Certos livros galvanizam a gente de tal forma que somente conseguimos parar quando finalmente terminamos a leitura. Deixamos outras prioridades de lado, leituras mais urgentes… Pelo menos para quem é apaixonado pela literatura e por um bom livro é assim que funciona.
Isto aconteceu com este “Conquistando o Inimigo”, que li em apenas duas noites de folga.
A história é a seguinte: conta o processo de libertação do ex-presidente Nelson Mandela, desde os tempos de cadeia até a chegada ao poder. O mote é a Copa do Mundo de rugby que foi disputada no país em 1995 – após o final do apartheid – e que foi utilizada como veículo para a integração entre negros e brancos no país.
Há lances inacreditáveis na história, como as tentativas de desestabilização do processo de fim do regime racista e ascensão do CNA (Congresso Nacional Africano) ao poder desarmadas de modo brilhante por Mandela. Em muitas ocasiões ele sacrificou o curto prazo apontando o final do caminho, a paz, como mais recompensadora.
Impressionante, também, é o processo de transformação do ódio em união nacional empreendida pelo grande líder, tanto do lado dos brancos – os africaaners, descendentes de holandeses – quando do lado negro. Seria muito mais fácil assumir o poder pela força e promover uma vingança ampla, geral e irrestrita; entretanto Mandela compreendeu que somente haveria um país e uma democracia se houvesse união nacional.
Também se deve destacar o precário equilíbrio construído pelo líder desde as conversações que redundaram em sua saída da cadeia. Ao mesmo tempo em que conquistava o apoio dos brancos – viscerais inimigos, que o viam como um terrorista – ele foi aplacando os mais radicais dos seus correligionários e comandando a transição democrática na África do Sul.
O clímax do livro é a Copa do Mundo de rugby, disputada no país em 1995. Esporte predominantemente branco, foi compreendido pelo líder de seu poder potencial no processo de unificação do país. Utilizado de forma política, foi o meio que permitiu a aceitação de Mandela e dos novos símbolos do país pelos brancos. Por outro lado, ao conquistar a torcida dos negros – que odiavam a equipe, por representar toda a dominação e os sofrimentos imfligidos a eles. E com direito a final feliz…
Com passagens emocionantes, é leitura obrigatória – até para se entender quem foi Nelson Mandela e o processo absolutamente bem sucedido de fim do apartheid. O curioso é que eu não sabia que havia se transformado em filme até ver matéria publicada ontem sobre o livro no Globoesporte.com – com o autor John Carlin. Eu peguei o livro para ler porque já estava há algum tempo dentro da listinha de prioridades.
Chega a parecer um romance se não fossem fatos reais. É uma aula de política, de solidariedade e de tolerância. Tornei-me fá do ex-presidente sul-africano, um verdadeiro estadista.
Reproduzo abaixo a matéria com o autor, coincidentemente publicada anteontem no Globoesporte.com.
“Arte usa proeza de Mandela com o esporte para falar da África do Sul

Há 15 anos, líder usou seleção de rúgbi para unir a população. John Carlin, autor do livro que originou filme ‘Invictus’, fala das mudanças no país

Alexandre Alliatti – Porto Alegre

Imagine passar 27 anos preso. Pense como seria viver tanto tempo arquitetando sua vida pós-libertação. Calcule o peso de ganhar a liberdade e, quase na sequência, ter o poder de se vingar de seus inimigos. E agora tente entender um homem que, em vez disso, resolveu se unir a eles. Se a África do Sul vai sediar uma Copa do Mundo a partir do próximo 11 de junho, é porque existiu Nelson Mandela, um líder visionário a ponto de evitar que seu país mergulhasse no caos – e que usou o esporte para radicalizar (para o bem) as relações entre fatias tão heterogêneas de uma mesma nação.

Parece ter sido calculada a época de realização da primeira Copa do Mundo de futebol no continente africano. Em 2010, completam-se 20 anos da liberdade finalmente concedida a Mandela. E 15 anos de uma competição que mudou os rumos do país. Em 1995, já com o maior líder nacional como presidente, a África do Sul foi sede do Mundial de rúgbi. Mandela, ao pensar na disputa, teve um estalo: o esporte, então reservado quase que exclusivamente aos brancos, poderia servir como alavanca para um processo de união em um país que ainda sofria com a segregação.

O Springboks, nome dado à seleção nacional de rúgbi, era idolatrado pelos brancos (os chamados afrikaners) em 1995. E detestado pelos negros. Afinal, ali estava um dos símbolos do apartheid, o regime que separou a população sul-africana de acordo com o critério mais inacreditável: a cor da pele. Mandela, ciente da atenção que o mundo daria à Copa do Mundo de rúgbi, resolveu convencer a população negra, quase toda encantada com ele, a apoiar a seleção. Soou estranho. Era o líder supremo do país pedindo a ajuda dos negros a um símbolo do racismo. Mas Mandela sempre pensou adiante: ele sabia que conquistar o inimigo renderia frutos muito mais maduros do que enfrentá-los. E teve sucesso na empreitada.

