Nesta sexta feira, a coluna “Cinecasulofilia”, do professor, cineasta e crítico Marcelo Ikeda, faz uma série de digressões sobre as novas tendências do cinema nacional. Vale a pena a leitura.

Como sempre, coluna publicada em parceria com o blog de mesmo nome.

Novíssimo Cinema Brasileiro

Acho engraçado quando as pessoas dizem que “novíssimo cinema brasileiro” não quer dizer nada, e que é preciso achar um conceito mais preciso para delimitar (demarcar) o que vem acontecendo num certo cinema brasileiro. Dizem que os filmes são diferentes, que não é questão de idade (pois há cineastas velhos que fazem filmes antenados, e jovens que fazem filmes caducos) nem mesmo de fontes de financiamento (há filmes sem grana “novelinha” e há filmes com editais que são antenados), etc, etc.

Acontece que sempre foi assim. Os nomes são apenas “rótulos”, e nada dizem.

Mas por outro lado dizem algo sim: reconhecem que algo está acontecendo, e que isso não é isolado de um ou outro filme, mas que “há algo no ar que os une”. Fica-se discutindo que não há nada de novo no “novíssimo cinema brasileiro”, e o termo “novíssimo” é equivocado. Claro que é. Mas se de um lado não há nada de novo, por outro é claro que há algo de novo. Ficam cobrando “definições” ou “características” do chamado novíssimo, e é claro que isso é uma casca de banana.

Por exemplo, é só pensarmos no “neorrealismo italiano” ou na “nouvelle vague francesa” ou mesmo no “cinema novo brasileiro”. O que é o neorrealismo italiano? O que liga esses filmes? Se formos entrar nessas definições pra valer, vamos começar a ver as contradições desse rótulo. Ladrões de Bicicleta foi filmado a partir de uma produção de estúdio com grande orçamento, com todos os raccords e cheio de carrinhos e refletores. Ou ainda, um filme como Arroz Amargo, do de Santis, apesar de ter todo um cacoete de neorrealismo, na verdade não carrega consigo a essência do neorrealismo, porque não está preocupado com a condição de trabalho das mulheres nas plantações de arroz, e sim nas pernas da Silvana Mangano, e foi isso com que fez com que o filme fosse de boa bilheteria.

E, aliás, “neorrealismo” é “neo” em relação a quê? Esse termo é bom?

Claro que não é, claro que não dá conta dos filmes, mas ao mesmo tempo esse termo é ótimo porque é um registro de que num determinado momento e lugar “havia algo de novo no ar”, um “espírito cinematográfico renovado”. A mesma coisa é a nouvelle vague francesa. Resnais é nouvelle vague? Não, mas ao mesmo tempo é. Ou, “o velho Bresson”, quando fez Mouchette, foi chamado de nouvelle vague? Não, porque é de outra geração. Mas ao mesmo tempo Rohmer quando fez O Joelho de Claire sim, apesar de ser bem mais velho que Godard ou Truffaut. Mas e O Signo do Leão, é nouvelle vague? E La Pointe Courte, é nouvelle vague? Não é, mas é mais nouvelle vague do que muito filme da nouvelle vague.

É por aí. É questão de grana? Mas e Godard, quando fez O Desprezo, quase um projeto de encomenda do produtor Carlo Ponti, se vendeu ao sistema, ou deixou de ser nouvelle vague por isso? E outros e outros e outros exemplos podem ser listados.

Há sim um “novíssimo cinema brasileiro”. Se o nome é bom ou não, não importa. É ruim mesmo, porque os rótulos não conseguem dar conta dos filmes, da singularidade dos filmes e dos realizadores. E esses filmes mudam, porque os realizadores mudam, porque o mundo muda, ele nunca é o mesmo.

Vejam Rossellini, que pouco depois dos “marcos neorrealistas” fez Stromboli ou Viagem à Itália, que foge da “cartilha” do neorrealismo, ou Visconti quando fez o grandioso Sedução da Carne, etc. Esse termo é impreciso, incorreto, contraditório, não há nada de novo, é difícil dizer o que une um certo conjunto de filmes em um termo só, e há coisas que não se encaixam muito bem (Cavi é “novíssimo”? Filmes como Riscado ou Bollywood Dream são “novíssimos”? Adirley é “novíssimo”?).

Essa discussão “do que é” e “do que não é” é muito chata, e é uma casca de banana. O que importa – e esse é o foco da discussão – é que sim, há algo de novo no ar no cinema brasileiro de hoje, que foge dos circuitos oficiais de fontes de financiamento, modo de produção, distribuição e exibição, ou como esses filmes trabalham com o tempo, com o espaço, com a narrativa, com os personagens, com a cidade, embora, possam esbarrar, em maior ou menor grau, nos modelos mais tradicionais.

Todas essas cascas de banana que algumas pessoas podem jogar (ou ainda, melhor dizendo, todas as ressalvas justas que possam ser feitas à insuficiência desse rótulo) não podem nos fazer desistir da aposta de que há algo raro, singular, acontecendo no cinema brasileiro de hoje. Podem até fazer críticas a como certos grupos se apropriam politicamente do uso desses termos para reivindicarem espaços de legitimidade e poder – uma questão pantanosa que pelo menos aqui não vou adentrar – mas não dá pra agir como se “para jogar a água fora da bacia tivéssemos que jogar a criança dentro”.