Resenha Crítica – “Os últimos soldados da Guerra Fria”
Máfia. Espionagem. Guerra Fria… Estamos falando de algum filme do agente 007 – James Bond? Será mais um filme produzido no auge da Guerra Fria para exemplificar o poderio econômico e ideológico dos Estados Unidos?
“Os últimos soldados da Guerra Fria – A história dos agentes secretos infiltrados por Cuba em organizações de extrema direita nos EUA” (396 páginas, Companhia das Letras, 2011), sugestivo título do novo livro do jornalista Fernando Morais deixa entrever, ao leitor que passa os primeiros olhos na publicação, que se trata realmente do enredo de um filme hollywoodiano, desta fez com Cuba como cenário.
Certo? Errado. Há espionagem (e contra-espionagem), há o clima envolvendo a Guerra Fria (mas sem a participação da já extinta União Soviética), mas o sotaque agora é espanhol e acontece entre dois países separados apenas por 130 quilômetros: os EUA e Cuba. E mesmo assim, não são estadunidenses, stricto sensu, os protagonistas do livro: são cubanos (defensores do regime castrista em Cuba) e são cubanos exilados nos EUA – muitos naturalizados estadunidenses.
Em “A Ilha”, livro-reportagem escrito em 1977 (e que em 2001 e 2010 ganhou reedição pela Companhia das Letras), o autor faz um competente panorama sócio-político e cultural de Cuba, em uma época em que ainda predominava a Guerra Fria e a censura no Brasil a tudo que falasse ou lembrasse “comunismo”. Em todos esses livros – e em mais alguns que por motivos de espaço não foi possível exemplificar aqui – o autor delineia o que ficou conhecido como sua marca registrada: a ampla pesquisa com base em entrevistas, depoimentos, documentos, jornais, entre outras fontes que possibilitam a transformação de uma história apenas normal numa trama que ganha velocidade e interesse para quem lê.
Talvez “Corações Sujos” seja o livro que mais se aproxima da temática explorada por Fernando Morais neste novo livro, justamente pela abordagem que faz do inusitado: no primeiro, uma máfia japonesa do interior paulista (quando seguindo uma regra clichê, sempre associamos máfia à Itália ou à Chicago dos anos 1930/40), e nesta recente obra, a máfia cubano-estadunidense e principalmente anti-castrista.
Uma máfia hispano-estadunidense que – fugindo novamente ao senso comum – é detentora de poder econômico, possui vasto império midiático na região da Flórida – é dona de jornais, revistas, canais de televisão e até de uma rádio – a Rádio Martí, que é transmitida da Flórida e chega até a Havana, com o objetivo de convencer os cubanos de que Fidel Castro é inimigo do povo. Mais que isso, as organizações comandadas por cubanos exilados possui também poder político, tendo representantes em diversos partidos, elegendo deputados federais, senadores e até governadores simpáticos à causa anti-castrista. Sem esquecer que nas eleições presidenciais a Flórida constitui uma espécie de “estado-chave”, capaz de decidir eleições, como na eleição presidencial de 2000, quando a vitória do republicano George W. Bush sobre o democrata Al Gore decidiu-se neste estado. Organizações cubano-estadunidenses que doam milhões de dólares a campanhas políticas, que povoam diversos bairros em Miami – destacando-se Little Havana – e que não atuam apenas nos meios ditos “legais”.
Para o público leigo, que também é leitor deste blog, uma rápida informação: a Revolução Cubana, em 1959, tinha inicialmente caráter nacionalista, de defesa de Cuba, contra a exploração estrangeira, contra os cassinos, a prostituição e principalmente a defesa de uma economia mais justa e equilibrada, com amplas reformas sociais, nacionalizando bancos e preocupando-se com a alfabetização em massa e cuidados com a saúde da população. Não favorecendo apenas ao imperialismo estadunidense, mas também proporcionando aos cubanos condições melhores de vida e trabalho.
Só que não acabou, pois Cuba foi obrigada a reformular alguns pontos de sua política interna, permitindo por exemplo, o investimento capitalista no setor de serviços – leia-se, turismo. Mesmo com o implacável embargo econômico imposto aos cubanos, diversas empresas, principalmente européias, acreditaram no potencial turístico de Cuba. As atividades terroristas dos grupos de extrema direita não eram de todo modo ignoradas pelas autoridades estadunidenses, que procuravam não se intrometer no que consideravam uma batalha doméstica. Se eram indiferentes, por outro lado não reprimiam, já que interessava também aos EUA a queda do regime em Cuba.
Mas onde entra a espionagem nessa história?
É o tema principal do livro e autor joga luz sobre o serviço secreto cubano, que designou 14 agentes (entre eles, duas mulheres) para vigiarem de perto essas organizações de extrema direita, acompanhando suas atividades e ajudando a coibir a série de atentados terroristas planejados por elas, enviando informações a Cuba. As organizações terroristas contavam com uma ampla rede de “funcionários”, espalhados em países da América Central.
Um dos pontos que o livro busca levantar é que os cubanos espionavam… cubanos que patrocinavam atos de terrorismo em Cuba. Não faziam espionagem militar nos EUA, tampouco patrocinavam atitudes contrárias à soberania yankee. Essa tese é portanto contrária à grande celeuma promovida pelos exilados cubanos, com a anuência do governo estadunidense, interessada em atiçar conflitos ideológicos. O autor, referenciado em vasto material jornalístico, mostra que as atividades de Havana estavam longe disso, tendo Fidel Castro, algumas vezes, tentado alertar Bill Clinton das atividades subversivas lesivas a Cuba.
Fernando Morais faz, sem dúvida, um excelente trabalho, mostrando que é perfeitamente possível fazer jornalismo apoiando-se em fontes históricas sem ser tendencioso. Dá uma aula em certos jornalistas que se aventuram a escrever sobre história e que buscam em afirmações simplistas fazer valer unicamente a veracidade de seus fatos, pouco se importando com o processo histórico e a sua contínua relação de forças – que mostram que história não é apenas fato ou acontecimento.
Veja o trailer oficial do livro e algumas entrevistas do autor do livro, falando sobre a nova publicação: