vidigal

(Foto: Extra)

Neste sábado, mais uma edição da coluna de contos do compositor Aloisio Villar, a “Buraco da Fechadura”.

Coração Bandido

Peteco era o tipo de cara que podíamos chamar de mau, muito mau. Ele era mau por prazer: diziam que até o cramulhão tinha medo dele.

Criado na favela da Machadinha, desde guri fazia suas maldades. Amarrava rabo de gato. Chutava cachorro, dava paulada em morcego, batia nas crianças menores, pichava muros, provocava o rebu.

A mãe achava que a escola daria jeito, mas no primeiro dia de aulas colocou um ‘cabeção de nego’ na privada da diretora e foi expulso. Foi para um segundo colégio e colocou pó de mico na cadeira da professora: novamente expulso. No terceiro encheu de diurético a panela de arroz do almoço. Moral da história, filas intermináveis nos banheiros e a terceira expulsão. A mãe não sabia mais o que fazer com o garoto até que ele mesmo “facilitou” sua vida saindo de casa. Foi morar nas ruas e lá aprendeu a ser bandido.

Cometia assaltos, usava drogas, tocava o terror na cidade. Não foram poucas as vezes que parou na FEBEM e fugiu. O bicho era tão ruim que a polícia batia nele e ele apanhava rindo: nem do BOPE o desgraçado tinha medo. Chegou à maioridade e continuava assaltando, seqüestrando e cometendo vários tipos de crimes. Uma vez andava na rua e quase foi atropelado. Sacou a pistola e deu cinco tiros no motorista. Parou na prisão.

Foi condenado a vinte anos de cadeia e quando o juiz perguntou se tinha algo a dizer gritou “foda-se” e deu uma gargalhada. Foi levado para a penitenciária e quando tentaram lhe estuprar na primeira noite socou três bandidos e matou um deles a facadas. No segundo dia de preso já era o líder da cela.

No quinto dia provocou uma rebelião que parou a cidade. Do teto da cadeia sem camisa e com a mesma amarrada na cabeça segurava um agente penitenciário com pistola apontada para seu pescoço e gritava para a imprensa que o negócio era sério – e iria provar. Provou jogando o agente lá de cima, que morreu na hora.

A rebelião durou três dias e ao final do terceiro dia a polícia decidiu invadir a cadeia. Matou vários presos, acabou com a rebelião e no fim descobriu que Peteco fugira. Ninguém sabia como, mas o bandido que era sanguinário, mas também muito inteligente aproveitara-se da situação e já estava longe.

Voltou à favela da Machadinha e fingindo estar mudado pediu piedade para a mãe e que ela lhe desse guarita. Como toda mãe ela tinha um amor incondicional por seu filho, acreditou, aceitando Peteco de volta. Levou o rapaz para a igreja evangélica e por um tempo ele fingiu estar feliz e totalmente adaptado à religião.

Mas Peteco não tinha jeito: a maldade estava em seu sangue e um dia ele matou o pastor roubando todo o dinheiro da igreja. Entrou para o tráfico de drogas.

Começou de baixo, como fogueteiro, mas logo foi crescendo na hierarquia das drogas. Ganhou muito dinheiro, comprou roupas de marca e conseguia todas as menininhas que queria fissuradas pelo cara de cordão de ouro e pistola na mão. Já era um dos principais auxiliares do chefe do tráfico local, mas para ele era pouco. Peteco queria mais, queria o poder e não demorou a que ‘mancomunasse’ com alguns outros soldados do tráfico e dessem o golpe no líder.

Uma noite o chefe contava dinheiro sentado a mesa da boca quando Peteco chegou por trás com um machado e acertou o pescoço do homem, decepando sua cabeça. O bandido saiu de dentro da boca com a cabeça do chefe na mão dizendo que agora o morro era deles. Os outros soldados deram tiros de fuzil para o alto saudando o novo líder.

Implantou a babárie no morro. Proibiu os bailes funks e impôs toque de recolher às 22 horas; quem infringisse essa regra estava arriscado a apanhar e até morrer. Tomou casas de moradores dando tapa na cara em qualquer um que achasse que devia, estuprou mulheres e criou taxas para que os moradores lhe dessem dinheiro. Peteco era odiado e temido na comunidade.

Decidiu desafiar também o poder público. Com tiros de fuzil derrubou um helicóptero do BOPE e quando teve um importante comandado preso implantou o horror no Rio de Janeiro comandando ataques sincronizados para aterrorizar a população e deixar o governo refém.

Tornou-se o inimigo número um do estado.

Enquanto a polícia lhe caçava, Peteco decidiu selecionar mais soldados para seu exército. Convocou crianças para entrar ao tráfico para desespero das mães que nada podiam fazer. Mandou fechar a única escola do morro e assim fez sua seleção. Quando já fizera suas escolhas, um de seus comandados entrou na boca dizendo que tinha um garoto querendo se juntar a eles. Peteco respondeu que não havia mais necessidade, já fizera suas escolhas e o homem insistiu dizendo que era seu primo e pediu chance a ele.

Peteco então decidiu aceitar e mandou que o rapaz entrasse.

E ele entrou. Negro bonito, musculoso, cabelo curto, passado a máquina, tatuado e com um sorriso branco como a neve. Até Peteco se surpreendeu com tamanha beleza e perguntou seu nome. O rapaz respondeu que se chamava Jackson e Peteco perguntou porque ele queria trabalhar no tráfico e não pensava em ser modelo. Jackson respondeu que precisava de dinheiro e ali conseguiria mais rápido.

Peteco, ainda espantado com a beleza de Jackson, respondeu que tudo bem e que ele poderia se juntar ao grupo.  Jackson deu um sorriso que mostrou toda a brancura de seus dentes e agradeceu.

Peteco ficou um tempo sozinho dentro da boca e pensava “caramba, como é bonito!!”. Saiu do local dizendo aos soldados que iria para casa. O primo de Jackson perguntou se ele trabalharia com o grupo e Peteco respondeu que sim. O bandido deu alguns passos, virou-se para o homem, não agüentou e disse “seu primo é bonito… é … é bonito” e foi embora.

Peteco nem quis jantar naquela noite, deitou e sonhou Jackson. Sonhou com o rapaz com uma calça jeans apertada, sem camisa, segurando um fuzil e sorrindo para ele. Peteco acordou assustado e bebeu um copo de água tentando entender o que acontecia com ele.

Na manhã seguinte ordenou que um de seus soldados levasse uma mulher até ele. O soldado levou uma contra sua vontade e Peteco tentou estuprá-la. Jogou a mulher no chão que gritava desesperada, rasgou a sua roupa e quando foi beijá-la viu o rosto de Jackson. Assustado levantou de cima da mulher e mandou que ela fosse embora.

Desorientado foi até a boca e encontrou Jackson que sorriu e lhe deu bom dia. Sem olhar para o rapaz Peteco respondeu ao cumprimento ressabiado. Passou o dia todo aéreo até que seus comandados perguntaram o que ele tinha.

Peteco respondeu que tinha nada e que tinha que descer o morro. Os soldados pediram para que o chefe não fizesse aquilo, era perigoso, pois, o bandido era o homem mais caçado do Rio de Janeiro, mas Peteco não deu ouvidos e respondeu que já voltaria.

Foi até a Vila Mimosa, famoso quarteirão de prostituição no Rio de Janeiro. Percorreu as casas do lugar até que achou uma prostituta que lhe interessava. Sem jeito chegou até ela e perguntou quanto era o programa. A mulher o reconheceu e perguntou se ele não era aquele traficante procurado.

Peteco pediu que a mulher falasse baixo e ela respondeu que para ele tinha desconto porque nunca tinha saído com uma celebridade.    

Trinta minutos depois Peteco saiu cabisbaixo e andando rápido do quarto. Algum tempo depois a mulher com cara de poucos amigos também saiu e da porta reclamou: “só me faltava essa, traficante broxa”.

Aquela situação piorava a cada dia. Peteco só conseguia pensar em Jackson e isso enfurecia ainda mais o bárbaro traficante. Ele aumentou a truculência na favela e invadiu morros próximos, pegando o comando. Chamava cada vez mais a atenção da polícia que queria seu fígado com fritas e molho ferrugem. Cartazes de “procura-se” eram espalhados pela cidade com o número do disque denúncia. Sua cabeça valia uma fortuna.

Mas Peteco tinha outra preocupação. Jackson.

Não conseguia mais dormir, se alimentar pensando no rapaz, na sua beleza. Fez logo que ele assumisse postos mais elevados no tráfico lhe colocando como segundo da hierarquia e provocando ciúmes dos outros comandados. Tratava Jackson a pão de ló. Era seu protegido.

Tentou de todas as formas esquecer o rapaz, lutar contra aquele sentimento, mas não tinha jeito. O bandidão violento, sanguinário se apaixonara por outro homem.   

Naquela manhã decidira tomar novo rumo na vida: não iria mais lutar contra suas vontades e logo cedo encontrou Jackson na boca e pediu que o bandido passasse em sua casa a noite. Trabalhou um pouco, mas ansioso com a noite que teria com seu alvo de desejo avisou a seus soldados que iria para casa.

Mandou que a empregada deixasse a casa um brinco e foi para o quarto onde ficou pensando em Jackson. Levantou no fim da tarde, tomou um banho demorado, colocou perfume novo e cd com músicas de Julio Iglesias.

Jackson chegou e Peteco lhe convidou para entrar. O rapaz perguntou o que o chefe queria e Peteco mandou que ele se acalmasse e sentasse. Jackson sentou e o chefe perguntou se ele queria vinho, com o bandido concordando.

Tomaram vinho com Peteco explicando as origens daquela garrafa e depois convidou Jackson para ir a outra sala onde seria servido o jantar. Sentaram-se e comeram um ravióli delicioso. No fim Jackson foi até a sala, agradeceu ao jantar, mas respondeu que não entendera porque o chefe lhe chamara ali, o que ele queria afinal. Peteco num impulso respondeu “você” e beijou Jackson.

O rapaz se assustou com a atitude do chefe e deu um salto pra trás dizendo que era macho. Peteco furioso pegou a pistola e encostando no rosto de Jackson gritou “qual é rapá!! Ta me estranhando? Eu sou macho também, duvida disso?”.

Um espantado e assustado Jackson respondeu que não duvidava então Peteco gritou “Acho bom, agora sobe pra porra daquele quarto!!”.

Jackson subiu e Peteco lhe jogou na cama. Os dois transaram a noite toda.

Na manhã seguinte um feliz Jackson estava sentado na cama fazendo planos e perguntando se poderia morar ali com Peteco. Disse que os dois juntos dominariam a cidade e deixariam o governo e os rivais ajoelhados.

Peteco voltou para o quarto armado e encheu Jackson de tiros. O rapaz morreu na hora e Peteco puxou o corpo do homem jogando pela janela. O corpo de Jackson rolou ribanceira abaixo e caiu no meio do matagal, nunca ninguém saberia o que ocorreu naquele quarto: a única testemunha estava morta.

Peteco colocou um roupão, sentou no sofá da sala e colocou o cd do Julio Iglesias. Ao som de “Manoela” limpou uma lágrima do rosto quando pensou em Jackson e bebeu uma taça de vinho.

Era preciso manter a fama de mau.