Nesta quarta feira, temos mais uma edição da coluna “História & Outros Assuntos”, assinada pelo Mestre em História Fabrício Gomes.

Mais que Cláudia Leitte, Ivete Sangalo ou o axé – que eu, particularmente, detesto – o tema de hoje é, mais uma vez, a intolerância.

Vamos ao texto:

Viva Cláudia Leitte!
Já sei que esse post vai gerar muita polêmica. Mas é justamente esse um dos objetivos desse blog: não ser uma unanimidade. 
Mais importante do que gerar tráfego, desejo despertar o raciocínio, discussões (civilizadas, por favor) e argumentos. E por favor, o título desse post não é uma provocação, apenas um ponto de vista. 
Não sou fã da cantora Cláudia Leitte, nunca fui a um show dela, nunca comprei um CD (ou baixei alguma de suas músicas) e também não sei cantar uma música sua. Mas defendo inexoravelmente sua postura corajosa perante as críticas que ela vem enfrentando desde sua apresentação no Rock in Rio 4. Cláudia Leitte vem sendo duramente criticada porque… não canta rock. 
“O lugar dela é no carnaval de Salvador”, dispara o senso comum que povoa principalmente as redes sociais – Twitter, Facebook, Google +. É como se criticar Cláudia Leitte fosse um mantra obrigatório para aqueles que desejam estar bem diante seus seguidores, afinal: “Rock in Rio é lugar de roqueiro”, não é mesmo?
Não, não é. Desde sua primeira edição, em janeiro de 1985, qualquer criança saberia dizer que o festival idealizado por Roberto Medina nunca foi 100% rock. Naquela edição tivemos artistas como Ney Matogrosso, Ivan Lins, Al Jarreau, Elba Ramalho, Alceu Valença, Moraes Moreira, entre outros. 
Em 1991, no segundo do Rock in Rio, o grupo teen New Kids on The Block se apresentou e ainda tivemos o psicodélico Dee-lite. Naquela edição, Lobão foi vaiado pelos metaleiros porque colocou a bateria da Mangueira no palco do festival. 
No Rock in Rio 3, em 2001, outros tantos artistas pop… mesmo com Carlinhos Brown tendo garrafas de água mineral jogadas em sua direção… Então fica a pergunta: a crítica a Cláudia Leitte é feita diretamente a ela, ao estilo “baiano” ou simplesmente mascara a intolerância que povoa mentes no mundo atual? 
Seria maravilhoso se a crítica fosse unicamente à cantora, afinal, ninguém é obrigado a gostar de um artista. Eu por exemplo, não curto heavy metal – apesar de ter gostado da apresentação do Sepultura com um conjunto francês que toca tambores neste Rock in Rio 4. Mas nem por isso vou desmerecer o artista que se apresenta ou quem é fã. O que tenho percebido – principalmente porque tem sido o termômetro sentido nas redes sociais e nas conversas de bar – é que muita gente vem aderindo a esse pensamento primário do “Nós aqui, eles lá”. Inclusive muita gente que sei que é inteligente.
Chegaram até a propor que, “em retribuição” aos baianos, o Metallica fosse tocar num trio elétrico no carnaval de Salvador. Mal sabem que inúmeros conjuntos de rock já tocaram no epicentro da folia baiana, que é uma festa democrática e todo ano convida artistas de variados estilos musicais. O lendário vocalista e líder do U2 – uma das maiores bandas de rock de todos os tempos, diga-se de passagem – inclusive já cantou junto de Ivete Sangalo no carnaval de Salvador, em 2006. (Vejam o vídeo desse encontro no início desse post). Sertanejos como Zezé di Camargo e Luciano também já foram. E tantos outros. 
Então é preciso ter calma, pessoal. Não combina com o mundo globalizado essa idéia de separatismo musical, do “cada um em seu cada um”. O que é a música senão uma união de estilos, uma fusion de ritmos? O jazz começou assim, idem o samba e o funk. E com o rock, nascido nos anos 1950, com Chuck Berry e Little Richard (só pra citar alguns), não seria diferente também. Inclusive porque da união de estilos nascem outros, tão ou mais agradáveis de se ouvir. 
Até grandes lendas musicais vivem fases que jamais foram monolíticas: Miles Davis era do jazz, mas experimentou fases distintas em sua carreira. Viveu inclusive uma fase “elétrica”, nos anos 1970. Os Beatles podem ser citados como exemplo também. Os quatro rapazes de Liverpool, todos de terno e gravata, correspondem apenas à primeira fase da carreira do grupo. Já em fins da década de 1960, em plena época do Peace and Love, aderiram à vestimenta hippie, por exemplo. John Lennon e George Harrison chegaram a exacerbar esse pensamento, aderindo mais ainda à causa multicultural.
Alguém mais crítico pode alegar que o evento se chama “Rock in Rio”, logo, só tem que ter rock. Realmente é um argumento plausível. 
Só que como já citado neste post o evento nunca foi essencialmente de rock, até porque seria comercialmente inviável de acontecer se seguisse o rígido mantra intolerante. Além de drenar dinheiro para os bolsos dos organizadores e patrocinadores, é consideravelmente saudável que outros estilos habitem um festival “de rock”, trazendo inspiração e democracia para a música. 
Se fosse proibido tocar quem não fosse de rock, não teríamos por exemplo a belíssima apresentação de Stevie Wonder no último Rock in Rio 4. E a de Elton John também. Bandas de rock brasileiras, como Jota Quest, Paralamas do Sucesso, Titãs e Capital Inicial inclusive já declararam que “bebem em outras fontes” musicais diferentes do rock. Skank, que também tocou no Rock in Rio 4, não é, em essência, um grupo de rock: começou fazendo algo parecido ao reggae.
Portanto, menos intolerância e mais integração. Até porque não combina com a raiz cultural do brasileiro esse apartheid todo que estão fazendo. Somos um povo miscigenado, democrático na convivência.
Viva Cláudia Leitte – mesmo que eu não goste das suas músicas e não fosse a um show dela nem que me pagassem…