Após um longo inverno, a coluna “Cinecasulofilia”, do crítico, professor de cinema e cineasta Marcelo Ikeda está de volta. Hoje com um panorama da mostra de cinema realizada no final de janeiro na cidade mineira de Tiradentes.
Mostra de Tiradentes 2012
Assim como no ano anterior, a mostra de curtas em Tiradentes dividiu as obras em duas sessões: a Panorama e a Mostra Foco. Esta última, competitiva, reuniu dez curtas-metragens em destaque no evento.
Se Tiradentes ganhou destaque nos últimos anos por realçar as invenções formais de uma nova geração do cinema brasileiro, respirando ares de uma renovação estética, neste ano, especialmente pela mostra de curtas, ficou nítida a vontade da curadoria de contrapor essa tendência. 
Os dez curtas da Mostra Foco foram, em sua esmagadora maioria, filmes narrativos, de dramaturgia tradicional. Como o próprio catálogo da mostra afirma, “são filmes que não resvalam na administração de códigos e sensações, mas (…) são filmes aplicados na construção de cenas.” Ou ainda, “é interessante notar que o panorama do curta-metragem brasileiro hoje, longe de ser um paraíso de ousadia e invenção formal, é onde gêneros e temas que há pelo menos 30 anos estão longe do cinema brasileiro de longa-metragem ressurgem com impressionante desenvoltura”.
As palavras-chave aqui parecem ser “gêneros” e “temas”, em substituição a “códigos” e “sensações”. A questão é que para investir nessa aposta de “mudar os rumos da mostra”, a curadoria parece atropelar os próprios filmes, que não dão conta dos conceitos dos curadores. Essa “aposta” tem dois problemas principais.
De um lado, os próprios “códigos” e “sensações” explorados por diversos curtas produzidos neste ano não simplesmente repetem os conceitos apresentados pelos curtas anteriores, como se fossem meras emulações ou diluições de uma tendência contemporânea, ou ainda, como se o cinema contemporâneo fosse simplesmente homogêneo. Ou seja, os realizadores que possuem, ao longo de anos, um trabalho coerente mais ligado a “um cinema de fluxo” correm o risco de ficar de fora porque “estão no contrafluxo das tendências curatoriais”.
Ainda, a curadoria deixa implícita uma distinção quase antagônica entre um e outro cinema, entre um cinema “de códigos e sensações” e outro “de gêneros e temas”. Ou ainda, “um cinema de fluxo” e “um cinema de cenas”. Ao invés de propor examinar as fronteiras dessa suposta dicotomia, a curadoria apostou exageradamente num “contrafluxo”. 
Acredito que essas dicotomias, ou ainda, esses antagonismos, pouco acrescentam ao panorama do curta-metragem brasileiro atual, ainda mais tendo em vista que os curtas apresentados não conseguem estar à altura da aposta da curadoria. Ou seja, passou a impressão de que as opções da curadoria foram mais uma recusa do cinema de fluxo do que essencialmente uma aposta na reciclagem do cinema de cenas. Ou seja, a curadoria optou por uma via negativa que, pelos curtas apresentados, não conseguiu se confirmar.
Sim, porque uma vez que se aponta para um “cinema de gêneros e temas”, a pergunta que naturalmente se segue é: como esses gêneros e temas são desenvolvidos através de estratégias de encenação, isto é, de que forma esses pressupostos são encenados? Como as cenas são desenvolvidas, como o ritmo narrativo é articulado, de que forma esses curtas escapam do lugar-comum ou das estratégias narrativas mais convencionais, como o espaço é integrado à narrativa, como o trabalho de atores ou a representação dos corpos escapa dos fetiches do gênero?
A resposta, em grande parte desses curtas, é infelizmente frustrante. Um exemplo está no trabalho de direção de atores, que foi um dos “focos” dessa mostra, dada a homenagem a Selton Mello e a debates sobre o tema na própria mostra. Ao contrário, pelos curtas, o desenvolvimento dos personagens está envolto em caricaturas e clichês. Nos curtas, os atores ainda são vistos com base em seu desenvolvimento psicológico, numa dramaturgia mais tradicional. Ou seja, não há um trabalho de corpo mais arrojado, aproximando o trabalho de dramaturgia de um Artaud ou Grotowski, por exemplo. 
Entre nós, dinheiro, curta de Renan Rovida, é realizado por um grupo de teatro. Não se trata de naturalismo: tudo é artificial, grosseiro mesmo. A recusa pelo bom gosto é certamente uma aposta estética do curta. Acontece que o desenvolvimento da dramaturgia é por demais caricato: os personagens são meros representantes de classe, joguetes de situações lançadas pelo diretor para o improviso dos atores. 
Como num palco, eles se deslocam, mas seu corpo, sua voz e seus trejeitos, acompanhados por uma câmera que simula um documentário, não consegue aprofundar ou desenvolver suas premissas. Tudo já está dado pela cartela inicial, que o curta irá apresentar de forma reiterativa, como um grande pastiche de si mesmo. Ou seja, a elogiável espontaneidade dos atores não conseguiu dar vida ao filme porque não existe uma proposta de encenação que dê vida aos personagens.
O mesmo tom de pastiche pode ser identificado em Jiboia, de Rafael Lessa, dessa vez com uma produção muito mais esmerada. É curioso ver que diversos críticos associaram esse curta com Douglas Sirk ou mesmo Rainer Werner Fassbinder, sem se ater ao que é essencial nesses cineastas: o melodrama como um ensaio político, seja pelo exercício da luz, no primeiro, ou pela revisitação do melodrama, no segundo, não meramente como “exercício pós-moderno de diluição de códigos”, mas como proposta política altamente subversiva. Em suas cores quentes e seus contornos narrativos exagerados, 
Jiboia parece dialogar mais com um certo Almodovar, mas certamente nunca com Fassbinder: sua aderência ao cinema de gênero sem nenhum descolamento de suas estratégias discursivas o torna uma tentativa bem feita, mas sem força, certamente curiosa dentro do panorama do curta brasileiro atual mas muito mais próxima de um festival como Gramado do que de Tiradentes. O trabalho de corpo ou de voz da dupla de protagonistas femininas mantém-se sempre fiel a um desenvolvimento dramatúrgico tradicional, sem nuances ou ambiguidades.
Esse tom da curadoria de “recusa” de um certo cinema, mais do que afirmando uma outra via, está berrantemente expresso na seleção de Querença, de Iziane Mascarenhas. Iziane não é uma novata: realizou, entre outros, O Céu de Iracema, um interessantíssimo curta de decupagem. Querença dialoga com o já desgastado subgênero do cangaço, típico do cinema nordestino. Essa opção quase retrógrada nitidamente se afasta da aposta de um cinema contemporâneo cearense jovem, cristalizado no Alumbramento, mas que não se limita a ele, que recusa as representações tradicionais do sertão e do cangaço no cinema nordestino. 
É preciso observar que mesmo um talento jovem como Petrus Cariry irá dialogar com esses códigos mas jogando-os numa direção menos tradicional (seu último filme tem o sertão mas com um trabalho de tempo e espaço que o aproxima de um cinema contemporâneo, via Sokurov ou Bartas). Embora a questão feminina insira um novo olhar ao curta, a encenação de suas premissas é numa via bem mais tradicional. Exemplo disso é que o grande momento do curta acontece em seu plano final, quando a paisagem assume força vital, integrando o espaço às opções de dramaturgia, uma nobre exceção dentro das opções estilísticas do curta.
Por outro lado, havia um curta que, por trás de um aparente desenvolvimento narrativo mais tradicional, conseguiu extrapolar suas convenções narrativas para apresentar um trabalho de maiores ambições: é Na sua companhia, de Marcelo Caetano. O curta de Caetano apresenta dois homens que se encontram por acaso na noite e começam a desenvolver uma relação afetiva. Delicado, quebra as representações tradicionais tanto de gênero quanto da periferia. A representação do universo dos homossexuais ou do espaço da periferia não acontece pela “via negativa” mas sim afirmativa: os personagens possuem vida porque não são essencialmente “representantes de classe”. Isso se dá certamente pelas estratégias de encenação de Caetano, sua opção pelos espaços, pelos tempos, pelos olhares e pelos toques dos protagonistas. Caetano busca criar um espaço íntimo em que esses personagens se conhecem e se aproximam, a partir das suas diferenças e das suas semelhanças. Cria esse espaço também por uma estratégia: um personagem procura filmar o outro, e a câmera digital, “amadora”, busca recriar essa distância entre os corpos, “reencenando” essa tentativa de aproximação. 
