28012013santamariaenterrotarde0020(Foto: Terra)

Em edição extra, a coluna “Orun Ayé”, do compositor Alosio Villar, nos fala sob a tragédia de Santa Maria sob outro aspecto.

A Fumaça que Sufoca um País

Domingo, 27 de janeiro de 2013. 

Uma sensação estranha tomou conta do brasileiro nesse domingo. Uma sensação de incômodo, mal estar, enjoo – como se estivéssemos sufocados com fumaça. E estávamos. 

Uma fumaça com cheiro de morte vinha do Sul do país e lentamente tomou conta do Brasil. Uma tragédia da proporção de uma chama que suga sonhos e futuros. 

Uma história que aparentemente tem nada a ver com a gente. Nunca fui a Santa Maria, apesar de ser a terra da minha avó, não conheço nenhuma dessas pessoas que morreram na boate e nunca tinha ouvido falar na banda que faz show pirotécnico em ambiente fechado. 

Mas fiquei com esse gosto de fumaça na boca. Passei o dia com baixo astral como milhões de pessoas ficaram, incomodado com a situação, triste com a tragédia. 

Quando acontece uma tragédia dessas proporções, como dos edifícios Joelma e Andorinhas, o Bateau Mouche e maior de todas as tragédias, a do Grand Circo Americano em Niterói (onde mais de 500 pessoas morreram), nós morremos um pouco. 

Morremos porque temos a certeza que tragédias não são coisas distantes de nós. Podem acontecer conosco, podem nos rondar. Não pensamos nisso quando vamos a uma boate ou escola de samba e não olhamos se tem porta de emergência. Quando nossos pais pedem que a gente avise que está tudo bem, não chegue tarde ou aquela série de recomendações que achamos besteira. 

E dá um frio na espinha, os olhos ficam molhados quando pensamos que somos pais, nossos filhos estão crescendo e chegando na idade de nos dar um abraço e sair para balada. A balada que não sabemos como acabará. 

Qual a sensação de perder um filho? Não sei e nunca quero saber, mas deve ser devastadora. ‘Enterrar um filho é uma vida invertida’, como disse o José de Abreu no twitter. 

É pensar que a moça que postou no facebook através do celular que a boate pegava fogo, pedia socorro e pouco depois faleceu poderia ser minha filha, pensar que o celular com 104 chamadas encontrado ao lado do corpo de um jovem poderia ser o celular dela, que a palavra mãe” escrita na tela do telefone ao lados do número 104 poderia ser da mãe de minha filha desesperada tentando falar com ela. 

Podia seu o amor da minha vida me mandando sms dizendo “vou morrer, não vou conseguir sair, só quero dizer que te amo” como um rapaz fez com a namorada. 

Já pararam pra pensar de quantas roubadas nossos pais já nos livraram? Aquela história de você querer sair, a mãe não deixar, responder pra ela “todo mundo vai” e ela dar aquele argumento definitivo que sempre odiamos “você não é todo mundo”?

Mais de 200 vidas interrompidas, 200 vidas ceifadas pela lógica do capitalismo que diz que você pode morrer queimado, desde que pague a comanda. Aliás, a comanda é um cárcere porque te obriga a ficar em um local até que você pague. 

Os estabelecimentos não deixam que você pague na hora o que consumiu, porque querem que você se torne refém da comanda. Sabem que com uma comanda na mão o cliente se sente “mais livre” para beber: é só pedir a bebida e anotar no papel. Sem saber que essa liberdade para consumir pode ser seu transtorno no fim. 

Pesquisas já indicam que os maiores problemas em boates ocorrem nas filas enormes que são criadas na hora de pagar as comandas. Qual o preço a pagar nesse papel marcado com o xis do consumo? 

Em Santa Maria, o preço foi a vida. A vida que poderia ter sido preservada se os seguranças abrissem a única porta do estabelecimento quando a multidão desesperada quis sair. Única saída… A única saída de um ambiente cheio, com milhares de jovens e que pelo jeito funcionava com uma liminar. 

Mas é típico de nosso país o jeitinho. Seja o jeitinho pra abrir uma boate e mantê-la em funcionamento ou para avisar ao amigo que bebeu um pouco demais onde tem lei seca. Todo mundo que bebeu diz que se garante no volante e não será um pouco de cerveja ou uísque que vai lhe prejudicar dirigindo. 

Como se as inúmeras pessoas que destruíram vidas e famílias ao longo dos anos não tivessem o mesmo pensamento. 

O Brasil não precisa de novas leis: precisa que se cumpram as existentes. O Brasil é o país da irregularidade, que foge de lei seca, estaciona em local proibido, recebe propina no congresso e abre boates sem alvará. 

É, mas agora não adianta chorar pelo leite derramado, mais de 200 mortes. Não foi minha filha graças a Deus, não foi seu irmão, seu tio, seu pai, ninguém conhecido. Mas até quando daremos graças a Deus? Quando não será a gente que vai receber ligação da polícia, de um hospital ou dos bombeiros dizendo que a saudade chegou para ficar? 

Chora o Brasil, chora nossa presidente, choram nossas almas sufocadas pela fumaça. Sangram nossos corpos e nossa auto-estima a sensação de imunidade a desgraças e tragédias. Somos todos impotentes diante de acontecimentos como esse e a impressão que se instala em nós vendo o noticiário, vendo a dor daqueles que perderam filhos, sobrinhos, amigos que saíram de casa para se divertir é de falta de ar. A fumaça negra está em volta de nós e não vemos a saída de emergência. 

E num momento como esse só nos dá vontade de abraçar filhos, pais, amigos, parentes, pessoas que amamos e no calor delas sentir conforto. Se tiver vontade de falar a alguns deles que os ama diga. 

A gente nunca sabe quando será a última vez. Palavras não mensuram o que se passa diante de nossos olhos. Só nos resta chorar pelo pedaço que perdemos. As lágrimas são as únicas palavras quando o coração perde a voz…

Pedaço de Mim

(Chico Buarque) 

Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar

Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi

Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus