Miguel de Cervantes tentou, com o seu Dom Quixote de La Mancha, satirizar os romances de cavalaria medievais. Acabou produzindo uma poderosa metáfora dos sonhos humanos, suas grandezas e misérias, além de escrever o livro mais engraçado que li. O orixá Dorival Caymmi dizia que o Quixote é uma espécie de Bíblia Sagrada. Como Caymmi nunca errou, eu acredito e rezo seu credo no Carnaval que se aproxima.

Se algum dia alguém resolvesse escrever uma versão brasileira do Quixote, não tenho dúvidas de que o nosso cavaleiro da triste figura deveria ser representado pelo folião do Bloco do Eu Sozinho. É isso mesmo: sempre que penso em um Quixote brasileiro, imagino aquele sujeito que vestiu a sua fantasia e saiu às ruas no Carnaval rigorosamente solitário, no máximo na companhia de desajeitados escudeiros catados por acaso em alguma esquina.

Explico. Sempre fui um vigoroso defensor de uma ideia que não tem lá muitos adeptos e que já apresentei alhures: os maiores foliões são os tristes. O Carnaval, definitivamente, não foi feito para os alegres, os festeiros escancarados, as globelezas, os baianos de ocasião, as polianas desvairadas do sonho bom, os colecionadores de abadás que depois da festa serão usados como uniformes de musculação.
O verdadeiro folião – o triste – sabe que a experiência carnavalesca é uma pequena morte. Durante os dias de Momo, a máscara prevalece e todas as inversões sociais são urgentes e necessárias. É quando devemos esquecer o que somos, o que fazemos e, nos casos mais agudos, a quem amamos.

Esquecimento, eis aí a essência da folia. Que se vista o elmo, a malha e a couraça do cavaleiro – um pierrô apaixonado, um desajeitado palhaço ou alguma provisória melindrosa. Que se empunhe a lança e se monte em algum Rocinante que não há. As fanfarras anunciarão, no sassarico da porta da Colombo, o combate de três dias entre o fidalgo e os moinhos.

O legítimo folião não programa o Carnaval. Sabe apenas que vai para a rua imolar-se nos blocos e cordões, receber a unção dos enfermos com água benta de alto teor alcoólico e morrer até a quarta-feira de cinzas, quando ressuscitará como burocrata, marido, professor ou escriturário, para o longo e medíocre intervalo cotidiano entre um carnaval e outro.
Lembro , por exemplo, de uma história exemplar que meu avô contava sobre um velho folião pernambucano, tristíssimo, casado com uma tremenda jararaca, que saiu na sexta-feira, véspera do início do tríduo, com o argumento de que iria comprar uns caranguejos – prato predileto da patroa – para comer enquanto assistia aos desfiles das escolas de samba pela televisão, na santa paz do lar.
Eis que o marido zeloso reaparece, pra lá de Bagdá, na quarta-feira de cinzas, protagonizando uma cena definitiva. Fantasiado de Nero, espalha vinte caranguejos vivos na entrada da casa e chama a mulher, preparada para trucidá-lo. Ao ver a fera, começa a falar alto, dando esporro nos crustáceos decápodes :
– Mais um pouco, pessoal. Falta pouco. Como são lentos. Quatro dias com a maior paciência e nada de vocês andarem mais rápido.
Entrou , evidentemente, no rolo de pastel, mas honrou os bagos e as tradições. Cumpriu um dever.
É necessário brincar, senhores, é urgente esquecer. O verdadeiro devoto de Momo, o maior dos solitários, é um morto se esbaldando na multidão. Brincar o Carnaval, para um Quixote ao sul do Equador, não é opção. É o juramento de consagração, ao som de quem não chora não mama, do mais leal dos cavaleiros.
Evoé!