Mas acredito que o curta de Caetano seja bem-sucedido não tanto por essa “estratégia” mas simplesmente pela delicadeza do realizador em evitar as “estratégias de choque”. Exemplo típico dessa beleza está na cena com o “cover de Maria Bethânia”, que foge do “meramente exótico” para optar por uma encenação frontal, humana. Não há caricatura, não há espaço para a “aproximação engraçadinha, cult ou kitsch”, que foi a norma dos filmes aqui apresentados que tocam a questão da representação do homossexualismo, em que nisso se inclui Máscara Negra, que, apesar de simpático, não conseguiu ir além da caricatura ou do pastiche (um travesti que joga futebol).
A Mostra Foco possuiu um “curta-óvni”. É Encontro com São João da Cruz, o único típico documentário entre esse conjunto de filmes. O singelo curta de Daniel Ribeiro Duarte, deslocado a ponto de quase querer mostrar o esgotamento desse tipo de curta, apresenta a poesia de Maria Gabriela Llansol mas não através de dados biográficos sobre a autora ou de depoimentos sobre a “importância literária” de sua obra, mas simplesmente através de um mergulho em sua poesia. No entanto, o que traz interesse a esse curta é como o diretor realiza sua proposta visando a materialidade do processo criativo, enfrentando o suporte físico em que se deposita a obra. O curta pode ser visto dessa forma como um embate dialético entre carne e alma, entre o corpo e o espírito, entre o papel e a ideia, entre a imagem e o sonho. Nos atuais tempos em que o suporte físico perde importância mediante os novos processos digitais de escrita, o curta assume uma conotação ainda mais interessante. 
Vemos a própria letra de Llansol sobre o papel, rasurando, reescrevendo, burilando a escrita, como parte integrante do próprio processo de criação. Exemplo máximo disso está o extraordinário plano em que “desfilam” todos os livros da autora, expostos, um a um, em frente à lente da câmera, num plano-sequência. Simples, doce, delicado, é um complemento adequado às intenções do curta: o livro aparece como suporte físico, em sua materialidade. Parece um plano de Straub (Llansol como Bach): a literatura como trabalho extenuante, físico mesmo, de escrita. Lembramos que a própria Llansol diz que “um livro não tem fim”, pois no mesmo dia em que põe o ponto final em um livro, ela começa a primeira frase do seguinte. 
Da mesma forma, no mesmo plano, seguem-se os livros que Llansol escreveu, um a um, num processo que não tem final (a duração do plano como um princípio ético, ou ainda, como uma ontologia do autor). Bela declaração de princípios sobre a poesia, sobre o autor, sem a psicologia determinística do desgastado desenvolvimento de personagens dos curtas anteriores. Aqui, sim, uma personagem é vista sem psicologia mas através dos rastros físicos de sua passagem: a escrita como corpo, o suporte físico do livro ao invés da psicologia do autor. O que é a escrita de Llansol? Um mistério!
É possível ver as mudanças da Mostra Foco a partir de um pequeno gesto: enquanto no ano passado o curta premiado foi Vó Maria, um curta de um jovem realizador do Paraná (Tomás von der Osten), que articulava de forma inventiva um ensaio sobre a memória através de relações ambíguas entre imagem (“representação”) e som (“depoimentos”), neste ano, o vencedor foi Quando Morremos à Noite, curta do também jovem Eduardo Morotó, contemplado na Mostra de São Paulo. Curta narrativo competente que se destaca pela espontaneidade dos atores, e que apresenta um olhar afetivo para personagens marginais mas que se afasta do discurso de sutileza do curta de Caetano. Olhando para um submundo, Morotó optou por um “Bukowski clean”. Tudo é bem declamado, preciso, está no lugar certo, isto é, o oposto da poesia urgente e visceral que emana do universo do escritor.
Ainda que naturalmente irregulares, os curtas “de fluxo” (que eram a maioria em Tiradentes) propiciavam debates, suscitavam discussões, levantavam dúvidas, eram misteriosos. Cristalinos, bem realizados, os curtas desta Mostra Foco não davam espaço para o debate. Talvez por isso os encontros com os realizadores tenham sido tão pouco estimulantes. Num deles, um dos diretores passou boa parte do tempo explicando porque era importante retirar a equipe do set enquanto as atrizes filmavam as cenas mais íntimas. Ou seja, passou a impressão de que boa parte dos diretores não tinha muito o que dizer. Quando se tratam de curtas misteriosos, polêmicos, os encontros, no dia seguinte, tendem a ser naturalmente mais interessantes. 
Dizendo de outra forma, é como se os curtas “morressem à noite”, logo ali depois do fim da projeção. 
O Festival de Tiradentes em 2012 exibiu também dois filmes que permitem comparações diretas por suas semelhanças e diferenças. Esses dois filmes me interessam na medida em que examinam um espaço através de um determinado olhar. 
É claro como a examinação dos espaços é recorrente no cinema contemporâneo, e como esse olhar para os espaços se reflete num espaço-tempo característico. O espaço como paisagem, que não se torna “pano de fundo” para encenar algo outro mas quase protagonista. É curioso também como esses filmes formulam estratégias que reencenam possibilidades de habitar um espaço, preenchendo esses espaços com vazios e silêncios. Ausências que falam a partir de estratégias distintas. 
Um passado não realizado, um projeto inconcluso, o tempo que continua. O fim está próximo, o presente não confirmou as expectativas do passado, as coisas mudam, sempre para pior. Os rastros da memória nesses espaços, espaços vistos como corpos dissecados por uma câmera (um olhar). A câmera habita esses espaços como se fossem uma casa. Acredito que uma certa ideia de casa (“lar”) liga os três filmes. Espaço, paisagem, vãos, memória, corpo, lar.
O primeiro deles é Balança mas não cai, longa de Leonardo Barcelos, da Teia, coletivo de Minas Gerais que vem realizando trabalhos significativos no cinema brasileiro contemporâneo, em geral relacionado com o documentário. Leo Barcelos retoma uma tradição primeira da Teia de fazer dialogar o documentário com as artes visuais, ou ainda, com a videoarte. Fortemente baseado num dispositivo visual, Balança mas não cai se afasta de alguns filmes recentes da Teia que possuem uma arquitetura cênica minimalista, focados na experiência do encontro do realizador com pessoas, em especial A falta que nos faz e O céu sobre os ombros. A concisão e a precisão íntima desses dois últimos filmes entram em contraste com o tom expansivo, quase neobarroco do filme de Barcelos.
Seu ponto de partida é um espaço físico bem definido: o edifício Balança mas não cai, em Belo Horizonte. Para radiografar o prédio, o realizador utiliza um conjunto de estratégias: entrevistas com antigos moradores, adequadamente vestidos para a ocasião; imagens de arquivo abodando a importância histórica do lugar; cenas de ficção em que atores incorporam uma certa aura mística do lugar; planos formalistas do espaço vazio; inserções videográficas como grafismos, rabiscos, filtros e letras inseridos sobre a imagem, como relações de texturas; planos em que os antigos moradores do local reencenam como habitavam esse lugar, mesclados com fusões ou com imagens do próprio diretor ou equipe dirigindo a cena; planos de câmera subjetiva em que o realizador, em tom confessional, analisa o impacto emocional da pesquisa sobre si mesmo. 
Esse conjunto de estratégias de abordagem embaralha o filme, como se fosse um inventário de suas próprias possibilidades, como um caleidoscópio de sensações, físicas, analíticas, motoras, sensóreas, emocionais. A síntese desse projeto está nos impressionantes planos de abertura do filme, em que uma espécie de grua circula o prédio, primeiro através de seu interior, e depois, por fora do prédio. Esse movimento vertiginoso que desorienta o espectador, que “nunca pára quieto” e que nunca consegue “dar conta” desse mesmo movimento talvez seja uma das imagens mais fieis ao espírito do filme, que mostra tanto as suas ambições quanto as próprias limitações desse projeto. Ao mesmo tempo em que as ruínas desse espaço físico interessam como grafismos de um espaço (as paredes do prédio como um corpo através do qual a câmera intervem através de texturas e formas, de incrustações sobre sua superfície), o diretor também se deixa fascinar pelos rastros de um passado, pelas memórias de seus antigos habitantes, e por uma certa aura de proibido, de libertário e de anárquico que o prédio emana. 
Ou seja, para além desse espaço físico (o corpo como pele, ou as paredes como espaço), interessa também a Barcelos identificar um certo modo de habitar o prédio, ou ainda, uma geografia íntima, um comportamento “esprevitado”, um certo tom de rebeldia, um cheiro libidinoso, mas que agora reside apenas no passado ou em seus rastros. Até que ponto esse espírito libertário do passado pode ser sentido hoje através de uma radiografia desse espaço físico? – talvez essa seja a pergunta-chave que Balança mas não cai tenta se fazer. Longe de tentar responder, e em analogia com os “planos de vertigem” que considero que são uma síntese visual do filme, é como se o próprio filme, por meio de suas viragens e diversas estratégias de abordagem que necessariamente “não se encaixam” num todo orgânico, “balançasse mas não caísse”.
