Quarta feira, dia de nossa coluna sobre ciência e tecnologia. Como sempre, assinada pelo professor de Biofísica da UFRJ Marcelo Einicker.

O tema de hoje é algo que até para mim é um completo mistério: a criação de uma célula artificial. Vamos ao texto:

E O HOMEM CRIOU VIDA! MAS…CRIOU MESMO?

Caros amigos,

Nesta última semana uma notícia científica esteve entre as mais lidas, apresentadas e comentadas de toda mídia. Também não poderia ser diferente pois trata-se de um grande marco na ciência mundial. Um feito que estará no hall das grandes descobertas como o domínio da energia nuclear, a descoberta da penicilina, o primeiro bebê de proveta e tantas outras descobertas que enchem de fascínio e orgulho o mais desacreditado ser vivo. Foi anunciado com toda pompa e circunstância que cientistas americanos teriam criado uma célula artificial! Mais ainda, esta célula recém criada em laboratório era viável e se reproduzia como se fosse uma célula normal. A leitura destas linhas realmente enche de impacto este feito do grupo de cientistas, mas alguns pontos devem ser melhor explicados para que sejam considerados nas discussões sobre o tema e é um pouco isso que a coluna vai abordar hoje.


Um Popstar da Ciência?

Nascido em 14 de outubro de 1946, John Craig Venter não era o que se pode qualificar de aluno exemplar na época do College (o ensino médio nos EUA). No entanto durante o período em que esteve como soldado americano na guerra do Vietnã, Venter ficou encantado com a atuação de médicos e enfermeiros no front de batalha. Como aqueles homens e mulheres lutavam contra os ferimentos dos soldados e discutiam fisiologia de uma maneira que conseguiram despertar no jovem Venter a certeza de que se tornaria médico. Por razões pessoais e do destino, Venter acabou mesmo enveredando pela Biologia e se especializou em biologia celular e bioquímica celular, vindo a se tornar pesquisador na State University of New York em Buffalo. Craig Venter iniciou uma trajetória muito venturosa não apenas na pesquisa propriamente dita, mas na parte política de captação de recursos junto ao governo americano e a empresas privadas que passaram a investir pesado nos projetos de Venter. Assim ele foi o fundador de algumas importantes intituições como o The Institute for Genomic Research, a empresa Celera – principal instituição onde foi conduzida a elucidação do genoma humano, e mais recentemente e cercado de alguma polêmica o J. Craig Venter Institute. Isso mesmo, um Instituto de pesquisa, criado por ele e com o nome dele! Venter foi apontado pela conceituada revista Time como uma das pessoas mais influentes do mundo nos anos de 2007 e 2008, muito por sua atuação no Projeto Genoma Humano. Outro lado pitoresco ou excêntrico de Craig Venter é o fato dele dedicar uma boa parte do ano a velejar um luxuoso iate pelos mares do mundo, iate este equipado com um laboratório onde Venter e seus cientistas fazem pesquisas genomicas em organismos marinhos. Mais detalhes podem ser lidos em http://www.midianews.com.br/?pg=noticias&cat=7&idnot=23807

Uma célula artificial?? E que prolifera??

Assim foi anunciada a última façanha de Craig Venter, a criação em laboratório, de uma célula biologicamente ativa e que era capaz de proliferar normalmente.

Mas, como antecipado no início desta coluna, é preciso analisar todo o protocolo experimental para entendermos que a tal célula artificial não era assim tão artificial. O que fez o grupo de Venter nesta pesquisa?

Primeiramente eles escolheram um microorganismo de onde obtiveram toda informação genética. Usaram a bactéria Mycoplasma genitalium, que é dos organismos com menor genoma conhecido; ou seja, toda informação genética que esta bactéria precisa para desempenhar suas funções biológicas está contida num cromossomo único. E a equipe de Venter decifrou neste genoma todos os genes desta bactéria. Com isso, usando técnicas de biologia molecular, fizeram outras células (E. coli), expressarem os diferentes genes do genoma da M. genitalium; ou seja, eles fizeram uma outra bactéria sintetizar cada um dos pedacinhos do genoma da bactéria inicial. Reunidos todos os pedaços do genoma da M. genitalium, novamente usando técnicas de biologia molecular, a equipe de Venter emendou os pedaços e formou uma cópia do cromossomo único da bactéria, igual o que acontece quando uma destas bactérias se divide naturalmente.

Esta molécula de DNA sintetizada foi então colocada numa bactéria que teve seu material genético totalmente removido, ou seja, o DNA gerado no laboratório foi inserido numa bactéria vazia e isso restaurou as funções vitais daquela bactéria a ponto dela poder voltar a proliferar. Desta forma podemos agora entender que os cientistas não criaram uma sequência gênica aleatoriamente e colocaram numa cápsula plástica ou coisa parecida, o que sim configuraria algo bem artificial. Os cientistas “montaram” um cromossomo idêntico a um que existe naturalmente, sendo que esta montagem ocorreu fora de uma célula. Esta é a parte “artificial”. A bactéria onde o material genético montado foi inserida também é uma bactéria como as outras daquela espécie, só que manipulada em laboratório para que ficasse sem seu material genético original. É esta leitura de o quão artificial é a célula de Venter que domina boa parte dos comentários sobre o assunto.

O impacto desta descoberta para a humanidade

Mesmo que a célula criada pela equipe de Venter não seja tão artificial, mesmo que o genoma utilizado no experimento seja um dos mais simples da Terra, o feito é grandioso e abre perspectivas muito boas para diferentes áreas, desde a saúde até o meio ambiente. Por exemplo, uma vez dominada esta tecnologia de “montagem de genomas”, poderá ser desenvolvida uma abordagem para inserir genes de interesse nas seqüências originais, criando organismos especializados em determinados processos. Por exemplo, com o acidente em curso da plataforma de petróleo no Golfo do México, já se imaginou a criação de um microorganismo que possa metabolizar (“comer”) o óleo, transformando o que polui em algo biodegradável. No campo do meio ambiente, a criação de microorganimos que destruam lixo e o transformem, por exemplo em material útil, ou microorganismos que destruam poluentes como agrotóxicos e outros que contaminam o solo e nascentes de água. Enfim, abre-se um mundo de possibilidades para o futuro, desde que todos os cuidados e toda pesquisa básica no assunto seja exaustivamente conduzida. Imaginar a liberação de bactérias ou outros organismos modificados em laboratório na Natureza, nos dá um arrepio de medo e nos remete a situações correlatas como a suposta origem do vírus da AIDS que seria um experimento que teria fugido do controle dos cientistas. A questão ética da manipulação da vida também é um item importante neste assunto e já está sendo bastante considerada não apenas por setores mais fechados como a Igreja, como também pelas comissões formadas por cientistas em todo o mundo.
   
Dominada esta tecnologia e entendido todo o impacto que possa ocasionar, estamos diante de um dos maiores feitos da Ciência em toda história.
   
Até a próxima!    

Marcelo Einicker Lamas”

2 Replies to “Formaturas, Batizados e Afins: a célula artificial”

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