Neste domingo, a coluna Orun Ayé, do compositor Aloísio Villar, fala sobre o aniversário do Flamengo, completado no último dia 15.
Eu teria um desgosto profundo
Em agosto fiz uma coluna, que surpreendeu muita gente, falando do aniversário do Vasco. Então nada mais justo que nessa semana fale do meu clube do coração.
É um dos primeiros amores da minha vida e um dos maiores também. Maior motivo de choro de minha existência até hoje: choros de alegria, emoção porque sou uma pessoa que raramente chora de tristeza e que nos últimos tempos tem maltratado muito meu coração e esfriado meu sentimento. Diminuído não, porque esse continua intenso.
Na última quinta o Clube de Regatas do Flamengo fez 117 anos. Não simplesmente um clube de futebol.
O Flamengo é uma força da natureza. Ele troveja, muda o sistema de rotação da Terra, é motivo de catarse. Nelson Rodrigues já falou sobre essas coisas muito bem, mas ele mesmo eu acho que não consegue explicar o sentimento do rubro-negro pelo Flamengo. Não existem palavras pra definir, não foram inventadas essas palavras.  
O Flamengo tem mais de trinta e cinco milhões de fiéis, essa quantidade é maior que a de muitos países e religiões. O Flamengo é o nosso país, nossa religião – sendo comprovado na expressão “Nação rubro-negra”. Eu já ouvi uma expressão que diz “pelo Brasil a gente morre, pelo Flamengo a gente mata”.
Expressão exagerada, mas que mostra esse amor.
Um amor democrático que une pobres, riscos, velhos, jovens, homens, mulheres, que rompe as fronteiras do Rio de Janeiro e cria torcedores apaixonados por todo o Brasil e o mundo.  O Flamengo não tem fronteiras, ele é universal.
O Flamengo sempre esteve presente em minha vida. No começo dos anos 80, muito criança, já acompanhava as reuniões de família para os jogos do clube. Lembro bem da final do Mundial de Clubes (13 de dezembro de 1981), quando nos reunimos na casa da cunhada de meu tio Junior na zona sul do Rio.
Tinha cinco anos, mas me lembro bem da movimentação, da sala cheia, fogos, buzinaço e a vibração com a conquista rubro-negra – até hoje ainda inédita no futebol carioca.
Em 1983 acompanhei por conta própria, apenas meu interesse, o primeiro jogo do Flamengo. Na época era mais difícil transmissão televisiva de futebol e acompanhei pela rádio Nacional o jogo Flamengo x Santos pela final do campeonato brasileiro de 1983.
Naquela época eu tinha decidido torcer contra o Flamengo sob a alegação de que ele só vencia e isso enjoava. A velha mania de torcer pelo mais fraco.
[N.do.E.: o colunista deve estar feliz nos últimos tempos (risos)]
O Santos vencera a primeira partida por 2×1 e jogava pelo empate a partida de volta no Maracanã. Nem deu tempo do clube santista se empolgar. Zico fez o primeiro gol logo no primeiro minuto e no fim do jogo uma situação curiosa que me intrigou na infância.
Antes do terceiro gol marcado por Adílio o “garotinho” José Carlos Araújo que fez a narração disse “vai sair o terceiro gol do Flamengo”. Fiquei anos tentando descobrir como ele sabia que seria gol.
Enfim, o gol saiu e o Flamengo foi campeão. Esta partida e o Flamengo 3 x 2 Atlético Mineiro – brasileiro de 1980 – se transformaram nos dois jogos da história do futebol que eu queria ter visto.
No ano seguinte me tornei oficialmente torcedor do Flamengo – para nunca mais deixar de ser – em ma derrota: 4 x 1 pro Corinthians no brasileiro de 1984, jogo que nos eliminou.
Nesse ano também ocorreu meu primeiro choro por causa do Flamengo, o primeiro e acredito único até hoje numa derrota e que mesmo assim minha mãe e avó sempre falavam que eu era fanático pelo clube a ponto de chorar quando perdia. Foi no 0x0 com o Grêmio no Pacaembu após 120 minutos, que eliminou o clube da Libertadores.
Choros de alegria foram muitos. A conquista do estadual de 1986 me marcou por ser o primeiro título que vi do Flamengo como torcedor fanático. Outros jogos especialmente me marcaram, como a semifinal do brasileiro de 1987 quando tínhamos um timaço que venceu outros timaços; campeonato em que Zico teve que tomar infiltração para jogar e que alguns idiotas teimam em tentar nos tirar.
O Atlético tinha um super time e chegou invicto à semifinal. O Flamengo venceu por 1×0 no Maracanã, gol de Bebeto [N.do.E.: eu estava no Maracanã] e foi com a vantagem do empate para o jogo da volta no Mineirão.
