Nesta quarta, a coluna do publicitário Affonso Romero retoma a questão dos ingressos de futebol sob uma outra perspectiva.

Ainda os Ingressos: Os Arrasa Quarteirão

Há um filme lançado em 1990 que se tornou um dos clássicos recentes de Hollywood: Uma Linda Mulher. A menção do nome do filme trará à sua mente a imagem da então jovem e exuberante Julia Roberts imersa numa banheira de espuma (foto) cantarolando o hit Kiss, do Prince. Sem esforço, você poderá se lembrar que o par romântico da prostituta Vivian naquele conto de fadas moderno era o Richard Gere, no papel de um empresário yuppie extremamente bem sucedido. Tudo isso virou ícone daquela era.

O que exige um pouco mais de memória é saber do que exatamente vivia o milionário bonitão. Mas este é o detalhe mais datado do filme. Mais datado que a Julia Roberts, o Prince, o figurino… A coisa mais típica daquela época era que o executivo de sucesso tinha como principal atividade comprar e desmontar empresas alquebradas e, depois, revender com imenso lucro as fatias desmembradas, como se fosse a venda de um carro batido para um ferro-velho.

A personagem de Gere poderia ser retratada como um vilão insensível, se não fosse seu encontro fortuito com a doce Vivian. À medida que ambos se apaixonam, resgatam-se mutuamente da brutalidade daqueles tempos em que a busca pelo lucro não encontrava barreiras éticas ou regulamentos inflexíveis. A mensagem do filme é que o amor redime. A ela, da triste condição de prostituta de beira de calçada, inculta e sem maiores perspectivas; a ele, da insensibilidade workaholic das bolsas de valores, fusões e aquisições. A ganância dele era justificada por um sentimento de revanche, com direito a traumas do passado e, como tal, tinha “cura”.

Tudo isso para deixar o papel de vilão puro-sangue nas mãos do excelente ator Jason Alexander , o sócio-parceiro-assessor de Gere chamado Philip Stuckey que insiste, até o final, em comprar mais uma empresa para desmontar demitir, enxugar, “sanear” e revender aos pedaços.

O sucesso do filme tem muito a ver com a propriedade e o sentido que esta fábula fazia numa América empobrecida por anos de governo republicano Reagan, liberal até a raiz, que incentivou a “competitividade” como valor econômico supremo, provocando uma onda de desemprego e desmonte da segurança social.

Para breve comparação, lembremos que pouquíssimos anos antes (86), no auge da era Reagan, o papel de yuppie bom-vivant vivido por Mickey Rourke em 9 Semanas e Meia de Amor era glamourizado como o ideal de homem de sucesso. Uma Linda Mulher é mais que uma suave comédia romântica que se tornou clássica; é um retrato de um momento de virada na consciência americana sobre os valores econômicos e a importância das pessoas (e seus empregos) sobre os processos.

Mas havia os Philip Stuckey, o vilão que canaliza no filme todo o mal que havia no modelo dos  abutres arrasa-quarteirão. Continuou havendo muitos deles na economia e na política, exportados pela onda neo-liberal que até hoje tem ecos (cada vez mais esporádicos) pelo mundo.

Os anos 1990 foram ainda caracterizados por modelos tecnocratas que refletiam uma estrutura mental obtusa pela qual a gestão de instituições, negócios, empresas, projetos e até países só pode ser projetada a partir da objetividade fria e imediatista dos números, como se os processos não dependessem fundamentalmente do envolvimento de pessoas. E como se pessoas não comportassem a subjetividade humana.

Tomemos, por um instante, o exemplo do que aconteceu no Brasil, levado de assalto por esta lógica perversa do neo-liberalismo naqueles anos. Diga-se, o mesmo se estabeleceu na totalidade da América Latina, com os mesmos resultados catastróficos.

Por aqui, o Estado foi primeiramente desacreditado. Suas deficiências (em parte, reais) foram exploradas e amplificadas através de poderosas armas de comunicação de massas. Os defeitos (igualmente reais) de seus dirigentes foram também amplificados e caricaturados. As instituições foram artificialmente corroídas, escarnecidas. Na sequência, apresentou-se um “salvador da pátria”, com uma mensagem técnica, uma aparência moldada. Tomou-se o poder e o centro das decisões.

Então, “constatou-se” que a situação seria mais crítica do que se avaliara a princípio, o que requereria medidas drásticas. Daí, enxugou-se a economia, através de retração e recessão, com desemprego e concentração de capitais. Passo seguinte, desmontou-se o Estado, descartou-se o que não interessava, loteou-se o que havia de valioso, vendeu-se a preço de banana, descapitalizou-se, pagou-se seletivamente a dívida aos parceiros dos poderosos. Sob a desculpa da reestruturação e do saneamento, o Estado brasileiro foi enfraquecido e suas funções – para muito além da simples desestatização-privatização – foram diluídas pela terceirização, desinvestimento público e utilização do vácuo criado para a geração de oportunidades privadas, tornando patrimônio e lógica privados algo que antes era tido como reserva da sociedade (como educação e saúde, por exemplo).

