e fechar de braços, exibia por segundos a nudez total. Todos enlouqueciam diante da minha passagem. Amigos, repórteres, fotógrafos, cinegrafistas, seguranças movimentavam-se desordenadamente. Mas os olhares hipnotizados se mantinham fixados no meu centro gozoso.”

Com ótimo conjunto visual, a Ilha teve uma evolução vibrante do começo ao fim, amparada pela sabidamente esplêndida bateria e pela atuação engraçada e contagiante do intérprete Quinho, que era o cantor principal da escola apenas pela terceira vez – as primeiras haviam sido em 1985 e 1988. Certamente a escola brigaria pelas primeiras colocações.

Já com o dia clareando, a Caprichosos, sem o intérprete Carlinhos de Pilares (que se transferiu para a Unidos do Jacarezinho), entrou com o enredo chamado “O que é bom todo mundo gosta”, que criticava a exportação desenfreada e o repasse de nossas riquezas.

Renato Lage e Lílian Rabelo fizeram um bom conjunto de fantasias e alegorias, com destaque para o abre-alas, no qual existia um cais do porto em que tudo em que era nosso ia embora, e o carro das artes e cultura, com esculturas de mestre Vitalino e de cerâmica da Ilha de Marajó.

Como era característica dos carnavalescos, havia muitos tripés identificando os setores do enredo, que bateu pesado também na exportação do nosso petróleo e no desmatamento da Amazônia. Agradou também o carro que tinha o Congresso Nacional sendo roído por ratos. Bem atual, não?

Lamentavelmente o samba-enredo não ajudou e a escola passou bem mais fria do que de costume. Além disso, a evolução não foi das mais coesas, mas as expectativas eram boas para a apuração.

Salgueiro-1989Ex-carnavalesco da Caprichosos, Luiz Fernando Reis era o responsável pelo desfile do Salgueiro, que o Migão já comentou no blog. E, ao contrário da temática descontraída e crítica que executava em Pilares, ele desenvolveu o enredo “Templo Negro em Tempo de Consciência Negra”, no qual relembrava os enredos afro apresentados pela escola em anos anteriores e questionava, a exemplo do que fizera a Mangueira em 1988, a realidade da abolição.

O resultado na pista foi absolutamente espetacular. Com fantasias luxuosas e extremo bom gosto, o Salgueiro entrou com tudo e os componentes cantaram com força o excelente samba interpretado por Rixxa, que ganharia o Estandarte de Ouro de melhor puxador daquele ano.

O conjunto alegórico também foi muito bem concebido e o acabamento estava à altura. Luiz Fernando Reis também lançou mão de diversos tripés e alegorias de mão, que deram ótimo resultado. O abre-alas era chamado “Templo Negro” e tinha muitas panteras, e este elemento era sucedido pela belíssima alegoria “Navio Negreiro”.

Mas o destaque do cortejo foi o carro que representou o enredo “Bahia de Todos os Deuses”, de 1969, todo em branco e tendo como destaque Paula do Salgueiro. Nesse mesmo setor, vinha a exuberante ala das baianas, com um figurino claro.

A Vermelho e Branco se colocou como uma das candidatas ao título, mas acabou pecando num aspecto fundamental: evolução. Como desfilava com mais de 5000 componentes, a agremiação teve dificuldades para dar vazão a esse povo todo.

Os principais problemas foram verificados na (belísssima) ala das crianças estava coreografada com o minueto e na entrada da bateria no recuo, pois houve primeiro indecisão e depois uma pressa para o movimento.

A Vermelho e Branco teve de correr para não estourar o tempo e conseguiu a duras penas, mas mesmo assim foi aclamada como a melhor escola de domingo, logo à frente da União da Ilha.

Sob chuva moderada, encerrou o desfile de domingo a Mangueira. Como já foi escrito no começo do texto, a escola chegou ao sambódromo cercada de críticas. E o desastre na avenida se confirmou, com uma série de equívocos.

Embora os componentes estivessem possuídos cantando o fraquíssimo samba-enredo puxado por Jamelão, Sobrinho e Eraldo Caê, a Verde e Rosa fez uma das piores apresentações de sua história, com um enredo que desagradou desde o anúncio.

As fantasias ainda estavam razoáveis, mas o conjunto alegórico tinha problemas de concepção, com muita coisa em preto se misturando ao verde e ao rosa, e formatos pouco atraentes e criativos. Isso sem contar os problemas de acabamento causados pela chuva. Pena que o saudoso carnavalesco Julio Matos, falecido em 1994, tenha se despedido assim da Mangueira.

