Anoitece na minha cidade. Do alto da colina, Nossa Senhora da Penha espalha suas bençãos aos cariocas. Anoitece na minha cidade, com uma beleza de silêncios entre uma ou outra rajada de tiros e os suspiros dos namorados. Em Parada de Lucas, num calor dos diabos, soltaram o primeiro balão. Em Vigário Geral, no campinho de terra batida, saiu o primeiro gol da pelada. No morro da Conceição, mais precisamente na Rua do Jogo da Bola, acabou de ser cantado o primeiro samba. Na Glória, quase chegando ao Centro, alguém tirou o primeiro cabaço… E eu sei que a beleza é triste quando anoitece na minha cidade.
E eu penso em Jorge de Lima, poeta maior, perguntando a Calabar “por que nos traíste”, se essa nossa alegria é apenas uma estranha maneira de ser triste? E penso na mulher amada e no filho que eu quero ter com ela; apenas para que ele veja como é bonito quando anoitece na minha cidade. E vejo o meu avô, que morreu quando anoitecia, em meio a uma solidão de incêndios. São silenciosos e benvindos esses meus fantasmas.
Anoitece. As estrelas alucinadas me comovem. São sambas de Cartola, fraseados de Pixinguinha, gols de Zizinho, pênaltis perdidos, amores desvairados, serestas ao luar, rodas de capoeira, cervejas geladas, mãos calejadas, rios imundos, suicídios das putas, joelhos ralados, fogueiras acesas, copos quebrados, beijos partidos, cantos dos fudidos e passos gingados. A cidade , emaranhada em mim, comove feito o diabo. É sempre assim quando anoitece.
(Mas hoje, especialmente hoje, a cidade anoitece de outra maneira. Em cada beco, em todos os butecos, os silêncios, os sambas e as cervejas insinuam o nome de um menino, feito a profecia da natividade sussurrada pelos pastores da noite – os que fazem do balcão do bar mais vagabundo uma manjedoura.)
Isso aqui é bonito pra cacete, mas nós somos transitórios. Duramos pouco. Daí essa tristeza larga do acabou-se o que era doce. Termina cedo demais, como um drible do Garrincha – e somos nós que caímos estatelados, driblados pelo imprevisto. A vida faz com cada um o que Jackson do Pandeiro fez quando cantou Sebastiana – pega pelo pé, revira, salta de banda e retoma o fraseado quando menos se espera.
Mas essa vida, breve acalanto de flor e faca, não se mede pela quantidade. Vale se for intensa, como o balão colorido que subiu nas alturas das tantas estrelas. Apagou…caiu…mas como subiu bonito o filho-da-puta. Como foi bonito o filho-da-puta!
Eu quero, mulher, um filho.  Pra sofrer, amar, gozar, chorar, brigar, ser driblado, perder o jogo, fazer o gol, tomar um frango… Eu quero um filho pra contar pra ele a história do balão, enquanto anoitece na cidade. Eu quero, sobretudo, cantar pra ele um samba do menino de vida curta e tamanha vida – a que permanece.
Anoitece na cidade, meu amor. Hoje, 11 de dezembro, é aniversário do menino Noel Rosa… e era isso que eu queria te dizer desde a primeira linha.