O vídeo com os comentários de Rafael Rafic e Pedro Migão está abaixo:

Quem lê a Justificando desde 2015 sabe que quase todo ano digo que um quesito “deu a louca”, quando as notas não refletem o senso comum dos foliões ou quando os critérios de julgamento acabam sendo esquecidos. Esse ano  creio que, por um raro “alinhamento de constelações”, este quesito foi Samba-Enredo, em que muitos sambas elogiados no pré-carnaval perderam décimos enquanto outros criticados pouco perderam. Os 3 sambas mais aclamados da safra no pré-carnaval deixaram décimo enquanto um samba que “flopou” na avenida foi um dos dois únicos a salvar o 30 no quesito.

Módulo 1

Julgador: Clayton Fabio Oliveira

  • Imperatriz – 10
  • Mangueira – 9.9 (letra 4.9)
  • Salgueiro – 10
  • São Clemente – 9.7 (letra 4.9 e melodia 4.8)
  • Viradouro – 10
  • Beija-Flor -10
  • Tuiuti – 10
  • Portela -10
  • Mocidade – 9.9 (melodia 4.9)
  • U. da Tijuca – 9.7 (letra 4.9 e melodia 4.8)
  • Grande Rio – 9.9 (melodia 4.9)
  • Vila Isabel – 10

Mais um ano se passa e mais um ano que me pergunto o que falar e como falar sobre este julgador? Há tempos esta coluna diverge bastante não só das notas atribuídas como das justificativas, não raro bastante incoerentes com o que se ouviu na avenida. Depois de um 2020 menos pior nesse ponto, este julgador voltou a apresentar um caderno totalmente incoerente.

Para começar, vejam as 7 escolas que receberam notas 10 dele. Agora, vejam as meras 5 que não receberam. Pois é, dentre essas 5 estão 3 dos sambas mais bem comentados deste pré-carnaval: Grande Rio, U. da Tijuca e Mocidade. Não obstante, para este julgador o samba da Tijuca é o pior de todos do Especial ao lado da São Clemente: um desastre de 9.7.

Não bastassem esses enormes problemas de dosimetria, novamente algumas justificativas deste julgador ficam entre o prejudicial à festa e o inaceitável. Separei as três mais polêmicas, justamente a dos 3 sambas citados acima.

Mocidade: “O tom baixo para a pronúncia das palavras nos três primeiros versos da primeira estrofe fica evidente no retorno do segundo refrão quando o canto é ‘coberto’ pelo arranjo tornando difícil a compreensão da letra.”. 

É corrente notar, especialmente entre os próprios compositores com apoio de muitos integrantes da “bolha”, que há uma certa ditadura dos tons altos na composição dos sambas enredos. Justificativas como essa, que estão longe de serem isoladas (Ilha e Tijuca 2015, Vila 2017 e outras abaixo nesta coluna), apenas engessam ainda mais os compositores e dão argumento para os diretores de carnaval para subirem tom em várias passagens do samba, o que acaba tirando beleza melódica de muitas composições.

Além disso, olhem novamente a lista de escolas que receberam 10 deste julgador. É sério que por causa desse problema ínfimo ele colocou o samba da Mocidade abaixo desses todos?

Grande Rio: “A partir do vigésimo nono verso a linha melódica da estrofe é muito semelhante à melodia do refrão final e não deixa claro a passagem entre as partes.”.

É lógico. O enredo todo da Grande Rio é baseado na circularidade de Exu, o fim que é recomeço. Essa parte final do samba exprime, propositadamente, esse conceito de forma singular. É um raro exemplo de melodia que exprime tão bem a ideia do enredo. Pior, isso está explicado detalhadamente na (longuíssima) defesa do samba-enredo. Aliás, creio que essa semelhança de melodia foi atenuada pelas alterações feitas pela escola após a escolha do samba.

Volto a mesmo provocação: olhem a lista de notas 10 deste julgador e compare esta lista com a qualidade do samba da Grande Rio.

U. da Tijuca: “A melodia dos quatro primeiros versos soa dissonante” (-0,1) “O Primeiro refrão, duplo, termina com a frase ‘pois o bem maior, vai reexistir’ em uma melodia descendente e sem rima que quebra abruptamente a passagem para a segunda estrofe” (-0,2).

Aqui é importante ressaltar que ele não foi o único a retirar décimo e escrever pesada justificativa contra o samba da Unidos da TIjuca, o que sinaliza que há algo técnico que não soou bem ao ouvido do júri do quesito como um todo. Já ouvi em “off” que a “ousadia” da  Unidos da Tijuca foi exagerada na falta de síncope no tempo fraco da melodia, o que acaba até descaracterizando a música como samba.

O resultado é que esse desrespeito a uma “pedra fundamental” do conceito de samba aliado ao linguajar mais “infantil” que o próprio enredo da escola pedia aproximou além da conta a melodia de uma cantiga folclórica infantil. 

Apesar disso, nenhum dos outros julgadores teve a insanidade de dar 9.7, a nota mais baixa concedida por este julgador.

Fechando este caderno, não é a primeira, nem a segunda nem a terceira vez que escrevo nesta coluna que este julgador fez um caderno de duvidoso para muito ruim. Em anos passados ele chegou a tirar ponto por “falta de empolgação no canto”, o que claramente não é critério de julgamento de samba-enredo, mas harmonia. Ele é um dos três únicos julgadores de todos os 45 que eu excluiria do júri imediatamente.

Módulo 2

Julgador: Felipe Trotta

  • Imperatriz – 9.8 (letra 4.8)
  • Mangueira – 10
  • Salgueiro – 9.9 (melodia 4.9)
  • São Clemente – 9.7 (melodia 4.7)
  • Viradouro – 10
  • Beija-Flor – 10
  • Tuiuti -10
  • Portela – 10
  • Mocidade – 9.9 (melodia 4.9)
  • U. da Tijuca – 9.9 (melodia 4.9)
  • Grande Rio – 9.8 (melodia 4.8)
  • Vila Isabel – 9.9 (letra 4.9)

Trotta sempre teve um perfil “ultra-academicista” despontuando algumas situações teóricas que deixam compositores irados, porém sua manutenção no juri é entendível sob a ótica da LIESA de ter um juri com pensamento diverso para fazer um mosaico plural.

A mais conhecida dessas polêmicas é o excesso de rimas de mesma terminação. Esse ano especificamente ele não despontuou ninguém por excesso de rimas ou rimas pobres. Ainda assim, penalizou algumas questões técnicas que criaram outras polêmicas, seja pela dosimetria das notas em comparação com a qualidade dos sambas, seja pelos motivos alegados para o desconto.

Destacarei alguns aqui.

Mocidade: “A melodia do samba está construída em cima de uma mesma sequência de três acordes… O resultado é que a música fica ‘plana’ durante o desfile sem contrastes no canto e repetitiva”

O que originou o “problema” que foi descontado é claro, o efeito que causou o desconto idem. Por mais que se discorde do julgador se realmente o efeito repetitivo ocorreu, isso faz parte do subjetivismo inerente ao julgamento. O difícil para nós meros foliões “leigos” é aceitar esse desconto quando comparado ao 10 dado para a Mangueira, único da escola no quesito aliás.

U. da Tijuca: “O início do samba tem uma célula melódica descendente que dificulta o canto. Apesar de reconhecer e valorizar a ousadia de construir uma melodia diferente dos clichês do samba-enredo, é importante observar que o samba deve favorecer o canto, o que não ocorreu.”. Aqui o julgador reconhece a singularidade de Medrado e Kleber, mas caneta do mesmo jeito porque teoricamente a estrutura não favoreceu o canto. 

Sou o primeiro a reconhecer que o quesito samba enredo é mais teórico que prático e que o fato da escola cantar forte um samba não o “salva” para o quesito samba-enredo. Mas sempre fica a polêmica: realmente essa estrutura diferente e a falta de síncope já mencionada acima, realmente dificulta o canto?

Vou aproveitar para lançar outra provocação para qual eu realmente não tenho uma resposta fechada: até que ponto os julgadores não estão confundindo canto com berro para duelar contra as potentes caixas de som da Sapucaí? Inclusive essa hipótese poderia responder também a implicância com os tons menores (são mais difíceis para “bater’ as caixas de som).

O décimo da Grande Rio foi por causa de uma frase melódica que aparece diversas vezes, produzindo a sensação que a “melodia não evolui”. Mas não evolui mesmo? Aliás, a melodia tem que evoluir? A função principal de um samba não seria sustentar um desfile ao invés de “evoluir” como melodia? Seria apenas o lado academicista do julgador aflorando?

Mais uma vez, não há uma resposta fechada aqui. É direito do julgador realmente ter essa opinião e tirar décimo do samba. Porém, admito que me incomoda ver um samba com a qualidade deste da Grande Rio ser julgado de forma inferior a um samba da Mangueira, que em minha opinião, “evoluiu” bem menos ou o samba-carta da Viradouro que, apesar da inovação, tem uma letra desconjuntada, especialmente nas pausas dos de alguns versos.

O julgador também disse que o trecho que teria a função de contraste, “sou capa preta…alafiá” tem “uma modulação mal resolvida, o que resultaria em afinação imprecisa”. Aqui a situação fica na beira da subjetividade com a falta de explicação. Que modulação mal resolvida seria essa, não foi explicada.

Por derradeiro, Vila Isabel. É um pouco longa, mas merece transcrição completa: “O samba apresenta uma métrica em versos curtos tipo ‘pergunta e resposta’ que o torna pouco variado. Essa estrutura aparece no início (‘Ferreira- chega aí’, ‘os sonhos de iaiá’) mas se acentua a partir do verso “raízes da roça”. Neste ponto, inicia-se um modelo “verso pergunta – verso resposta” que se estende até o final do primeiro refrão. A partir da modulação para o modo menor (‘profeta, poeta,…’) e, especialmente após o retorno ao tom principal (‘tão bom’), esse esquema é abandonado e o samba melhora consideravelmente até chegar no bom refrão final”.

Se vocês prestarem atenção, verão que toda justificação de pergunta-resposta etc. nada mais é do que a passagem para o samba-enredo do estilo musical de samba justamente do homenageado, Martinho da Vila. Isso tudo está perfeitamente explicado no Livro Abre-alas com um texto da lavra de ninguém menos que o próprio Martinho.

Será mesmo que uma para fazer uma homenagem ao maior compositor vivo de samba-enredo, não se pode usar seus traços característicos porque “seria pouco variado”? Talvez seja. Porque Martinho realmente usava essa estrutura de letra, mas usava modulações na melodia para variar o samba, o que não teria ocorrido neste samba da Vila Isabel.

Inclusive, ele não será o único a justificar a mesma coisa para perda de décimo desse samba, como se verá abaixo.

Por mais que eu sempre defenda um júri mais técnico, depois de ler este caderno é difícil não lembrar do jornalista Leonardo Bruno quando ele argumenta que o excesso de academicismo pode estar matando o julgamento. Resultado: enquanto a Mangueira obteve um inexplicável 10, ótimos sambas como Grande Rio, Vila e Mocidade perderam ponto.

Módulo 3

Julgador: Alessandro Ventura

  • Imperatriz – 9,9 (letra 4.9)
  • Mangueira – 9.8 (letra 4.9 e melodia 4.9)
  • Salgueiro – 9.9 (letra 4.9)
  • São Clemente – 9.7 (letra 4,8 e melodia 4.9) 
  • Viradouro – 10
  • Beija-Flor – 10
  • Tuiuti – 9,9 (melodia 4,9)
  • Portela – 9.9 (letra 4.9)
  • Mocidade -10
  • U. da Tijuca – 9.9 (letra 4.9)
  • Grande Rio -10
  • Vila Isabel – 10

Apesar de ser seu primeiro ano julgando, Ventura fez um julgamento de bom para ótimo e não caiu na armadilha comum aos novatos de despontuar pouco, dando apenas cinco notas 10. Por coincidência, suas notas também foram as que mais próximo chegaram das opiniões majoritárias da crítica no pré-carnaval, tendo inclusive despontuado o samba da Portela pelo tão falado “azul e banto”.

Suas justificativas foram bem escritas e a dosimetria do julgador também é bastante nítida. Porém, dentro desse bom trabalho, duas justificativas dele, mesmo chegando a notas que podemos considerar justas, incomodaram-me porque mais uma vez passam a imagem de punição ao compositor que ousa.

A começar pela Imperatriz, cujo décimo descontado foi justificado porque os versos “canta Salgueiro ó, salve a Mocidade” possuem melodia e poéticas mais intensas que o resto do samba, “apagando” a parte que o vincula a escola principal, provocando “conflito de titularidade da agremiação a qual pertence o samba”.

Inicialmente, ressalte-se que o Manual do Julgador em momento algum obriga que a letra do samba enredo identifique a escola a qual pertence o samba. Além disso, a parte final do “Eterna seja, amada Imperatriz!”, com um tom lá nos píncaros, especialmente nos “paradões” durante o desfile, não resolve este problema? Por isso, tenho a opinião que esta justificativa ficou um tanto forçada.

Também nem quero pensar em como esse julgador julgaria o samba do Salgueiro em 1972 (o famoso “Tengo-tengo, Santo Antônio, Chalé” em homenagem a Mangueira).

A outra foi na Mangueira, samba no qual um dos décimos foi embora porque “o extrato que se origina em ‘é verde e rosa’ até o fim da estrofe ‘tem aos seus pés’ discorre sobre a escola titular da obra sem que se faça menção ao eixo temático central da composição, que é a homenagem aos baluartes da escola: Cartola, Jamelão e Delegado.”.

Ao falar da escola também não se acaba dizendo que falar dos 3 automaticamente é falar em Mangueira? Por isso, acho que talvez tenha faltado um pouco de compreensão do julgador da parte do Manual que diz que a letra do samba enredo pode ser interpretativa e não precisa ser descritiva, Além disso, esse samba tem outros problemas que poderiam ser apontados no lugar deste.

É verdade também que neste ponto acabou aflorando o problema que o Leandro Vieira teve em desenvolver o enredo da Mangueira. Ele não conseguiu traduzir na avenida a ideia inicial de mostrar que os 3 homenageados eram pessoas comuns de Mangueira, como podem ser qualquer morador de Mangueira hoje (essa ideia foi explicada inclusive em lives para este Ouro de Tolo tanto pelo próprio carnavalesco como pelo compositor Luiz Carlos Máximo). Porém, mesmo que a nota final faça sentido na dosimetria do julgador e considerando a qualidade dos sambas, temo que a justificativa tenha como resultado para o futuro um desincentivo a ousadia e a criatividade dos compositores.

Interessante observar que se o Felipe Trotta esse ano não despontou ninguém por excesso de rimas iguais, Ventura já justificou a perda de pontos de São Clemente e U. da Tijuca por tal motivo.

Em suas observações finais, o julgador elogiou os usos e leituras das temáticas afro, mas alertou quanto ao que ele acredita ser um excesso de uso de elementos afros na letra da obra. Segue ele: “O afã de gerar empatia auditiva redunda no uso de citações em cascata desprovidas de contextualização de características reais ou putativas de tópicos da cultura afro… além de esteticamente onerosa, essa preferência tem atenuado a força comunicativa dos sambas… neste domínio, esforços ainda mais genuínos dos que já estão sendo realizados para dar um acabamento mais resolvido aos versos dos sambas serão muito bem vindos”.

Importante ressaltar que ele não despontou nenhuma escola por esse motivo, que é assunto polêmico há tempos e que já fora abordado de forma longa pela julgadora Alice Serrano em 2017.

Apesar das digressões feitas acima, foi um ótimo trabalho do julgador que manteve a coerência em todo seu caderno e escreveu suas justificativas de forma muito clara. Mais um estreante que se destacou.