No desastre mangueirense, salvaram-se apenas a harmonia e a bateria, bastante firme o tempo todo e que rendeu um desfile ao menos animado – até hoje os mangueirenses riem (para não dizer chorar)  do verso “Mas hoje tem o Chico Recarey”, sucedido por um caco hilário de Sobrinho: “RE-CA-REYYYY”. No fim, parte do público invadiu a pista no famoso arrastão (na época essa palavra ainda não tinha conotação de assalto…).

Em vez de começar com um arrastão, a segunda-feira surgiu com um arrastado e problemático desfile da Unidos do Jacarezinho, com o confuso enredo “Mitologia, Astrologia, Horóscopo, uma benção para o Carnaval Brasileiro”.

A ideia era contar na avenida como os astros influenciavam a vida humana. Mas o conjunto alegórico, embora numeroso, não tinha grande destaque e a divisão cromática não agradou – talvez a escola pudesse ter desfilado mais enxuta para dividir melhor seus recursos, já que estava voltando à elite e não tinha o hábito de se apresentar com muitos componentes e alegorias.

Pra piorar, nem a competência de Carlinhos de Pilares e Luizito salvou do arrastamento o samba-enredo, um dos mais pavorosos já vistos nos desfiles do primeiro grupo. Salvou-se a bateria, e só. Num desfile com quatro rebaixadas, o descenso era dado como certo.

Em seguida a Imperatriz Leopoldinense se recuperou do terrível desfile de 1988 com, talvez, a melhor exibição de sua história. Com Dominguinhos do Estácio de volta ao microfone da escola, o espetacular samba de Niltinho Tristeza, Preto Joia, Vicentinho e Jurandir, que já era aclamado pela crítica, caiu no gosto do público de cara e proporcionou uma evolução vibrante do começo ao fim do desfile.

A bateria esteve impecável, com um andamento rápido, mas na medida certa, e o naipe de tamborins se destacava, por “falar” bem alto e por apresentar ótimos desenhos e convenções. Uma novidade na sustentação do samba era o banjo acompanhando o cavaquinho.

Reestreando na Rainha de Ramos (pois já havia tido passagem nos anos 70), o carnavalesco Max Lopes deu uma aula de como se deve conceber plasticamente um desfile de escola de samba, tanto em alegorias como em fantasias.

imperatriz892O cartão de visitas da Imperatriz foi uma série de tripés simbolizando as asas da liberdade. O abre-alas tinha uma enorme e simplesmente espetacular coroa  espelhada (foto ao lado), que dava um belíssimo impacto visual. Outro carro que chamava a atenção era o de Duque de Caxias, bastante alto (foto acima), com diversos cavalos montados por destaques, um deles assustadoramente alto diga-se de passagem.

Chamou muito a atenção também a alegoria que representava a Carta Magna de 1891. De tão perfeita, parecia que a escola havia conseguido com alguém o documento original e tirado uma cópia bastante ampliada.

O desfile passeou com perfeição pela época imperial que precedia a proclamação da República, com figurinos de extrema fidelidade, bom gosto e acabamento.

Embora houvesse certa discussão à respeito da abordagem política do enredo, fato é que Max Lopes e a Imperatriz proporcionaram um desfile arrebatador em todos os aspectos.

Pela primeira vez naquele Carnaval, o público se manifestou com mais entusiasmo, cantando a plenos pulmões e agitando os braços nas arquibancadas, principalmente no refrão principal.

Por isso, e pela grandeza de sua apresentação, a Verde e Branco, depois da lanterna em 1988, se tornou candidatíssima ao título de 1989, até porque não teve os problemas de evolução que o Salgueiro apresentou.

A Unidos da Tijuca foi outra escola que se saiu bem nos quesitos visuais ao defender o enredo “De Portugal à Bienal no País do Carnaval”, sobre as artes plásticas no país. Mesmo sendo um tema talvez erudito demais para o público, tudo foi dividido com bastante coerência.

O carnavalesco Mário Monteiro optou por dividir cada quadro do enredo com reproduções de pinturas famosas, no que obteve êxito. Mas o grande destaque do desfile foi o carro “Favela dos Meus Amores”, que simbolizava o quadro de Heitor dos Prazeres.

