Dia desses, matutando no ócio sobre uma aula que dei a respeito da Festa da Penha e as artimanhas de sacralizar o profano e profanizar o sagrado, resolvi ensaiar uma traquinagem brasileira: não usarei mais os conceitos de Apolíneo e Dionisíaco para falar de impulsos fundamentais do homem, ordem e caos, festa e labuta, inversão e controle e outros salamaleques. Para todos os efeitos, utilizarei os conceitos de Oxalufanico e Exusíaco. Nietzsche, que se tivesse conhecido um babalorixá e raspado o orixá de cabeça resolveria boa parte dos seus problemas pessoais, aprovaria.
 
Oxalufã é o senhor do pano branco, da paciência, do método, da ordem, da retidão de conduta e do cumprimento rigoroso dos afazeres. Tudo que é contrário a isso representa a negatividade que pode prejudicar seus filhos. Diz um mito do corpo literário de Ifá que, quando se desviou da missão a ser executada e se entregou aos deleites do vinho de palma, Oxalufã quase comprometeu a própria tarefa da criação do mundo. Tomou uma porranca e, por muito pouco, a criação não foi para a cucuia. Em outra ocasião, quando também tentou agir por instinto e teimosia, não seguindo as recomendações do babalaô, Oxalufã foi preso ao fazer uma viagem ao reino de seu filho Xangô, acusado injustamente de furtar o cavalo do Obá. Curtiu uma cana de sete anos por causa disso.
 
A dança de Oxalufã é  alquebrada, solene, marcada pelo ritmo lento e constante do toque do igbin nos atabaques. Apoiado em um cajado sagrado, o opaxorô, coberto por um pano branco, o alá funfun, o grande orixá exige respeito e é reverenciado por todos os outros orixás. Sua propalada lentidão, porém, é apenas aparente, feito o futebol de Ademir da Guia, límpido, clássico, objetivo e sem firulas, na direção inexorável do gol adversário. Quando o rum dobra na batida do aguidavi, Oxalufã mostra o vigor de sua majestade séria.  
 
Seus filhos devem evitar as bebidas alcoólicas, não podem nem chegar perto de cachaça, e são submetidos a uma série de tabus alimentares que envolvem, por exemplo, os alimentos que levam dendê. É a ele, reverente, que ofereço canjica sem sal, peço a ordem para minha casa, dedico a minha comoção silenciosa e guardo o branco nas primeiras sextas-feiras. Oxalufã é, enfim, o maestro de solenidades, que não toca sem partitura e não quer firulas que driblem o rigor bonito e sério do que vai escrito na pauta.
 
Já Exu vive no riscado, na fresta, na casca da lima, malandreando no sincopado, desconversando, subvertendo no arrepiado do tempo.  Exu é o menino que colheu o mel dos gafanhotos, mamou o leite das donzelas e acertou o pássaro ontem com a pedra que atirou hoje; é o subversivo que, em um verso de Ifá, quando está sentado bate com a cabeça no teto e em pé não atinge nem mesmo a altura do fogareiro.
Exu é Pastinha na ginga, Garrincha no drible, Dino no sete cordas, Grande Otelo na tela, o jagunço na travessia, o sincopado do escurinho com fama de brigão, a pimenta no caruru de Dona Flor, Tia Eulália no miudinho, a rima de Aniceto na roda de partido alto, o mote de Zé Limeira, o trenzinho do Villa-Lobos, o manto do Bispo do Rosário, a vida severina, o infinito enquanto dure e o provisório que se perpetua na poesia. Exu mora nos oito baixos de Januário e passeia, brincalhão, nos 120 do seu filho Luiz.
 
Certa feita imaginei e escrevi sobre um encontro entre Heráclito e Exu. O grego diz, cheio de solenidades, que viver é a arte de esperar o inesperado. O moleque Elegbara, preto retinto, filá na cabeça , pés ligeiros e pau duro, solta uma gargalhada alegre e responde ao grego, entre um gole e outro de marafo , enquanto descarna um bode, prepara o couro e dança no aço da navalha:

– Só percebeu isso agora, meu bom?
 
Como eu acho, feito o poeta das irrelevâncias, que só não é falso aquilo que o homem inventa, faço dessas brasileirices africanas o meu desfazer do nó do mundo e me proclamo Oxalufanico e Exusíaco: é assim, galhofeiro como o Compadre e sério feito o Pai Maior, que tento compreender as nossas ritualizações do tempo.
 
Abraços