Nesta Sexta Feira Santa, a coluna “Cinecasulofilia”, do crítico, professor e cineasta Marcelo Ikeda. Como sempre, coluna publicada em parceria com o blog de mesmo nome.

L´Apollonide

Desde o primeiro plano já é possível ver uma proposta em L´Apollonide.

Um travelling rigoroso enquadra os corredores vazios do bordel. Dois ou três corpos entram em quadro através de portas; os corpos cruzam-se rapidamente, para em seguida tormar o seu rumo, entrar em outro quarto, e deixar novamente o corredor vazio. São duas mulheres seminuas que se encontram no meio do corredor, trocam meias palavras, e um homem as acompanha de uma porta a outra. Uma luz dourada, cálida, banha os corredores, numa luz de penumbra que nos remete à luz dos candelabros e de um fim de tarde. Uma espécie de poente que tarda a chegar.

L´Apollonide é um filme de interiores, quase todo passado dentro do bordel (com exceção de uma cena marcante de que falaremos adiante). É um filme de interiores femininos, ou seja, sobre a liberdade.

Mais ainda, é um filme sobre a luz.

Após o plano sobre os corredores, uma das mulheres narra um sonho. Esse sonho tem lacunas que vão ser completadas pela vida, mas de uma forma nada idílica ou romântica. L´Apollonide é exatamente sobre a possibilidade do sonho nos limites do confinamento, ou ainda, sobre a possibilidade de viver os sonhos, ou melhor ainda, sobre a possibilidade da vida ainda que ela nos revele a faceta mais direta (ou dolorosa) do “o que são feitos os sonhos”.

Mas como Bertrand Bonello faz isso? Depois dos “escândalos” de O Pornógrafo e Tirésias, Bonello continua direcionando sua atenção para o corpo e o sexo, mas aqui de uma forma bem diferente dos filmes anteriores. O que impressiona é a delicadeza com que o diretor abraça o universo do bordel, mas sem deixar de mergulhar em suas facetas obscuras.

Há um clima afetuoso, de despojamento. Apollonide é um trabalho de atrizes que estão juntas em quadro, dividindo espaços. Mas ao mesmo tempo é um filme de época. Existe um rigor na composição, na luz e na direção de arte que aponta para um caráter de construção fílmica. Nada parece fruto de improviso mas de um despojamento calculado mas ao mesmo vivido, intenso, delicado. É nessa aposta de mise-en-scene que Bonello faz seu comentário sobre as “regras do jogo” daquele mundo: como “atrizes”, as personagens do filme de Bonello representam seu próprio papel. Enquanto representam esse papel, vivem seus sonhos, expõem suas fraquezas, enfim, sobrevivem.

Ao mostrar o universo de um bordel, Bonello evita o sensacionalismo da fetichização do universo do sexo como sinônimo de degradação ou do mero proibido. Mostra o bordel como um espaço de convivência, entre corpos e sonhos. Um local de encontros. Não julga os personagens, como “dentro” ou “fora” de um sistema. Não faz o filme para supostamente problematizar uma moral social quanto ao sexo. Prefiro pensar que seu filme fala de mulheres que sonham. Um filme sobre as máscaras. Um filme sobre a coxia das apresentações teatrais/circenses.

Entre “o crepúsculo do século XIX” e “a aurora do século XX”, L´Apollonide é também sobre o fim de um tempo, mais do que sobre o recomeço de outro. “É o dia da Bastilha, mas ninguém está te decapitando”. É o fim da aristocriacia e a chegada da prostituição de massa nas ruas. Ou ainda, o fim do cinema de mise-en-scene para o triunfo do cinema numérico. Ou a pauperização da França. Ou da Europa. Mas o diretor não observa o fim desse mundo com uma profunda nostalgia. Se o bordel é retratado não raras vezes com um clima claustrofóbico, ou similar a uma prisão, o branco das ruas não oferece uma solução ingênua para essas mulheres. Talvez L´Apollonide seja uma reflexão do sentido dos termos “liberdade, igualdade e fraternidade” no mundo de hoje.

L´Apollonide, pelo menos para mim, tem outro ponto de interesse complementar. É um filme de homenagens.

Começando pela opção afetuosa de colocar em papeis menores alguns amigos diretores de seu próprio tempo, como Jacques Nolot e Xavier Beauvois. Ou ainda, uma homenagem ao romance de Victor Hugo, ou ainda ao expressionismo alemão (o belo filme esquecido de Paul Leni) com a personagem da “mulher que ri”. Ou ainda ao cinema e ao nô japonês. Ou talvez uma pantera negra, como se num filme de Buñuel sobre os mórbidos prazeres da burguesia decadente. Mas para mim a homenagem mais bonita de Bonello foi a Jean Renoir. A cena em que as mulheres fazem um piquenique em seu dia de folga me parece claramente devota a Um dia no campo, de Renoir. É curioso como Bonello combina essas referências entre o expressionismo alemão e o impressionismo francês, sem nunca fazer com que essas referências sejam pesantes ou que oprimam o filme.

Apesar de mostrar aspectos sofridos do enclausuramento, Bonello não quer fazer drama social sobre a escravidão das mulheres nem quer promover a amoralidade da liberdade da exploração do corpo feminino. É curioso pensar como L´Apollonide está muito distante das ambições do brasileiro ‘O Doce Veneno do Escorpião’, sobre a Bruna Surfistinha. Enquanto o filme brasileiro é cinema de mercado pragmático, que fala de um caso concreto de uma mulher que viu o sexo “como um negócio”, como forma de “se dar bem na vida”, e quer seduzir o espectador com cenas calientes, mescladas com um certo dramalhão de “recuperação do anjo caído”, L´Apollonide procura conviver com essas mulheres, construir um clima de cinema, fazer relações que apontam para um além-concreto.

Pequenos fios de história aparecem e desaparecem pelos corredores do L´Apollonide, assim como os corpos das mulheres que transitam pela penumbra das luzes de tom âmbar. Restam pequenos momentos, lembranças, memórias, de dor, de prazeres fugazes, de abandonos.

Ao final, o que resta? O futuro. Numa das sessões, a mulher amarrada grita “quero parar”. Já não é mais possível. Ali estão as marcas da “mulher que ri”. Marcas que serão usadas para outros fetiches.

“O que você vai fazer agora?”
“Não sei”.