StewartNesta quarta feira, Dia do Trabalho, a coluna “Lacombianas”, assinada pela jornalista Milly Lacombe, nos conta um pouco da verdadeira “máquina de deportação” de imigrantes em que se transformou o governo norte americano hoje.

Máquina de Deportação

A estapafúrdia história do americano Mark Lyttle é contada por William Finnegan na edição de 29 de abril da New Yorker.

Lyttle nasceu há 35 anos nos Estados Unidos e foi, em seguida, entregue a um orfanato. Aos sete anos foi finalmente adotado com dois irmãos menores e uma irmã, mas seu pai morreria meses depois. Diagnosticado com diabetes e bipolaridade, passou boa parte da juventude em instutiições psiquiátricas. Em 2008 foi preso por tentativa de abuso sexual a uma colega de trabalho. E uma vida que nunca foi especialmente boa estava prestes a conhecer lugares ainda mais escuros.

Mas para entendermos como exatamente Lyttle acabou levando uma gravata do sistema, é preciso que conheçamos os fortes braços dele.

Nos Estados Unidos de hoje quando alguém é detido por um crime, seja por por estupro, roubo ou por dirigir embriagado, as digitais do infrator são enviadas para o FBI, que armazena em seu data-base um total de 100 milhões de digitais. O FBI então pode compartilhar essa digital com o Department of Homeland Security, criado depois dos atentados de 11 de setembro para previnir atentados terroristas em solo americano. O DHS tem nos arquivos de um se seus braços, o Immigration and Customs Enforcement, o ICE, outros 100 milhões de digitais. Se essa busca resulta em uma digital de alguém que, por algum motivo, tenha violado uma lei imigratória, o infrator é preso e, não muito tempo depois, deportado.

Lyttle foi preso na Carolina do Norte, Estado cujo diretor de penitenciárias, J.Boyd Bennett, assinou acordo para cooperar com o DHS e com o ICE prometendo identificar presos que por algum motivo “parecessem não ter nascido em solo Americano”.

Lyttle, que tem a pele levemente escura, os olhos ligeiramente puxados e dificuldade para escrever, foi identificado pelo escrivão como: “não-branco” e “oriental”. Na mesma ficha os espaços para “primeira língua” e “condado de nascimento”, sabe-se lá porquê já que Lyttle fala inglês como alguém alfabetizado em inglês, foram deixados em branco. Em seguida, vieram os erros mais grosseiros.

O mesmo escrivão optou por ignorar o que dizia Lyttle a respeito de ter nascido ali mesmo na Carolina do Norte e preencheu “México” para “país de nascimento” e “estrangeiro” no campo “cidadania” – Lyttle não fala e não entende espanhol.

Em seguida, mandaram que assinasse um documento que dizia que ele tinha o direito de contactar o consulado de seu país de origem. Lyttle não entendeu o que queriam dizer com aquilo, já que ele estava em seu país de origem. Pediu para falar com a mãe, mas então lembrou que os telefones da mãe e dos irmãos estavam em seu caderno de endereços, que não estava com ele. O DHS mandou uma official encarregada de deportações, Dashanta Faucette, falar com Lyttle e com outra dúzia de detidos que deveriam ser deportados.

Depois de entrevistá-lo, Faucette concluiu que Lyttle era de fato estrangeiro e anotou que seu nome real era José Thomas, que ele havia nascido no México e entrado ilegalmente nos Estados Unidos com três anos. Thomas era o sobrenome de seu pai adotivo e talvez a oficial tenha tirado daí a ideia. Já o “José” nunca ficou claro de onde veio. A essa altura, Lyttle começou a achar que estava sendo enviado ao México para diminuir sua pena e antes de assinar os documentos que tratariam da deportação perguntou se suas correspondências poderiam ser encaminhadas para lá, ao que Faucette respondeu que sim, mesmo sabendo que isso não poderia ser feito.

O direito de aconselhamento legal a qualquer um é garantido pela constituição americana, mas não é estendido a imigrantes ilegais, e Lyttle, agora um imigrante, estava por conta própria. Faucette deve ter checado as digitais de Lyttle e, evidentemente, não encontrado histórico para nenhum José Thomas. Por que optaram por ignorar a descrição física de Lyttle? Por que optaram por ignorar um certo Mark Lyttle, americano? Finnegan, o autor, conclui que tudo foi ignorado porque o objetivo sempre foi deportá-lo e nunca descobrir quem era aquele detido.

