Neste domingo, mais uma edição da coluna “Orun Ayé”, assinada pelo compositor Aloisio Villar. Sem delongas, vamos ao texto.

Dez Anos Balançando a Roseira

Essa coluna era para ter sido escrita em outubro, mas tantas coisas ocorreram na minha vida desde então, tantos assuntos surgiram que decidi deixá-la pra última “coluna normal” do ano – já que nas semanas seguintes abordarei Natal e virada de ano. 
Já contei aqui a história do “Orun Aye”, a primeira vitória em sambas de enredo, contarei agora a vitória no enredo “O Boi da Ilha é Holambra, a tulipa brasileira”, a segunda vitória que fez dez anos em 24 de outubro de 2001. 
Considero essa a vitória mais forte, a disputa perfeita. Erros não foram cometidos e o samba se impôs de uma forma extraordinária. Para alguns é o melhor samba que ajudei a compor até hoje e por alguns anos foi o “esquenta” do Boi da Ilha na avenida. Esquenta é o samba cantado pela escola antes do samba oficial do ano. 
A história dessa disputa começa muito antes como normalmente todas as disputas começam. Essa começou no pré carnaval de 2001. Tive problemas com o presidente do Boi da Ilha Eloy Eharaldt, troca de ofensas, acusações e decidi me afastar da escola depois do carnaval. 
O Boi desfilou e tirou sexto lugar, melhor colocação de sua história e recebeu o seu primeiro e até hoje único Estandarte de Ouro. O de melhor samba-enredo do grupo A. 
Com o prêmio e toda a repercussão pensei que talvez fosse uma boa continuar no Boi mesmo com todos os problemas e um problema a mais surgiu: fiquei sem parceria. 
Na noite da entrega do Estandarte de Ouro Silvana da Ilha, Clodoaldo Silva e Paulo Travassos foram à minha casa. Iríamos juntos para a festa e comunicaram que estavam fora da parceria porque eu me “queimara” na agremiação e não ganharia mais sambas na escola. 
Argumentei que não era bem assim, as coisas mudavam, mas Clodoaldo e Silvana ficaram irredutíveis, apenas Paulo mudou de idéia e decidiu continuar comigo. Nessa hora Roger Linhares, que morava na minha casa, apareceu e disse que os dois estavam agindo errado. Clodoaldo pediu que ele não se metesse porque era assunto da parceria e Roger disse que se meteria sim, pois, a partir daquele momento entraria nela e seria meu parceiro. 
O Roger desde que começou sua carreira de cantor sempre foi um dos mais procurados pra defender sambas nas quadras e seu valor cobrado não era baixo, por sempre conseguir levar os sambas até as finais. Nunca assinara um samba mesmo ajudando a compor porque assim perderia o dinheiro que recebia como contratado, mas vendo a minha situação decidiu não me deixar sozinho. 
Na festa, a minha situação com a escola piorou. Fui cumprimentar a primeira dama dona Zélia e ela não respondeu o cumprimento, me deixando com a mão estendida. Por vingança fiz o discurso em nome da parceria quando recebemos o prêmio e não citei o nome do presidente, depois mesmo a escola querendo não entreguei o estandarte por pensar que aquele era um prêmio dos compositores. 
A situação piorou a tal ponto que em uma reunião da escola semanas depois eu e Paulo fomos até ela entregar nossos papéis de licença. Entregamos, mas o corpo da escola pediu para que ficássemos. O presidente Eloy disse que faríamos falta; então pedi desculpas pelas coisas que eu disse e a falta de sua menção no prêmio e fizemos as pazes. 
Mas o Estandarte ficou comigo. 
Chegou a época de divulgação da sinopse e o Boi anunciou que falaria sobre a cidade de Holambra, no interior de São Paulo. A cidade é famosa por ser a “cidade das flores” e pela Expoflora, evento que leva turistas à cidade todo mês de setembro. 
Tínhamos que montar a parceria já que só tínhamos eu, Paulo Travassos e o Roger. Nando Pessoa topou continuar conosco cantando, Paulo Travassos convidou Cadinho da Ilha pra voltar à parceria depois de três anos e por fim entrou Mestre Arerê, conhecido mestre de capoeira e campeão do Paraíso do Tuiuti em 2000. 
Estava montada a parceria. 
A composição deste samba teve uma particularidade, algo que não ocorreu mais. 
Como eu disse, o Roger morava na minha casa e ele é craque em melodia – enquanto meu ponto forte é a confecção da letra. Meu ano de 2001 foi conturbado porque terminara namoro com a mãe da Bia, a Michele e ela tinha ido embora de casa. Nesse período o Roger foi um grande amigo me apoiando e dando força. 
E nesse período também ele conheceu a Paula, que veio se tornar sua esposa. Tema sobre flores, um com mal de amor, outro apaixonado, só podia sair coisa forte. 
E saiu. Estávamos inspirados e pela proximidade era fácil bater na porta dele quatro da manhã com alguma idéia e irmos pro terraço tentar montar a letra na melodia. Algumas partes do samba emperraram como o refrão principal, mas conseguiram sair e o samba no final foi um dos mais fáceis que fizemos até hoje. 
Os parceiros viram, aprovaram na hora e fizeram pequenas mudanças apenas e o samba ficou assim. 
BOI DA ILHA É HOLAMBRA, A TULIPA BRASILEIRA 