Outro ponto alto foi a atuação da bateria de Mestre Marçal, já que o samba-enredo não era lá essas coisas e a evolução não foi das mais vibrantes. Mas a Tijuca deixava a pista certa de estar bem longe das últimas posições, o que era uma vitória já que a escola tentava voltar a se firmar na elite.

Crítica como de costume, a São Clemente levou à passarela o enredo “Made in Brazil, Yes Nós Temos Banana”, que tinha temática semelhante, para não dizer, igualzinha à da Caprichosos de Pilares. E no confronto direto, a Azul e Branco claramente levou a melhor.

A começar pelos quesitos plásticos, nos quais o conjunto clementiano teve um dos poucos pontos altos o abre-alas, no qual caixotes (de exportação, claro) formavam o Pão de Acúcar, numa solução bem criativa. Outro elemento interessante era o que mostrava Serra Pelada.

Mas o desfile acabou se perdendo depois que o carro da caravela portuguesa quebrou e ficou empacado na lateral da pista. As alas tiveram de passar ao lado do carro, que voltou a andar mas ficou fora de posição no desfile. Isso, claro, causaria despontuações em Evolução, Enredo e Alegorias e Adereços.

Como o samba também era bem mais fraco em relação aos dos anos anteriores, não foi uma evolução das mais vibrantes e a São Clemente provavelmente ficaria do meio para trás na tabela.

Outra que teve exibição irregular foi a Estácio de Sá. O enredo “Um, Dois, Feijão com Arroz”, sobre os dois elementos que não podem faltar na mesa dos brasileiros. A carnavalesca Rosa Magalhães até que concebeu belas alegorias e fantasias, com destaque para o lindo carro do Japão, país no qual o arroz é bastante utilizado na alimentação.

Mas o enredo foi contado desde as origens do feijão e do arroz, e falou demais sobre os locais em que os alimentos surgiram, tornando a explanação confusa. No fim, havia uma ala inteira com camisas do Fluminense para lembrar o pó de arroz usado pela torcida tricolor no Maracanã, o que tornou o feijão com arroz mais uma salada.

O samba-enredo era quilométrico, ao contrário do que a própria Estácio vinha fazendo, e a harmonia não foi das melhores. Para piorar, a evolução também foi arrastada e a bateria passou reto pelo recuo, o que atrapalhou ainda mais a harmonia. Enfim, um típico desfile de meio de tabela.

Por outro lado, o samba da campeã de 1988 Vila Isabel para o enredo “Direito é Direito” era excelente e certamente proporcionaria emoções na avenida. Grande emoção foi sentida já na apresentação da comissão de frente, formada por mulheres grávidas simbolizando o direito à vida.

Os direitos da liberdade de expressão, liberdade ao credo, liberdade à alimentação, enfim, todos os direitos que faziam parte do enredo foram transmitidos com bastante correção.

Mas os problemas com algumas alegorias, que desfilaram fora da posição prevista, acabaram atrapalhando a apresentação da escola, que, no entanto, manteve o pique até o fim e deixou ótima impressão apesar dos percalços.

Já com o dia clareando, a Portela questionava a versão oficial sobre o Descobrimento do Brasil com o enredo “Achado não é roubado”. O samba era um pouco inferior ao dos anos anteriores (convenhamos, o nível da Portela sempre foi altíssimo) mas a bateria esteve bastante cadenciada e firme.

O carnavalesco Silvio Cunha levou ao público os povos que podem ter chegado ao país antes dos portugueses, como vikings, assírios, chineses, entre outros. Plasticamente a Portela passou muito bem e a expectativa era a de que a escola ficasse bem colocada, embora o desfile não tenha sido tão bom quanto os de Imperatriz, Salgueiro e Ilha.

A penúltima escola a desfilar no longo Carnaval de 1989 foi a Beija-Flor de Nilópolis. Para muitos, foi o maior desfile já visto na história do Carnaval. Para mim, como já escrevi no Ouro de Tolo, apenas Kizomba superou “Ratos e Urubus, larguem minha fantasia”, do gênio Joãozinho Trinta.

Para contextualizar esse desfile, vale lembrar que o carnavalesco sempre foi muito criticado pelo excesso de luxo nos seus trabalhos. Diziam os detratores de João 30 que o Carnaval estava sendo descaracterizado e o samba deixado de lado em detrimento dos quesitos plásticos. João não aceitava essas críticas e certa vez respondeu: “Pobre gosta de luxo, quem gosta de pobreza é intelectual”.

