IMG00271-20101009-1320Retomando o curso normal do blog, a coluna “Lacombianas”, da jornalista Milly Lacombe, faz um convite à reflexão.

Um lindo dia para morrer

Acordei assustado, coração batendo apressado e fora de compasso. Em seguida, movido por um estranho impulso, sentei na cama. Estava suando, camiseta colada ao peito, respirando pela boca como se o ar no quarto fosse o do acampamento-base do Everest. Passei a mão direita no cabelo e os fios estavam molhados, como ficam sempre que corro mais do que os usuais sete quilômetros diários. Peguei o celular que deixo na mesinha ao lado da cama e vi que eram cinco e quinze. E então lembrei de uma matéria que tinha lido há alguns anos e que dizia que a maioria dos infartos acontece nas primeiras horas da manhã. Era isso então. Eu estava tendo uma parada cardíaca. A idade parecia correta: 39. São os fatais, dizia a mesma matéria. Sem um plano emergencial, e sozinho em casa, tentei chegar ao banheiro, mas minhas pernas não responderam ao impulso. Com o celular nas mãos não sabia para quem ligar. Os americanos são muito claros numa hora dessas. É 911 e nada mais. Mas e aqui? Por que não divulgam esse número como um mantra? Ligo para a policia? Qual policia se temos duas? Bombeiros? Mas não estou pegando fogo, apesar do suor excessivo. Enquanto pensava freneticamente sem saber que número discar, vi a silhueta no canto do quarto. 

“Quem está aí?, perguntei enquanto tentava, ainda ofegante e agora tremendo, alcançar sem sucesso o interruptor do abajur. 

“Antes de mais nada, você precisa respirar com calma, como fez naquela aula de ioga há mais de cinco anos” 

“Quem é você? O que está fazendo no meu quarto? Como entrou aqui?” Minha voz não parecia minha voz. Tomada pelo pavor, ela saía fraca e rouca. 

“Se você não respirar lentamente não vai ter tempo para as respostas. É preciso se acalmar, eu vou falar devagar, e prometo explicar o que der antes de ter que me mandar” 

Meus olhos, mais adaptados à escuridão, podiam vê-lo melhor. Estava sentado na poltrona que uso para ler à noite e colocar os sapatos pela manhã. Mas, ao contrário do que imaginei, já não parecia mais ser um homem, e sim uma mulher de cabelos curtos ou presos, não dava para saber, e voz firme. As pernas estavam cruzadas, o trinco jogado para trás. A única pessoa tensa dentro daquele quarto era eu. Tentei respirar mais pausadamente, mas ainda estava ofegante quando disse: 

“Quem é você?” 

“Você não me conhece e é melhor que continue assim. Próxima pergunta” 

“Como entrou aqui?” 

“Você deixou a porta dos fundos aberta ontem quando chegou carregado com as compras do supermercado” 

“Você é homem ou mulher?” 

“Como preferir. Isso pouco importa” 

“Você vai me roubar? Me matar? Está armada?” 

“Ah, escolheu que eu fosse uma mulher? Entendo. Não, não e não são as respostas” 

“O que você está fazendo aqui?”. Minha voz estava mais calma agora. A respiração tinha voltado a um ritmo aceitável e eu conseguia vê-la um pouco melhor. Estava vestida com uma calça branca, uma camiseta bege, chinelos de dedo e o cabelo não era nem curto, nem estava preso: agora me parecia bastante preto, longo e cacheado. 

“Estava zanzando pela cidade, meio entediada, e lembrei da porta aberta. Decidi dar um tempo por aqui, mas você acordou logo, não tive tempo de sair e cá estamos”. 

“Como sabe que fiz uma aula de ioga há alguns anos?” 

“É meu trabalho estar informada” 

“Quem é você?” 

“Vamos deixar isso pra lá. Meu tempo está acabando. Faça as perguntas certas e terá as respostas certas”. 

“Estou morrendo?” 

“Está. Todos na Terra estão”. 

“Estou morrendo agora? Nesta manhã?”, perguntei já sem paciência; 

“Mais ou menos” 

“Chega desse tipo de resposta idiota”, gritei tentando outra vez alcançar o interruptor para acender o abajur e vê-la melhor. Outra vez, não consegui antes que ela e sua voz grossa voltassem a mim. 

“Gritar não vai levar a gente a lugar nenhum e ainda vai acelerar seu coração outra vez”, ela disse, ainda muito calma. “Vou tentar explicar. Não existe apenas uma morte. Existem muitas mortes. Hoje você vai morrer uma delas. Entendeu?” 

“Claro que não entendi”, disse tentando levantar da cama e percebendo que minhas pernas ainda não reagiam. “Que muitas mortes são essas? Vidas depois da morte? Do que você tá falando?”, perguntei tirando com força o lenço de cima de mim porque o quarto estava ficando estupidamente quente. 

“Estou falando de conseguir mudar sua vida. Morrer para ela até aqui, e começar outra. Emprego, crenças, conceitos, relações. É disso que estou falando. É o que você vai fazer quando sair do hospital.” 

“Que hospital?” 

“Aquele para onde está indo” 

“Não estou indo a lugar nenhum”, gritei furioso jogando o lençol ainda mais para o canto. E foi quando senti a dor aguda no peito. Sufocante, angustiante. 

“Viu? Está sim. Em menos de um minuto você pegará o telefone e discará para sua mãe. Sua voz não vai sair, e ela entenderá tudo, porque mães entendem tudo, e ligará para a polícia. Aliás, o número é 190, que fique como referência futura. Sua mãe sabe disso e discará 190. Uma ambulância virá buscar você, que, dentro dela, será reanimado duas vezes antes de voltar a respirar” 

Deitado, eu já não conseguia falar. Peguei o telefone e disquei para minha mãe. Depois disso, pude vê-la sair da cadeira e vir em minha direção. Como era alta… Ela se sentou na cama, perto de meus joelhos, e colocou a mão em minha testa. 