A história vivida por Mandela, o povo sul-africano e o Springboks parece conto de fadas. E é real. No ano em que o planeta olha com mais atenção para o país, o mundo da arte se encarrega de relatar os episódios de 1995. Uma grande referência é o livro “Conquistando o Inimigo”, do jornalista inglês John Carlin, que morou seis anos no país, justamente no período do fim do apartheid. É a obra que inspirou Clint Eastwood a dirigir e produzir o filme “Invictus”, com Morgan Freeman no papel de Nelson Mandela e Matt Damon como François Pienaar, o capitão do Springboks.

O livro, como costuma acontecer em adaptações, é superior ao filme. É mais completo. John Carlin, profundo conhecedor do país, mostra as nuances da África do Sul, as peculiaridades de um país que precisou se equilibrar em uma corda bamba para evitar a guerra civil e que teve a sorte de contar com um líder como Mandela, o homem certo na hora certa.

Abaixo, você lê entrevista concedida por John Carlin, por e-mail, ao GLOBOESPORTE.COM. Ele fala sobre as diferenças que separam a África do Sul do Mundial de rúgbi, 15 anos atrás, para o país da Copa do Mundo de futebol, daqui a quatro meses. E também deixa suas lembranças de um país que marcou a vida do jornalista – do mesmo jeito que marcará a lembrança de tantas outras pessoas, mesmo que de longe, a partir de junho.

GLOBOESPORTE.COM: Passaram-se 15 anos desde a ideia de Mandela de usar a Copa do Mundo de rúgbi para tentar reduzir a segregação e a discriminação na África do Sul. E faz 20 anos que ele deixou a prisão. Mudar uma sociedade, claro, nunca é um processo rápido. Como você vê o país na atualidade? Está menos racista?
JOHN CARLIN: O racismo, na verdade, não é a questão agora. Não se você fala das pessoas comuns, cuja maioria trata aos outros com cordialidade e respeito, independentemente de sua raça. A África do Sul tem perdido muito de sua épica e terrível singularidade. Tem os mesmos problemas que muitos outros países. Se não fosse pela Copa do Mundo, a África do Sul não estaria sendo falada no noticiário internacional agora. É uma democracia sólida, com liberdade de expressão e Estado de direito: uma democracia muito mais sólida e respeitável do que, digamos, a Rússia, que mudou ao mesmo tempo. Os maiores problemas agora são a violência, a corrupção e a pobreza.

A África do Sul agora vai sediar a Copa do Mundo de futebol. O que aconteceu com o rúgbi pode ser repetido, e até melhorado, com o futebol no país?
JC: Não. O desafio na África do Sul em 1995 era político; agora, é econômico. A África do Sul vai usar a Copa do Mundo do mesmo jeito que o Brasil, com alegria, divertimento e esperança de benefícios econômicos.

Há um orgulho nacional com o futebol do mesmo jeito que ocorre com o time de rúgbi? Os afrikaners gostam do futebol tanto quanto a população negra?
JC: Orgulho, sim, mas amenizado pelo fato de que o time não é bom. E os afrikaners não tendem a gostar de futebol, não.

Você pensa que Mandela pode ser usado como motivação para o time e para o povo sul-africanos, como aconteceu em 1995?
JC: Um pouco. Mas ele está muito velho para ter um papel ativo.

Seu livro mostra um líder com carisma e estratégia. Quando você pensa em Nelson Mandela, que imagem você faz? Como você define este homem?
JC: Ele é um homem de enorme integridade, respeitador, cortês, espontâneo, calmo, charmoso, com vasta autoconfiança. E um democrata, que trata um garçom do mesmo jeito que faz com a rainha da Inglaterra.

Sabe se ele leu o livro?
JC: Não leu. Está muito velho. Não consegue se concentrar por muito tempo.

O que você achou do filme “Invictus”?
JC: Eu gostei. Agarrou-me do início ao fim – quatro vezes. Eu penso que o filme capta bem o espírito de Mandela e daqueles tempos na África do Sul, e o faz de uma maneira para entreter uma audiência global. Há muito mais política no livro; o filme focou mais na dimensão social do fato.

Que memórias pessoais você tem da África do Sul? Em seu livro, você parece adorar o país.
JC: Eu conheci as melhores pessoas do mundo lá, e também as piores. Há mais pessoas que eu admiro lá do que eu qualquer outro lugar do mundo.”