Pois bem, em 1989 Joãozinho resolveu fazer uma crítica social bem eloquente e, ao mesmo tempo, mostrar que sabia fazer Carnaval sem luxo. O objetivo dele era mostrar o que de podre tinha o luxo e o que o lixo representava de verdade. Todos os tipos de lixo, concretos ou abstratos, seriam colocados no desfile da Beija-Flor, desde o que havia de lixo nas guerras, no sexo, nos brinquedos e até na imprensa.

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O Cristo Mendigo, de fato, não poderia ser exibido no desfile e uma solução genial foi encontrada por Laíla (apesar de João ter dito que a ideia foi dele): cobri-lo com um enorme plástico preto e um cartaz, segundo o próprio João disse na concentração em entrevista à TV Manchete, mais impactante do que a própria alegoria: “Mesmo proibido olhai por nós”.

Com este choque inicial, a Beija-Flor, quem diria, entrou na avenida com mendigos, sucatas e farrapos. Apenas depois, conforme o desfile entrava na parte do “lixo do luxo”, a divisão cromática mudou, com tons de rosa, preto, dourado e azul tomando conta de fantasias e carros, todos superpertinentes ao enredo.

beijaflor89aOs componentes, evidentemente, empolgados com a catarse que acontecia, cantaram o samba por toda a pista com muita vontade, e o público acompanhava. Samba que, diga-se de passagem, não era tão poético como os de Imperatriz e Salgueiro, por exemplo, mas deu conta do recado com valentia.

Outro ponto emocionante do desfile foi a apresentação simultânea de oito casais de mestre-sala e porta-bandeira, que no fim se uniam numa roda e saudavam o público.

Joãozinho Trinta e outros componentes da diretoria desfilaram fantasiados de garis da Comlurb e o carnavalesco se divertiu com uma mangueira de água. Extasiado, João 30 chegou à Praça da Apoteose com a escola recebida com gritos de “é campeã”. Um desfile inesquecível.

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Depois do choque causado pela Beija-Flor, o Império Serrano encerrou o Carnaval-89 com uma bela homenagem a Jorge Amado. Com Silvinho do Pandeiro no microfone pela primeira vez na escola, e pela última vez num desfile, o Império fez um passeio pelos romances do escritor e aspectos típicos da cultura baiana, e passou bem.

REPERCUSSÃO E APURAÇÃO

Terminado o desfile, a expectativa era a de que Beija-Flor, Imperatriz e Salgueiro brigassem pelo campeonato. E uma tensa apuração rende polêmica até hoje, mais de 25 anos depois.

Em cada quesito, a menor nota seria eliminada. No entanto, em caso de igualdade entre duas ou mais escolas, essas notas descartadas teriam peso para o desempate. E aí a Beija-Flor perdeu o campeonato.

Num julgamento marcado por inúmeras distorções em quase todos os quesitos envolvendo várias escolas, Imperatriz e Beija-Flor empataram em 210 pontos, mas, como a escola de Nilópolis havia descartado mais notas nove, a Verde e Branco levou o título.

Uma nota em especial revolta a comunidade nilopolitana até hoje. O jornalista João Máximo aplicou nota nove ao samba da Beija-Flor alegando que o refrão “Leba larô, ô ô ô ô/ Ebo lebará laiá laiá ô” era ofensivo à língua portuguesa. Na verdade, tratava-se de um canto africano muito pertinente ao enredo…

No fim da apuração, os patronos Luizinho Drummond e Anísio Abraão David não se deram conta do desempate e chegaram a comemorar o título dividido, mas no fim apenas Ramos sorriu, enquanto Nilópolis chorou.

Não sou de ficar em cima do muro em relação a julgamentos do Carnaval, mas este é o único caso em que eu ficaria plenamente satisfeito com um empate. Cada escola à sua forma fez um desfile digno de título. Seria o mais justo para o que Imperatriz e Beija-Flor fizeram naquele Carnaval. Ninguém merecia perder.

A polêmica também chegou às posições inferiores. A Tradição, mesmo tendo feito um desfile inferior ao de 1988, foi injustamente canetada por muitos jurados, o que causou o primeiro rebaixamento da escola.