Abriu com facilidade 2×0, o Galo teve um jogador expulso e mesmo assim conseguiu o empate. Fiquei com medo e parei de ver o jogo, indo para o quarto. De lá ouvi gritos da minha sala e minha mãe correu para me contar que saíra gol do Flamengo. Corri e ainda vi a confusão porque o Renato Gaúcho xingou o Telê após o gol.
Abre aspas: só um nerd, um molequinho que não conhece a história do Flamengo pode xingar o Renato. O que ele fez com a camisa do clube foi monstruoso.
Foi para mim a maior vitória que vi do Flamengo, como a derrota mais doída foi o Fla x Flu do gol de barriga em 1995 – com gol do mesmo Renato.
Tive bons e maus momentos torcendo pelo Flamengo, como torcedores de todos os times tiveram.
Meu último momento sublime com o clube foi na conquista do título brasileiro de 2009, comandados por Adriano e Petkovic. Eram 17 anos sem títulos brasileiros e o fim do jogo me fez voltar a chorar lágrimas rubro-negras. A diferença é que em vez da minha mãe era a Bia com poucos meses de idade que me olhava sem nada entender.
E ela será rubro-negra também, como eu sou, como minha mãe foi, meu avô. O Flamengo é imortal: está enraizado na minha família, em muitas famílias e no sorriso desdentado do povo brasileiro. Que é chamado de favelado, mulambo por outros torcedores – mas tem orgulho disso.
O Flamengo é favela: é o clube do cara que acorda cinco da manhã e pega três ônibus, trem para chegar ao serviço, que recebe um salário de fome que mal dá pra sustentar sua família. Mas esquece todas as mazelas do mundo, o tanto que a vida lhe maltrata quando vê aqueles homens com a camisa preta e vermelha entrar no gramado. No dia que o jogador do Flamengo, que estiver com aquela camisa, tiver a noção do que ele representa o Flamengo será invencível.
Também é o clube dos ricos, de gente como Roberto Marinho. Uma vez, irritado, ligou para a Rede Globo perguntando porque o jogo do Flamengo não estava sendo transmitido. No jogo seguinte, para não tomar outra bronca do chefe passaram o jogo, mas apenas para sua televisão – e ele pensou que fosse para todo Brasil.
[N.do.E.: o curioso é que o perfil dos sócios e dirigentes do clube é MUITO elitizado.]
O Flamengo é o clube dos grandes ídolos.
Domingos da Guia, Leônidas, Valido, Rubens, Dequinha, Pavão, Zizinho, Zagallo, Evaristo, Dida, Gerson, Garrincha, Dorval, Geraldo, Paulo César Caju, Rondinelli, Aldair, Leonardo, Zé Carlos, Fillol, Edinho, Bebeto, Jorginho, Renato, Gaúcho, Zinho, Edílson, Petkovic, Juan, Julio César, Gamarra, Adriano, Romário, Ronaldo Angelim, Ronaldinho Gaúcho.
E mais Raul, Leandro, Figueiredo, Mozer, Junior, Andrade, Adílio, Titã, Nunes, Lico…
… E ele, ele que se o Flamengo é uma religião ele é nosso Deus.
Zico.
O clube não passa por um momento bom. Anos e anos de má gestão, péssimas administrações, brigas vaidosas pelo poder, mau caratismo e canalhices. Tudo isso chegou ao ápice na administração da senhora Patrícia Amorim e fizeram o clube que era para ser um dos mais poderosos do mundo estar em frangalhos, falido. Sendo humilhado, motivo de chacota.
Mas sempre existe a esperança de dias melhores e eles virão. Não sei se a partir do dia 3 de dezembro, dia das eleições para presidente do Flamengo. Acredito que não porque o cenário não é animador, mas o Flamengo é muito maior que eles, o Flamengo somos nós e todos os seus apaixonados.
E por mais que muitos torçam contra, mesmo quem se diz Flamengo, somos poderosos, somos maioria, somos a raça de um jogador medíocre que sabedor de seu não talento dá o sangue numa partida de futebol, enche a camisa de suor por saber a importância daquela pele que veste e vira ídolo.
Há de chegar o dia que o Flamengo não precisará de jogadores, bastará a camisa pendurada nas traves para amedrontar os adversários e, dessa forma, o Flamengo continuará. Fazendo história, apaixonando, nos fazendo ter o coração puro como o de uma criança que por alguns momentos esquece que a vida pode ser uma porcaria em um grito de Mengo acompanhado por amigos na arquibancada ou ao abraçar a pessoa que você nunca viu na vida na hora do gol.
E mais e mais crianças como eu naquele mundial de 1981 serão apresentados ao Flamengo perpetuando a nossa raça: a raça rubro-negra.
117 anos só? Fala sério. No sétimo dia Deus descansou e foi ver um jogo do Flamengo.
Flamengo sempre eu hei de ser. Orun Ayé!