Hoje a nossa coluna “Samba de Terça” será um pouquinho diferente. Iremos falar de um samba que fez um enorme sucesso em seu tempo, atualíssimo nos dias de hoje; e que nos permite uma reflexão sobre os rumos dos desfiles das escolas de samba.

Um enredo profético, com um samba profético, que deu à simpática agremiação de Botafogo o seu melhor resultado no Grupo Especial. Ainda hoje lança luzes sobre o processo de profissionalização anômala pelo qual passam as escolas.

A escola possuía, nos Anos 80, tradição em enredos críticos e satíricos. E cometeu a ousadia de levar para a Marquês de Sapucaí um tema que era uma crítica ao próprio desfile, aos próprios dirigentes, à própria música: “E o samba sambou”.

Enredo de autoria dos carnavalescos Carlinhos de Andrade e Roberto Costa, propunha a crítica e o pensar aos segmentos que perfazem um desfile.

A letra do samba, de autoria de Helinho 107, Mais Velho, Nino e Chocolate, pode ser analisada estrofe a estrofe:

Vejam só !
O jeito que o samba ficou … E sambou
Nosso povão ficou fora da jogada
Nem lugar na arquibancada
Ele tem mais pra ficar

Preconizava a cada vez maior elitização do público do desfile e o alijamento do povo da passarela dos desfiles. Hoje, reclama-se da frieza do espetáculo, consequência direta do aumento do preço dos ingressos e da diretriz turística dada ao evento. A paixão do povo arrefeceu-se.

Na segunda estrofe, a crítica era à mercantilização dos desfiles:

Abram espaço nessa pista
E por favor não insistam
Em saber quem vem aí
O mestre-sala foi parar em outra escola
Carregado por cartolas
Do poder de quem dá mais
E o puxador vendeu seu passe novamente
Quem diria, minha gente
Vejam o que o dinheiro faz

Fazia referência à entrada do dinheiro em profusão nas escolas, processo iniciado cerca de quinze anos antes. Ainda hoje, as escolas de samba vivem um processo de profissionalização anômala.

Hoje, o modelo de patrocínio é inadequado, certos segmentos recebem pagamento pelos serviços, outros não; o modelo de gestão das escolas ainda pode ser considerado amador.

Com isso, o alegado “amor à escola” deixa de existir. Passa a ser amor à grana. A porta bandeira, o mestre sala, o puxador, pasam a escolher a escola não pela sua formação, mas sim pela que paga mais.

É fantástico
Virou Hollywood isso aqui
Luzes, câmeras e som
Mil artistas na Sapucaí

Relata a grande entrada de profissionais de teatro e dança na festa do carnaval. Também ironiza a transformação em show-business da festa.

Mas o show tem que continuar
E muita gente ainda pode faturar
“Rambo-sitores”, mente artificial
Hoje o samba é dirigido com sabor comercial
Carnavalescos e destaques vaidosos
Dirigentes poderosos criam tanta confusão
E o samba vai perdendo a tradição

Aqui temos contornos de profecias. A letra fala das “firmas” de samba enredo, que pontificariam na segunda metade da década de noventa. Outrossim, relata a comercialização dos desfiles, já citada anteriormente neste texto.

Pode-se inferir, adicionalmente, referências à gerência do carnaval por parte da Liesa. Esta faz questão de manter o carioca, que em última análise sustenta com sua paixão as escolas, longe da festa, o mais longe possível.

Volta e meia, destarte, temos confusões envolvendo resultados de carnavais e disputas por verbas de patrocínio. Quem não se lembra da recente confusão entre Vila Isabel e a Viradouro envolvendo a Petrobras ?

Para 2010, mesmo, a recente história do enredo de Brasília, onde a Beija Flor “atropelou” as demais postulantes, é um excelente exemplo deste tipo de confusão.

Que saudade
Da Praça Onze e dos grandes carnavais
Antigo reduto de bambas,
Onde todos curtiam o verdadeiro samba

O refrão final do samba expressa o sentimento dos sambistas, querendo de volta aquilo que lhes foi tomado.

É evidente que o desfile das grandes escolas de samba jamais voltará ao que era nos anos sessenta e setenta. Entretanto, parece claro para aqueles que realmente gostam da festa que se faz necessária a reinserção do local, apaixonado pela festa e que vive as escolas o ano inteiro, não em duas fugazes noites.

Outro ponto é a abertura da imensa “caixa preta” que se tornou a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), bem como as próprias escolas. Questões como a dinâmica do julgamento, os contratos da folia e as prestações de contas podem e devem ser aperfeiçoados. Se possível, com a divulgação pública dos números e dos critérios.

Voltando ao desfile da São Clemente, a escola foi a segunda escola a desfilar na segunda feira de carnaval, 26 de fevereiro de 1990. Mesmo penalizada nos quesitos comissão de frente e mestre sala e porta bandeira, a escola ainda conquistaria o sexto lugar entre dezesseis escolas, sendo a sua melhor classificação na história dos desfiles.

Tenho uma boa lembrança deste desfile, até porque foi a primeira vez em que vi ao vivo o desfile das escolas de samba.

Aliás, este resultado é prova de como os tempos mudaram: um desfile crítico destes, nos dias de hoje, dificilmente obteria uma boa classificação…

Você pode ver abaixo um vídeo com um trecho do desfile.

Semana que vem, teremos dois sambas, homenagem a um dos maiores e mais lendários dirigentes do mundo do samba: Natal da Portela.