Além da escola de Campinho, caíram Unidos da Ponte, Arranco do Engenho de Dentro (injustamente) e Unidos do Jacarezinho. Vale lembrar o regulamento previa que as cinco últimas colocadas seriam rebaixadas e só a campeã do acesso subiria. Só que a Lins Imperial, vice do segundo grupo, pediu na Justiça o direito de acesso por entender que era pouco apenas uma escola ascender, e ganhou. Em seguida, foi decidido que a 14ª colocada do primeiro grupo, no caso a Unidos do Cabuçu, não seria rebaixada, o que deixaria 16 escolas na elite em 1990.

Já no segundo grupo, além da Lins Imperial, subiu a campeã Acadêmicos de Santa Cruz e lamentavelmente caiu a Em Cima da Hora, com um enredo sobre o réveillon – o Migão também já escreveu no blog sobre esse desfile.

RESULTADO OFICIAL

POS. ESCOLA PONTOS
Imperatriz Leopoldinense 210
Beija-Flor de Nilópolis 210
União da Ilha do Governador 209
Unidos de Vila Isabel 207
Acadêmicos do Salgueiro 207
Portela 206
Mocidade Independente de Padre Miguel 203
Unidos da Tijuca 201
Estácio de Sá 200
10º Império Serrano 199
11º Estação Primeira de Mangueira 197
12º Caprichosos de Pilares 194
13º São Clemente 189
14º Unidos do Cabuçu 184
15º Unidos da Ponte 179
16º Tradição 172
17º Arranco do Engenho de Dentro 172
18º Unidos do Jacarezinho 169

No Desfile das Campeãs, os ânimos ainda estavam aflorados por causa da apuração. No Salgueiro, quinto colocado, uma enorme faixa com os dizeres “Nem melhor nem pior. Apenas roubado” abria o desfile.

Já o número de desfilantes da Beija-Flor teve o “acréscimo” de três bonecos de judas representando os jurados que não deram dez à escola. Por outro lado havia um cartaz mais ameno: “Ao povão e à imprensa, os agradecimentos da Beija-Flor”.

Por fim, quando o abre-alas chegou ao meio da pista, os componentes resolveram tirar o plástico do Cristo Mendigo no meio da pista, levando o público ao delírio e proporcionando um épico e emocionado desabafo de Fernando Pamplona na transmissão da Manchete. Em seguida, diretores de alas e harmonia recolocaram o que foi possível do plástico.

Em 2011, 22 anos depois do polêmico resultado, o jurado Claudio Cunha, que deu 9 para a Beija-Flor em Evolução, admitiu arrependimento em entrevista ao jornal Extra. Não pelo critério usado, pois ele sustentou que houve um claro na evolução da escola. Mas ele disse: “Se soubesse que a nota tiraria o título, teria dado 10 à Beija-Flor. Lamento por aquilo. A escola estava impecável”.

E, enquanto isso, o desfile de 1989 continua…

CURIOSIDADES

– Depois de um ano de ausência, a TV Manchete voltou a transmitir os desfiles em pool com a Globo. O time de comentaristas teve a volta de Sérgio Cabral para compor a equipe com o narrador Paulo Stein, além de Fernando Pamplona, José Carlos Rêgo, Haroldo Costa e Roberto Barreira.

– Na Globo, Fausto Silva, que estrearia o Domingão do Faustão no mês seguinte, passeou pelos camarotes e entrevistou celebridades.

– Curiosamente o sambaço da Imperatriz quase não foi para a avenida. A obra que ficou nacionalmente conhecida (a ponto de ser tema da abertura da novela “Lado a Lado” da Globo em 2012) chegou a ficar fora nas eliminatórias, mas acabou sendo resgatada ao concurso. Uma “virada de mesa” para o bem do Carnaval.

– O desfile de 1989 foi o último de Pinah como destaque da Beija-Flor. Ela tinha 29 anos na época e depois seguiu desfilando pela escola, mas fora dos holofotes.

– O 11º lugar em 1989 era até aquele momento o pior resultado da história da Mangueira. Dois anos depois, a escola seria apenas a 12ª colocada e em 1994, novamente a 11ª.

O pavoroso samba da Unidos do Jacarezinho tinha absurdas 37 linhas e um refrão minúsculo. Já o antológico samba da Imperatriz tem dez linhas a menos.

Cantinho do Editor (por Pedro Migão)

Foi neste Carnaval que me descobri portelense, ou melhor, fui escolhido pela Águia.

O fato de a modelo Enoli Lara ter desfilado nua levou à proibição da “genitália desnuda” por parte da Liesa para o Carnaval do ano seguinte.

