O leitor mais atento do Ouro de Tolo já deve ter percebido que levo uma vida típica de classe média brasileira, mais em termos de consumo e menos em termos de sentimento de classe.
Faço esta introdução porque minhas filhas estudam em um colégio carioca típico de classe média – embora cobre mensalidades de Ipanema, mas esta é outra história – e sábado foi a festa junina anual do colégio.
Nesta festa as turmas mais novas como as das minhas filhas dançam quadrilhas, as mais velhas buscam arrecadar fundos para suas festas de formatura e o colégio em si busca reforçar seu caixa. Nada muito diferente do que se vê em outros colégios brasileiros.
Antes de abordar o tema deste post, lembro que freqüento pouco a vida escolar das minhas filhas no colégio em si, porque os horários delas não combinam com os meus de trabalho. Então somente convivo com as pessoas das turmas delas ou nas festinhas infantis ou então nestas oportunidades.
Pois é. Calculo eu que pelo menos no espaço de tempo em que estive na festa circularam umas mil pessoas pelo espaço do colégio. E algo que me chamou muito a atenção: não havia sequer um único aluno negro neste universo amostral.
Leitores, isso mesmo: nenhum. Nem mesmo mulatos viam-se. Entre os pais de alunos claramente identificados como tal consegui distinguir um único mulato, nenhum negro. Isso em um universo amostral de uns 500 alunos, talvez.
A turma da minha filha mais velha tem um aluno mulato – mas cuja mãe, que conheço de vista, é branca – e uma outra menina que tem ascendência e traços árabes, a mãe dela também é mulata, mas ela mesma é branca. Já a da minha mais nova nem isso.
Quero chamar a atenção para o fato de que o racismo no Brasil é algo que permeia de tal maneira a sociedade que é considerado “natural” – e por isso mesmo, não é visto como racismo. A sociedade em geral considera “normal” um colégio de classe média com mil, mil e quinhentos alunos, e nenhum, ou poucos deles, negros.
Aos negros são reservadas posições subalternas e de menor remuneração. Isso na festa estava claro. Os seguranças, por exemplo, eram quase todos mulatos e negros. Ou seja, é um bom microcosmo de nossa sociedade.
Minha avaliação é que o racismo no Brasil se expressa justamente na desigualdade de oportunidades. Os negros já saem em desvantagem na corrida por melhores posições na sociedade, desde o nascimento. Ainda quando se consegue romper este início desigual negros em posições de destaque não são vistos da mesma forma que se brancos fossem.
Um bom exemplo disso é o Ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa, que é muito mais cobrado, em especial pela imprensa, que seus pares no Tribunal. A única explicação que encontro é por ser negro.
O leitor pode afirmar, com razão, que o preconceito no Brasil é de classe ou renda, não de cor. Entretanto, não se pode olvidar que percentualmente o número de negros entre os pobres é maior, muito maior que entre os de melhor situação financeira. Ou seja, a chance de um pobre ser negro é muito maior que ser branco – e o raciocínio inverso se aplica à medida que se sobe nos extratos de renda familiar.
Poderia sofisticar o argumento colocando uma razão histórica: que desde a Lei Áurea os negros se integraram à sociedade em condições desvantajosas tanto em termos educacionais como de renda. É uma visão, mas a meu ver não existem determinismos históricos: a realidade pode e deve ser transformada. Esta história de que “negro é pobre e assim deve continuar” não cola.
Racismo no Brasil não é chamar de “macaco”, segregar por cores as entradas de edifícios ou pensar que “todo preto é ladrão”. Esta é a face visível e francamente minoritária. Por outro lado, mais fácil de combater, porque é aberta.
Racismo no Brasil é ver uma turma de crianças de classe média em um colégio e não haver uma única negra. É olhar em um salão com umas 70 pessoas de uma grande empresa, todas com empregos acima da média brasileira, e só haver dois negros. Isso para não falar do corpo gerencial – e olha que a empresa em questão é uma das mais empenhadas em promover ações afirmativas.
Não precisa ir muito longe: basta ver o número de negros em comerciais de televisão, por exemplo, ou em papéis de destaque em novelas e mesmo na imprensa.
Ou seja, o racismo no Brasil é de oportunidades.
Esta análise leva necessariamente à questão das cotas. Quem é contra se utiliza basicamente de um argumento: que a sociedade brasileira não é racista e que, por isso, não precisa haver ações afirmativas. “Basta os negros estudarem e ponto”, este é o argumento.
Contudo, o quadro que mostro acima denota claramente que precisa haver ações equalizadoras a fim de que no futuro haja as mesmas oportunidades para brancos e negros, rendas mais altas e rendas mais baixas. Qualquer ação afirmativa envolve algum tipo de “desigualdade” menor que vise corrigir a desigualdade maior. Este é o princípio.
Obviamente, àqueles que individualmente serão prejudicados formarão grupos de pressão para fazer valer seus interesses próprios acima dos coletivos. Quem está acostumado a ganhar tem dificuldade a ceder, no mínimo que seja.
Que fique claro que acho razoável haver cotas por renda e dentro destas, para negros. Até pela minha própria história: quantos “Migões” não ficaram pelo caminho? Minha história, no momento em que a empreendi, era solitária: hoje vemos muitos jovens ascendendo socialmente.
Lembrando sempre que por mais que haja ações deste tipo o desequilíbrio ainda irá perdurar por gerações.
Por outro lado, em certas posições e certos momentos acho importante que se nomeiem negros a fim de marcar uma ação afirmativa: um Ministro do Superior Tribunal Federal, por exemplo, ou o presidente de uma grande empresa.
Finalizo lembrando uma vez mais que o pior racismo é aquele considerado como o “estado natural das coisas”, da forma que ocorre aqui no Brasil. É o mais difícil de combater – e ainda gera livros de intelectualóides de extrema direita defendendo que o racismo não existe no Brasil. Existe sim.
Basta olhar uma sala de aula de um bom colégio privado.