Lyttle foi transferido para uma prisão federal da Georgia – o Stewart Detention (foto), o maior centro de detenção de imigrantes dos Estados Unidos, com 1752 leitos. Stewart é todo cercado por uma cerca elétrica dupla com lâminas nas pontas e lembra, segundo o autor, um local para prisioneiros de guerra. A maioria dos detidos ali são latinos, mas pouquíssimos guardas falam espanhol. Os prisioneiros têm direito a uma visita semanal de uma hora. Stewart tem a reputação de ser sujo, de servir comida ruim, de não oferecer água potável, de ser superlotado e de empregar guardas abusivos. Foi ali que, em nova ficha cadastral, o nome de sua mãe foi trocado de Mary para Maria.

Enquanto isso, a família de Lyttle procurava por ele em hospitais e necrotérios.

Lyttle foi finalmente deportado para o México, onde iniciou uma perigrinação rumo ao inferno. Vivendo nas ruas, acabou indo parar em El Salvador, depois na Guatemala. Meses depois, um guarda guatemalês o encontrou dormindo em uma praça e, vendo que ele só falava inglês, o enviou à embaixada Americana.

Lá, pela primeira vez, alguém o escutou: a vice-cônsul, notando que Lyttle falava inglês sem sotaque, concluiu que aquele homem era provavelmente responsabildade de seu governo e conseguiu encontrar um de seus irmãos, que é militar. Lyttle foi reconhecido pelo irmão, que imediatamente enviou dinheiro e passagem para que ele voltasse para casa. A vice-consul providenciou um passaporte e devolveu Lyttle aos Estados Unidos. Chegando lá, um oficial da imigração tentou outra vez deportá-lo, mas  a família já tinha contratado um advogado que foi capaz de agir rápido e evitar nova deportação. Há registros de pelo menos outros 40 casos em que americanos, vítimas da máquina, foram “deportados”.

A máquina, aliás, é forte: O orçamento para o Border Security and Immigration Enforcement é de 18 bilhões de dólares por ano, mais do que a soma dos orçamentos das demais agências (FBI, Secret Service, Drug Enforcement … ). E o gasto anual aprovado pelo congresso continua aumentando, mesmo que as apreensões na fronteira com o México tenham caído 80% desde 2000. O fato é que desde o 11 de setembro e do Patriot Act aprovado pela administração Bush os gastos com controle da imigração nunca pararam de crescer. Tudo o que Obama fez foi não interromper o funcionamento da máquina: os indices de deportação ainda aumentam ano a ano.

Em 2010, o ICE lembrou a seus agentes, através de memorando, que o objetivo daquele ano era deportar 400 mil ilegais. O resultado imediato é que milhares de crianças nascidas nos EUA estão sendo jogadas em orfanatos depois que seus pais são deportados. Entre 1892 e 1997 os Estados Unidos deportaram 2.1 milhão de imigrantes ilegais. No final de 2014, a continuar nesse ritimo, a administração Obama terá deportado a mesma quantidade num período de seis anos.

Como escreve Finnegan: “Se você for latino, ou parecer ser latino, as chances de ser parado pela polícia nas ruas e preso aumentam significativamente”, e se for imigrante ou visitante legal é torcer para que, se parado nas ruas, seu histórico no ICE esteja correto.

Tudo isso está contado em mais detalhes na New Yorker desta semana.

Depois dos atentados em Boston, com a culpa caindo sobre dois cidadãos nascidos fora do país, é improvável que a máquina de deportação americana perca potência. Ou, muito pelo contrário, é bastante provável que ganhe ainda mais ritmo sem que haja um americano para lembrar que quando a América foi colonizada os novos ocupantes vindos da Europa mataram 95% da população local e que, portanto, trata-se de uma nação construída por e para imigrantes.

Nos quase sete anos que passei na Califórnia algumas das pessoas mais honestas e trabalhadoras que conheci eram imigrantes ilegais, gente que fazia das tripas coração para manter a outra enorme máquina americana girando: aquela que oferece a todos o grande sonho americano, farto de consumo, financiamentos e possibilidades. Sem essa mão de obra que se dispõe a acordar antes do sol nascer para lavar chãos, colocar mesas, operar chapas, tirar o lixo, colher a lavoura etc etc etc o grande sonho americano simplesmente empacaria.

Mas enquanto os nascidos na “The land of the free” continuarem topando trocar liberdade em nome de uma segurança que se veste de invasão de privacidade para existir, o sonho americano estará seriamente ameaçado. E a imigração, que num mundo ideal jamais poderia ser ilegal e nem conheceria fronteiras, nunca entenderá que, sem ela, não há sonho americano que se sustente.