Ao contrário do que muita gente pensa, não foi de Joãozinho Trinta a ideia de cobrir o Cristo Mendigo. Foi de Laíla. Também não foi do carnavalesco Luiz Fernando Reis a ideia da faixa “Nem Melhor, nem pior. Apenas Roubado” levada pelo Salgueiro no Desfile das Campeãs. A ideia foi do patrono da escola Miro Garcia. Em entrevista anterior a este blog o carnavalesco deixa claro que achou justo o quinto lugar naquele ano.

O samba enredo da Em Cima da Hora sobre o Ano Novo é o único da história sobre o tema. Aliás, o grupo teve de ser enxugado e das dez agremiações do Acesso A naquele ano nada menos que cinco foram rebaixadas.

A cantora Simone puxou o samba da Tradição neste ano ao lado de Candanda. Por outro lado, o samba da Imperatriz possui alguns erros históricos.

Links

O desfile campeão da Imperatriz Leopoldinense

https://www.youtube.com/watch?v=5yEyfY5BtsQ

A antológica apresentação da Beija-Flor

O início do belo desfile da Ilha

O belíssimo desfile do Salgueiro

Fotos: O Globo e reprodução de TV

11 Replies to “Sambódromo em 30 Atos – “1989: No ano que não terminou, foi a Imperatriz que levou””

  1. Só para fazer uma pequena correção: Max Lopes não estreou na Imperatriz em 1989. Ele tinha feito 1977 “Viagem fantástica as terras do Ibirapitanga” e 1978 “Vamos brincar de ser criança”

  2. esse ano nunca vai terminar , porque a não vitória desse desfile o tornou bem maior do espetáculo que já foi ( essa a diferença pra Kizomba)… ótimo texto de uma série incrível!

  3. Foi a vitória do samba-enredo sobre um desfile que pode ter sido impactante, mas até hoje, todo mundo se lembra da letra do samba da Imperatriz – muito antes da novela da RGT. Desconheço alguém que saiba o samba da Beija-Flor de cor. Olhar para a letra e vir aqui decorar não vale. O que me chateia é que a Imperatriz fez um desfile épico sob vários aspectos, levantando a avenida (e depois chamam a escola de “Certinha de Ramos”, vejam os vídeos, que não me deixam mentir) e todo mundo só exalta o da Beija-Flor. Não tem problema. Os jurados mostraram quem mereceu ser campeã de 1989.

  4. O maior e mais conhecido desfile da história perdeu para o melhor desfile do ano. Não desmereço a vitória da Imperatriz, mas seria melhor pra ela mesma ter empatado.
    Não era superior, era diferente. Inclusive na proposta.

    Até porque se formos falar de samba-de-enredo, todos conhecem o espetacular refrão LIBERDADE, LIBERDADE, mas a grande maioria sequer sabe de qual escola seja.

    Mas fale do desfile dos mendigos… como disse a letra da MPB… “quem não seguiu o mendigo Joãosinho Beija-Flor”.

    Hoje acho que é uma celeuma curada… o povão preferia a BF, deu a Imperatriz (como costuma acontecer com ela) e assim iniciava-se a fase de declínio do J30 na BF, que a abriria um período de resguardo pra escola se reformular e virar a potência que é hoje.

    Tudo tem seu lado positivo.

  5. Esse desfile de 1989 é antológico! A passagem da Beija Flor é algo de deixar o queixo caído! Assim como a beleza da Imperatriz, todo o conjunto dela, foi também espetacular. E a Ilha.. ah que saudade daqueles tempos, final dos anos 1980 e início dos 1990 quando a tricolor insulana fazia carnavais leves e com sambas animadíssimos!

  6. Foi o maior ano da história do Carnaval de todos os tempos,tanto pela criatividade de todas(não só Imperatriz e Beija Flor,que realmente foi o melhor desfile de ambas de toda a história),como pelas controvérsias que até hoje se fala,depois todo mundo quis se repetir ou igualar 1989,mas certas coisas entram pra história exatamente por isso,foi o auge do Carnaval,por exemplo a vitória da Unidos da Tijuca já não empolga mais(esse ano 2014),e a Beija flor ficou fora dos desfiles das campeãs,o Salgueiro sempre estável,a Portela Lindíssima renascendo e a Imperatriz também,a Ilha voltando leve ,divertida e competente.Quem sabe vem aí uma nova era…

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