(Aloisio Villar, Paulo Travassos, Roger Linhares, Cadinho da Ilha e Mestre Arerê) 
Viajei 
No embalo de um sonho naveguei (e quando cheguei) 
Na cidade das flores 
Fiz amigos, tive amores 
De paz minha alma semeei 
Quero ter você comigo (vem meu bem querer) 
Quero curtir teu carnaval 
Sua cultura e alegria 
É primavera, to aí nessa folia 

Conto uma história eu vi 
A imigração uniu 
Holanda, America, Brasil 
Das festas e das crenças 
A mais linda flor se abriu 

Brota a poesia 
De uma tulipa 
Onde Holambra nasceu e floresceu 
Essência, dá aroma a vida 
Expressão de amor 
Me beija quero teu calor 

Balança a roseira, vou dizer no pé 
Boi da Ilha espalhando energia e fé 
Florindo a avenida, germinando emoção 
Paz na Terra vem pedindo essa canção 
Algumas curiosidades desse samba: 
Era ”teu cheiro dá aroma a vida”, expressão muito feia. Quebrávamos a cabeça pra arrumar um sinônimo para “teu cheiro” e minha avó, da sala, falou “essência” – que foi adotado na hora. Até hoje falo a ela que é coautora desse samba. 
Essa acho que nem meus parceiros sabem, mas o “balança a roseira” foi inspirado numa música do Bonde do Tigrão que fazia sucesso na época: “balança a roseira, não deixa rosa cair”. 
O samba ganhou grande repercussão antes mesmo de ir a quadra graças à propaganda boca a boca de quem ouvia. Em uma reunião da ala de compositores da União da Ilha na semana anterior ao início da disputa boiadeira Carlinhos Fuzil, então presidente da ala de compositores da União, disse no meio da reunião que ouviu uma “pancada” para o Boi e que se fosse adversário não colocaria samba. Nando Pessoa espalhava que o samba era um “trem desgovernado” e quem estivesse no trilho era bom sair da frente. 
E o samba na estréia comprovou toda aquela repercussão, fazendo uma apresentação de gala sendo defendido com maestria por Roger, Nando e Cadinho. 
Evidente que no calor da disputa a gente não tem noção, mas anos depois conseguindo olhar de fora sabemos quando uma disputa de samba-enredo é decidida na estréia e essa foi uma. Ganhamos o samba na apresentação. Foram apresentações fortes desde o início, ao contrário do ano anterior em que só embalamos no fim. Se fosse no turfe era aquela corrida que o jóquei nem precisava bater no cavalo com o chicote. 
Existiam outros bons sambas na disputa como o do Carlinhos Danoninho e o samba do compositor tijucano Roberto Eloy. Esse último era o que víamos como o mais forte adversário, aquele que poderia incomodar. 
E meus ex parceiros? 
Silvana da Ilha fez um samba correto que chegou na final, mas sem repercussão e Clodoaldo Silva fez o samba com versos trash inesquecíveis “sai pra lá formiga/capim barba de bode/meu santo faz milagre/comigo ninguém pode”. 
O dele caiu na terceira apresentação e ele se dedicou a disputa toda a falar mal de mim e dizer que nosso samba estava fora do enredo, a ponto que no meio do concurso tivemos que colocar a nossa justificativa do samba no prospecto. 
Mas a verdade é que o enredo fora todo resumido em nosso refrão do meio, modéstia a parte isso foi genial… (risos), e o que não tinha a escola colocou na avenida mudando seu carnaval em prol do samba. 
Não sei até hoje o que ele andou falando de mim no concurso, só sei que na época ele foi jurado por Roger e pelo Cadinho e as coisas quase foram às vias de fato. Mas acabou sem problemas e hoje todos se dão bem. 
Na época o presidente Eloy fazia o anúncio dos cortes e depois sorteava um samba pra se apresentar novamente. Nas quartas de final para surpresa de todos o samba de Roberto Eloy foi eliminado. Logo depois do anúncio o nosso foi sorteado para se apresentar de novo. Uma grande apresentação, comigo eufórico no palco tendo a certeza do bicampeonato. 
