Vai chegando o carnaval – embora mais distante este ano – e temos um tema sempre palpitante no debate entre os aficcionados, mas pouco visto pelo grande público: a administração, em geral, das escolas de samba.
Para o apreciador “normal” – que ouve os sambas, assiste pela tv ou ainda desfila, mas não vive o dia o dia – a única face visível desta questão são os enredos patrocinados e as súplicas dos presidentes das escolas por mais verbas públicas. Entretanto, há uma série de questões que estão ocultas e que necessitam ser debatidas e analisadas de forma clara.

O primeiro ponto que abordo é a questão do patrocínio. O que se observa hoje é uma relação de “compra e venda” bastante simples: as empresas injetam recursos na escola e em troca se tornam o enredo da agremiação. Mal comparando, é como se a Devassa, por exemplo, patrocinasse uma peça de teatro e como contrapartida exigisse que o tema fosse a própria cerveja, ou cervejaria. É exatamente desta forma que ocorre hoje em nossas escolas. Para 2012 somente no Grupo Especial temos a Grande Rio com Florianópolis, o Salgueiro com o Rio no cinema, a Mocidade com o enredo sobre agricultura, a Vila Isabel com o cabelo e a Beija Flor com Roberto Carlos, este, patrocinado pela Nestlé. Ainda temos a Portela que trocou de enredo a fim de atrair uns caraminguás do Porto do Rio, mas até o momento em que escrevo sem muito sucesso.

Ou seja, entre doze escolas temos cinco com enredos assumidamente patrocinados e mais uma buscando recursos. Entretanto, duas perguntas se impõem: o patrocínio é realmente necessário ? O modelo atual é correto ?

Quanto à primeira pergunta, eu tenderia a responder que não. As escolas de samba do Grupo Especial, o Olimpo do samba, dispõem de aproximadamente R$ 5 milhões para não somente realizar seu carnaval quanto honrar suas despesas de custeio. Neste valor estão inclusos cerca de R$ 1 milhão da subvenção da prefeitura do Rio de Janeiro, mais R$ 1 milhão do governo do Estado e um valor variável – de acordo com o ranking da Liesa – de em média R$ 3 milhões referentes a direitos de arena, venda de Cds, ingressos da Passarela do Samba e recursos referentes à transmissão televisiva.

Para o leitor ter uma idéia, um carnaval campeão como o do Salgueiro em 2009 (foto abaixo) gastou aproximadamente R$ 4 milhões (dados da diretoria da escola), isto com os carros alegóricos extremamente caprichados e caros que a escola apresentou naquele ano. Uma escola do Acesso B como era o Boi da Ilha em 2008/09 – anos em que fui Diretor de Planejamento da escola insulana – gastava cerca de R$ 350 mil para colocar o carnaval na rua, incluindo todas as despesas. Por mais que haja uma diferença abissal entre a primeira e a terceira divisões do samba, não chega às vinte vezes que escolas “ricas” alegam – afirmando que precisam de R$ 8 milhões para fazer seu desfile. Desconfie quando ouvir isso na imprensa, caro leitor.

Além disso, as agremiações do Grupo Especial possuem um potencial de alavancagem de recursos desprezado: programas de sócio torcedor, contratos de fornecimento de camisas e licenciamento de produtos com a marca da escola, shows, eventos e mesmo uma melhor rentabilização de suas quadras de ensaios. Eu me lembro que fiz uma conta rápida utilizando a Portela como exemplo e cheguei ao valor estimado de R$ 600 mil/ano com um programa de sócio torcedor (a R$ 10/mês) e mais uns R$ 500 mil/ano com contratos de fornecimento de camisas e licenciamento de produtos. Esta é uma conta rasteira e claramente subdimensionada.

Outro ponto muitas vezes desconhecido é o contrato de grandes escolas com cervejarias. Sei de um caso real, onde a empresa paga R$ 1 milhão/ano para a escola e ainda fornece sem custo toda a cerveja vendida nos ensaios. Ou seja, são mais R$ 2 milhões aproximadamente que esta agremiação tem garantidos todo ano. Cheguei a ver uma minuta de contrato destas em uma ocasião.

Pelo lado das despesas, parece claro que há muito o que se ganhar em termos de eficiência em gestão administrativa e financeira. Não há controles orçamentários estritos e muitas vezes a contabilidade ainda é na base do “papel de pão”. Com um bom planejamento pode-se antecipar compras de materiais e iniciar-se serviços de ferragem, carpintaria e ateliê antecipadamente, diminuindo o custo de mão de obra. Por mais que os recursos “oficiais” não sejam entregues antecipadamente, um bom planejamento somado à busca por outras fontes de recursos pode diminuir de forma significativa o valor gasto para se colocar o carnaval na rua.