“Essa é a primeira morte”, disse baixinho, com a boca bem perto de meu ouvido esquerdo. “Haverá mais uma antes da derradeira. Acontece com todo mundo nesse planeta. Você tem a sorte de ter a sua bem demarcada: uma parada cardíaca. Muita gente não tem essa sorte e não entende quando a primeira morte chega. Mas o fato é que todos têm direito a duas mortes antes da partida. Eu acho isso bacana, sabe?” 

Ela ia falando como se eu não estivesse morrendo bem na sua frente. Minha voz não saía mais, e eu sentia meu corpo rígido, travado, preso ao colchão. Por que ela não me ajudava e continuava ali falando coisas sem sentido? Meu coração batia de um jeito assustador. 

“Mas não fui eu que inventei isso. Já nem sei mais quem foi. Quando assumi esse posto era assim e eu não mudei, nem sei se teria autonomia para mudar, te digo a verdade. A ambulância chegará em sete minutos, e em oito seu coração vai parar de bater pela primeira vez. Então ainda temos um tempinho. O que mais quer saber?” 

Eu não conseguia falar, será que ela não via isso? Tinha mais um milhão de perguntas, mas não conseguia falar, eu estava morrendo diante de uma mulher de voz grossa e cabelos encaracolados, estranha e enorme, que permanecia impávida sentada a meus pés. 

“Eu sei, a voz não sai. Então vou falar o que acho que você quer saber. Vou dizer quem eu não sou. Não sou Deus. Mas trabalho para ela. Não diretamente, digamos que sou terceirizada. Tem muito trabalho e ela não estava dando conta de tudo só com um time. Então a gente veio ajudar. Mas isso aqui que eu estou fazendo não é permitido, eu provavelmente serei multada. Você não poderia ter me visto, entende? Mas eu estava cansada e me sentei naquela cadeira e marquei touca quando você acordou. Paciência. Já que estou aqui, agora vou te fazer companhia até os paramédicos chegarem. Então, como estava dizendo, ou acho que estava dizendo, já nem sei mais, mas o fato é que você precisa mudar. Ioga, pilates, alimentação regrada, mais água, menos alcool, blablablá, claro que todo isso importa, mas não é disso que estou falando. Estou falando das coisas grandes. Tô falando de atitudes, entende? Eu sei, não precisa tentar responder. Vou dar exemplos práticos. O primeiro: por que você não foi visitar sua mãe no domingo passado se você disse que ia? Ela ficou esperando, sabia? Fez almoço e tudo. E você ligou apenas no fim do dia para dizer que não tinha dado para ir. Isso é chato, isso que não pode, sabe? E por que não foi a casa de sua irmã quando ela se separou? Por que nunca tocou nesse assunto com ela? Por que continua a julgar o fato de ela ter se apaixonado por outro e terminado o casamento? Preferia que ela continuasse casada e infeliz? E já que estamos nesses assuntos pentelhos, por que você continua a trafegar pelo acostamento quando o trânsito na estrada está carregado? E por que para em fila dulpa na rua? Por que não lê um livro, aliás? Fica só nesse negócio de Facebook e Twitter. Você lia tanto quando era um moleque… É preciso continuar aprendendo, sabe? Sempre aprendendo. Esses detalhes é que formam o que eu chamo de coisas grandes, entende? Vou ser mais clara: você é um dândi egoísta-machista-orgulhoso. É isso, basicamente. Uma tríade bem ruim essa sua. Coloca ruim nisso, afe. Opa, olha aí a sirene da ambulância, tá ouvindo? É a minha deixa. Vou nessa. Espero que tudo acabe bem”. 

Disse isso e soltou uma gargalhada. “Acabe bem é boa, né?”, emendou. “Tudo acaba igual pra todo mundo, nem sei por que disse isso”, e continuou a rir antes de continuar a falar, já de pé na porta do quarto. 

“Mas foi bom tocar no assunto porque não sei se já disse que o importante na vida é ter elegância. E eu sei que você tá aí pensando que elegância são aquelas camisas Armani que você tem no armário, e os Prada que você usa nos finais de semana, e os lençois de mil fios sobre os quais você se deita cada noite com uma mulher. Não, meu querido, elegância não tem nada a ver com grana. Aliás, nesses meus ziguezagues mundanos as pessoas mais elegantes que conheci moravam em comunidades, ganhavam mal, comiam mal, se vestiam mal, e eram sofisticadíssimas. Coisa de alma, sabe? E a danação é que até para morrer é preciso ter elegância. Mas sabe qual é o truque? Só sabem morrer aqueles que sabem viver. E olha seu estado agora? Uma lástima. Todo apavorado. Se você pudesse se ver ia sentir vergonha. Metade do que você está sentindo é medo de morrer, não tem nada a ver com o coração. O fortão e machão tremendo como um menininho, hein. Bobagem ter medo do que é inevitável. Aliás, é aquele velho ditado: diante do inevitável a única reação possível é o humor. Adoro esse ditado, você não? Bom, era isso, falei demais, não devia ter tomado aquele último energético. Agora você está por conta. Quem sabe eu volte qualquer dia desses. Vamos ver quantos pontos essa multa que vou tomar vai me render. Se não forem muitos, e se eu não puder indicar outro infrator, volto. Foi um prazer, mas mais ou menos, né? Os paramédicos estão entrando pelos fundos, ainda bem que eu deixei a porta aberta. Shhhhhhh, não precisa agradecer”.

(e-mail para a colunista: lacombianas@pedromigao.com.br)

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