Outro fato ocorreu durante a disputa. O ataque as torres gêmeas. 
Nós tínhamos o verso “paz na Terra vem pedindo essa canção” e por intermédio do Cadinho resolvemos usar ao máximo. Sua irmã fez um cartaz com um avião indo em direção às torres e a mão de Deus segurando, embaixo no cartaz o verso. 
E com o grande samba, grandes apresentações e conteúdo emocional entramos naquela final de 24 de outubro de 2001. 
O Brasil passava situação dificil nas eliminatórias da Copa do Mundo e naquela tarde de domingo teria jogo no Rio Grande do Sul contra o Paraguai. O jogo acabou e nós já estávamos na quadra no meio daquela euforia da vitória distribuindo bandeiras do Brasil para a torcida. 
E fizemos mais uma grande apresentação. Largamos o samba na torcida, que cantou forte. Apresentação de campeão, de bicampeão. 
No fim aquela grande tensão normal de toda final de samba, tensão que aumentava com a presença de meus pais na quadra. Foram raríssimas as vezes que estivemos os três no mesmo ambiente e eles estavam lá por mim, a torcer por mim. Antes do anúncio teve show com Aroldo Melodia, grande show que não prestei atenção em nada de tão tenso que estava. 
O presidente pegou o microfone e pediu para que todos os compositores subissem ao palco. Mesmo com samba na final Danoninho passou por mim e deu parabéns pela vitória, mas naquela hora eu não conseguia mais raciocinar direito. Toda a certeza de vitória e confiança foram embora com a tensão. 
Fiquei perto de meus parceiros de cabeça baixa olhando o chão, concentrado como faço em todos os anúncios enquanto o presidente Eloy falava. O nervosismo era grande demais e ele começou “ e o samba campeão é o samba de”.. 
“… Aloisio Villar!!”. 
Eu e meus parceiros nos abraçamos, pulamos, gritamos, choramos. Cadinho sentou numa cadeira com falta de ar. Ele é cria do Boi da Ilha de frequentar os ensaios desde criança, não participou da campanha vitoriosa do ano anterior e realizava ali o sonho de sua vida. 
E emocionado vi meu pai abraçando minha mãe e falando “nosso filho é bicampeão”. 
O pré carnaval do Boi da Ilha foi maravilhoso. Roger foi contratado pra ser cantor da escola, mestre Jonas dava show na bateria e o samba era considerado um dos melhores do carnaval. Clodoaldo falava que se o samba tirasse dez ele parava de escrever. 
E o Boi fez um grande desfile, para mim o maior de sua historia mesmo debaixo de forte chuva e com um carro alegórico não conseguindo entrar na avenida. A escola foi colocada na lista de favoritos pra subir ao Grupo Especial e os jornais do dia seguinte diziam que o Boi tinha vencido o duelo com a União da Ilha. 
Com medo de ficar atrás do Boi na apuração os dirigentes da União da Ilha não apareceram. Mas não foi o que esperávamos: o Boi repetiu o sexto lugar deixando certa frustração, a União ficou em terceiro e o samba tirou 10. 
Clodoaldo e Silvana que me abandonaram no dia da festa do Estandarte por eu estar queimado e não ter mais possibilidades de vencer no Boi não venceram mais na escola e em nenhuma até hoje. Eu ganhei mais quatro sambas no Boi, um S@mbanet pela escola e mais vinte e seis sambas no total. 
Mas não ficaram mágoas, torci por Silvana na final do Boi esse ano e vi Clodoaldo torcendo por mim no Dendê. Respeito muito os dois que me ajudaram a ganhar meu primeiro e inesquecível samba, só tenho a agradecer. 
E agradecer mais ainda a Paulo Travassos que não me abandonou e no fim de tudo na quadra do Boi lhe dei um abraço e disse “obrigado por ter ficado comigo”. 
A poesia brotou de uma tulipa e de uma reunião de amigos que se amam, se respeitam. A amizade é a verdadeira essência que dá aroma a vida. 
E dez anos depois continuamos balançando a roseira.