Sobre o modelo de patrocínio, este atual onde se vende “a peça”, ou seja, o desfile, é algo absolutamente anômalo. O regulamento dos desfiles dificulta um pouco as coisas ao não permitir o merchandising explícito, mas existem formas de se obter patrocínios institucionais com retorno de imagem e sem interferir na porção cultural da festa – que pode e deve ser priorizada. Ainda temos a questão da detentora dos direitos televisivos, que interfere no evento e na transmissão de forma a não fazer propaganda explícita – haja visto o episódio ocorrido ano passado com a escola paulistana “Rosas de Ouro”, que teve de mudar seu samba, e com a Grande Rio com seu abre-alas – que fazia referência ao camarote da Brahma, abaixo – que foi simplesmente boicotado na transmissão.

Temos outra questão delicada envolvendo a gestão das escolas, que é a sua profissionalização pela metade.

O desfile vem tomando uma dimensão e vindo em um caminho onde se encontra em um dúbio meio termo: as administrações são profissionais quando se trata de exigir seus recursos, mas absolutamente amadoras no que toca às obrigações financeiras e a relação com os artistas do espetáculo. Atrasos nos pagamentos e a falta de uma relação trabalhista formalizada são a praxe; normalmente, quando há, são contratos de prestação de serviços com validade de um ano, mas o normal é a relação trabalhista “no fio do bigode”, totalmente informal e que desrespeita os direitos trabalhistas mais básicos.

Levando-se em conta que encontrar trabalhadores com carteira assinada é raro, isso dá ao presidente ou patrono da instituição um poder de mando sobre o funcionário absolutamente desequilibrado. A informalidade é a regra e calotes, muito comuns. Outro problema é a verdadeira escravidão a que se submetem nos dias de hoje os integrantes de baterias de grandes escolas, que ensaiam cinco, seis noites por semana sem nada além de bebida e, no máximo, um sanduíche. O que deveria ser uma arte, uma diversão, virou profissão não remunerada.

Também não podemos deixar de mencionar que as prestações de contas referentes à subvenção – parcelas do governo do Estado e da Prefeitura – levam todo o jeito de serem algo absolutamente fictício. Reproduzi aqui excelente material de pesquisa publicado pelo jornal O Globo logo após o carnaval do ano passado – em brilhante trabalho do jornalista Aloy Jupiara – demonstrando as incoerências de tais prestações, com sérias suspeitas de lavagem de dinheiro e evasão fiscal. Infelizmente, ao que parece o Ministério Público não levou adiante a investigação sobre os dados mostrados na matéria.

Aliás, para 2011 o Ministério Público quis impedir as escolas do Grupo Especial de receber a subvenção da prefeitura, mas esta e a Liesa (organizadora) encontraram uma engenhosa saída: o “Viradão do Momo”, série de eventos ocorrida nas escolas semana retrasada e que por sua realização cada escola recebeu R$ 1 milhão – sem a necessidade de prestar contas.

Finalizando este texto cabe realçar a absoluta ausência de democracia nas escolas. Praticamente todas as escolas do grupo principal – a solitária exceção seria o Salgueiro, assim mesmo com certa boa vontade – ou são feudos de uma pessoa ou família ou simulacros de democracia, onde só há troca de comando quando o dono se enche da brincadeira e vai embora para casa. Não raro estes mandatários são figuras com extensas folhas corridas ou sobre os quais recaem suspeitas e indiciamentos.

Este modelo organizacional das escolas acaba gerando aquele que é um dos principais problemas das agremiações hoje: a falta de transparência. Este é um artigo absolutamente em falta e sem previsão de chegada nas agremiações.

Já disse aqui que sou sócio da Portela, minha escola do coração. Em três anos e meio houve uma única Assembléia Geral – que aprovou o projeto de reforma na quadra que, aliás, até hoje não foi executado. De lá para cá não houve sequer a aprovação de contas dos anos, bem como a mudança estatutária que premitiu ao atual presidente uma segunda reeleição não passou pela aprovação em Assembléia. E isso para não lembrar das eleições, que se limitaram à assinatura na lista de presença. Isso não é exclusivo na azul e branca – escolas como a Imperatriz e a Beija Flor estão com o mesmo mandatário da fato há mais de trinta anos.

Voltarei ao tema.

(Fotos: Fabrício Gomes. Vídeo: União de Jacarepaguá 2010, bateria. Meu arquivo pessoal)