Os métodos utilizados são incrivelmente similares aos descritos na ficção pelo personagem de Richard Gere n’Uma Linda Mulher. Pelo menos, antes de seu resgate pelo amor. A diferença é que, na vida real, não há amor nenhum para curar desse mal.

Os anos passam, mas ainda há muitos abutres por aí, saudosos desses tempos. Mal a história nos contava dos efeitos dos anos 1980 e 1990 sobre a economia mundial (no Brasil, um Estado ainda mais endividado, sem patrimônio, desestruturado, que promoveu concentração de renda, recessão, desemprego, encolhimento da massa salarial), outra leva neo-liberal assolou o Planeta, culminando na quebradeira geral de 2007, cujos efeitos nefastos ainda se refletem pelo mundo.

Mas os abutres arrasa-quarteirão não se dão por vencidos, vendem sua verve e sua caixinha de “soluções mágicas” baseadas em cortes e enxugamentos nas mais diversas frentes da vida cotidiana. É um modelo falido, burro, tecnocrático, dogmático, desumano, baseado em insensibilidade quanto à natureza e peculiaridade dos entes econômicos. Mas persiste, até porque sempre haverá um sem-número de Philip Stuckeys a vagar por aí.

Alguns deles, por exemplo, infestavam o BNDES nos anos 1990 e chegaram ao final de suas carreiras profissionais relegados ao ostracismo, com suas biografias ligadas ao fracasso do modelo sob o qual funcionavam. Mas se debatem, lutam para vender como solução para tudo e para todos sua caixinha preta de maldades.

A suposta objetividade por detrás do debate sobre preços dos ingressos para partidas de futebol nas novas e modernas arenas brasileiras é bem um reflexo deste tipo de equação onde entra um pouco de tudo, menos o fundamental: a natureza das pessoas. Ou, na linguagem tecnicista que se quer empregar, a humanidade escondida por detrás do ente econômico chamado de consumidor-torcedor.

Os clubes estão de pires nas mãos, esgotaram as variáveis de onde se possa tirar dinheiro; logo, o torcedor que pague a conta. Aumenta-se o preço do ingresso e está resolvido o problema, porque se o ingresso passa de R$20,00 a R$100,00, o clube vai faturar cinco vezes mais com a bilheteria. Pura aritmética.

Só que esqueceram de combinar com o ser humano, aquele que tem noção racional de valor (apesar de ser parcialmente movido a paixão, no caso), que elenca prioridades, que sente-se explorado, que sente-se traído, que já vem há tempos (e mesmo com preço mais baixo) reclamando direta e indiretamente que a qualidade do composto de produto futebol brasileiro vem caindo.

Pior: vem caindo ainda mais acentuadamente se comparado com os concorrentes similares tais como outras formas de diversão e lazer, e até mesmo com outros esportes, ou o  futebol europeu. Esqueceu-se também de variáveis mais técnicas, como a noção de elasticidade do preço-produto, mas eu nem quero entrar no mérito da capacidade técnica de gente que arrota arrogância profissional e se vende como a última Coca-Cola do deserto.

Voltemos um passo na análise e lembremos como o abutre arrasa-quarteirão tipicamente se aproxima de seu alvo, desacredita a instituição, assume o poder, “surpreende-se” com o estado das coisas, aproveita-se do caos para propor sua solução “mágica” de saneamento e enxugamento, paga seletivamente dívidas, aumenta preços… nós todos sabemos que o próximo passo seria desmontar, repassar o que é explorável (seja por venda direta, seja por “parcerias”) e deixar para trás um cenário de terra arrasada.

Os processos se repetem absolutamente idênticos, seja em empresas dos anos 1980, países nos anos 1990, sistemas financeiros nos anos 2000 e, finalmente, clubes de futebol nos anos 2010. Ou seja lá onde for, há um modus operandi muito semelhante, e eu não sou dado a acreditar em coincidências, principalmente quando personagem iguais atuam em histórias iguais.

Haveria dezenas de enfoques possíveis para a questão dos novos estádios e os preços cobrados para os ingressos. Há uma máxima aplicável a linhas de produtos minimamente complexas de que não há solução que não passe por segmentação. É também um argumento baseado em técnica, e eu não refuto de forma alguma que a técnica – uma vez posta a serviço do fator humano, e não contra ele – seja útil às discussões.

Mas é absolutamente inútil debater racionalmente com gente que usa a comunicação de massa para fomentar uma legião dogmática teleguiada e, resguardada por detrás deste muro, joga com interesses econômicos diametralmente opostos aos que simulam.

Exemplificando com o paralelo utilizado: durante os anos 1990, a Petrobrás, administrada por um governo que sonhava vendê-la, não foi capaz de fazer descobertas importantes que se concretizaram logo depois, sob outro ambiente e gestão. Pode-se tentar explicar isso por muitos caminhos. Mas o que seria improvável é que a empresa tivesse sucesso e encontrasse soluções sob a égide de quem gostaria de desmembrar e vender seus ativos a preços camaradas.

Da mesma forma, é improvável que se encontre uma solução que combine os interesses de torcedores com a necessidade de faturamento dos clubes sob a gestão de gente que tem interesses econômicos nesses mesmos clubes e seus possíveis “parceiros”. A lógica arrasa-quarteirão não combina com solução alguma. É bobagem discutir opções.