Já HU, de Pedro Urano e Joana Traub Cseko, é “bem mais sólido” que Balança mas não cai (faço uma ironia, já que o HU foi implodido, ao contrário do primeiro…). Vejo o filme como uma fusão orgânica do trabalho de Pedro Urano como fotógrafo e cineasta e do rigor de Joana Cseko como pesquisadora e artista visual, pois há um rigor, na estrutura, nos planos e nos tempos que Estrada real da cachaça, longa anterior de Urano, não tinha, em sua delirante estrutura de caleidoscópio. Aqui, há uma fusão entre cinema e arte visual, ou ainda, entre o instinto e a razão, mais equilibrados. Talvez o que possibilite essa “fusão orgânica” entre os dois diretores seja o fato de que HU é um filme de arquitetura. 
Penso, dessa forma, o próprio título do filme – HU – como uma relação arquitetônica, entre as linhas retas e curvas das duas letras, pelos espaços vazios que fazem ressoar sonoridades: HU também é um filme sobre os espaços vazios entre o “H” e o “U” (ou ainda, sobre a estratégia do filme em dividir a tela em dois quadrantes de igual proporção, mas que não são exatamente simétricos). Me interesso por HU não meramente pela radiografia que faz de um grande projeto arquitetônico abandonado, ou pelo tom de denúncia ao descaso com a saúde pública no país, mas essencialmente o que me interessa no filme é sua relação com a arquitetura, em como os diretores encontraram opções de encenar formas como um espaço físico pode ser habitado. 
Colocando de outra forma, vejo o hospital universitário como uma casa, que precisa ser habitada. Mas diferentemente do filme de Leo Barcelos, que deixa um pouco o olhar da arquitetura para acompanhar antigos moradores desse prédio, como um rastro nostálgico de um certo tipo de comportamento, em HU o que importa é a arquitetura não somente como um espaço físico, mas como representação política de uma forma arejada de habitar um espaço. 
Ou seja, as questões da geografia humana de HU são também questões formais, ou ainda, questões cinematográficas de como representar um espaço que, para além da beleza e do rigor de sua construção, deve ser vivido e não simplesmente admirado como projeto. Não sei se me faço claro. A própria arquitetura do HU é impressionantemente ousada como projeto arquitetônico, como projeto formal. De outro lado, esse belo espaço formal não tem méritos meramente formais: é um espaço para ser habitado, para ser vivido, isto é, é uma casa. 
É um “espaço arejado”, de entrada de vento e sol (de ar e luz). Esse projeto, que alia arrojo formal a um modo de habitar um espaço, é um projeto político. Da mesma forma, o filme HU se intessa pelo rigor do olhar plástico do enquadramento dos espaços, mas transcende seu olhar formalista buscando os modos de como habitar esse espaço. É isso que o faz um filme político: não por “denunciar” o descaso com a saúde pública e o abandono do prédio, mas em ser essencialmente “um filme de arquitetura”, em pensar cinematograficamente como habitar um espaço “de forma arejada”, em pensar como o projeto arquitetônico é também um projeto político. Essas opções ficam claras ao final do filme, quando o abandono do prédio é associado com um abandono de um projeto arquitetônico ou ainda com o abandono de uma cidade. 
Diferentemente do filme de Leo Barcelos, que mostra a “renovação” do Balança, agora como empreendimento imobiliário de sucesso, ou seja, “a transgressão absorvida pelo mercado”, a espetacular implosão do HU mostra o fim de um projeto. Enquanto Barcelos se interessa pela “aura fantasmática” dos “escombros” do autêntico Balança, Joana e Pedro se interessam mais pelo desfazimento do concreto, pela poeira que dá lugar ao vento que circulava pelos amplos corredores do hospital. Nesse sentido, é sintomático um corte do filme, em que se passa de uma microcâmera que entra pela boca e filma os órgãos internos de um paciente para um plano que mostra as rachaduras da estrutura física do prédio, com suas tubulações e vigas deterioradas. 
HU não é o cinema observacional de “Hospital” em que Wiseman acompanha as relações humanas entre funcionários e pacientes, como reflexo das contradições da estrutura administrativa e política de uma instituição pública, mas sim analisa essas mesmas contradições a partir de uma radiografia física, de um “raio-X” das entranhas físicas (fisiológicas) desse corpo. O hospital é visto portanto menos em seu aspecto sociológico ou psicológico e mais como um corpo. O hospital como uma casa, a casa como arquitetura, e a arquitetura como um corpo.