Módulo 4

Julgador: Alfredo Del-Penho

  • Imperatriz -10
  • Mangueira – 9.9 (melodia 4.9)
  • Salgueiro – 9.9 (melodia 4.9)
  • São Clemente – 9.8 (letra 4.9 e melodia 4.9)
  • Viradouro – 9.9 (melodia 4.9)
  • Beija-Flor -10
  • Tuiuti – 10
  • Portela – 10
  • Mocidade – 10
  • U. da Tijuca – 9.9 (melodia 4.9)
  • Grande Rio – 10
  • Vila Isabel – 9.9 (melodia 4.9)

Del Penho possivelmente é o melhor julgador de todos os quesitos desde sua estreia em 2016. Nesses seis anos de julgamento, sua maior qualidade é conseguir explicar de forma técnica os problemas e estranhamentos que nós, leigos amantes do samba-enredo, sentimos mas não conseguimos explicar.

Não obstante esse brilhante histórico, Del Penho esse ano foi injustamente criticado por algumas pessoas esse ano apenas porque sua opinião como julgador foi divergente do pensamento da maioria. Digo injustamente porque, mesmo tendo opinião pessoal diferente da do julgador, tanto de algumas justificativas como da dosimetria dele neste ano especificamente, é inegável que ele justificou de forma clara e técnica todos os décimos retirados e ele tem um argumento para defender todas as suas opiniões. Se nós podemos discordar dos argumentos, é justamente porque eles foram expostos de maneira clara nas justificativas.

A arte de julgar é difícil e mesmo os grandes julgadores, de vez em quando, terão opiniões divergentes da maioria e por isso  terão seus julgamentos contestados. Isso já aconteceu inclusive com monstros sagrados como Pérsio Brasil e Tito Canha. Agora, isso não dá direito a ninguém chamar o julgador de “vendido”, como eu já ouvi neste ano.

Voltando ao tema das boas justificativas elucidativas do Del Penho, esse ano destaco a da Mangueira: “O samba não gera maiores contrastes entre as partes, o que faz com que a chegada nos refrães não tenha o efeito crescente. Além disso há trechos com clichês melódicos como ‘Só sei que Mangueira’… ‘valei-me’ e trechos menos inspirados como ‘lustrando sapato, vendendo jornal’”.

Também faço questão de destacar que ele foi o único julgador que teve a coragem de despontuar o samba-carta da Viradouro por um defeito que eu também sempre senti mas não conseguia explicar: “Em alguns trechos o samba não tem o fraseado da melodia conectado ao da poesia…”.

Para mim, isso fica muito nítido especialmente na quebra do “nome” do ano no refrão “cinco de março de mil… novecentos e dezenove”.

Porém, como já afirmado acima, a arte de julgar escola de samba é sempre desafiadora e é natural que em algum momento o julgador acabe entrando em alguma polêmica. Del Penho até conseguiu o raro feito de escapar dela por cinco anos consecutivos, mas finalmente ela chegou esse ano com o desconto ao samba da Vila Isabel.

Se o próprio desconto já me causou alguma surpresa no dia da apuração, considerando o histórico do próprio julgador, o motivo justificado me causou ainda mais espanto: “O samba é construído boa parte a partir da repetição de padrões rítmico melódicos nos trechos: ‘Ferreira, chega aí’ até ‘nem o meu laia-raiá’, ‘raízes da roça’ até ‘filho de Teresa encara sem medo’ e ‘Seguiu escola’ até ‘só você pra fazer sem rima’. Na estrofe seguinte ao desenvolver o discurso melódico o samba tem trechos menos inspirados como em ‘tão bom cantarolar’ até ‘do Pinduca a alegria’. Despontuo por falta de criatividade no desenvolvimento da melodia.”.

Olha aí a nossa velha conhecida polêmica eterna da “Falta de Criatividade”. É complicado discutir algo tão subjetivo quanto a falta de criatividade, ainda argumentar uma falta de criatividade em quebrar a cabeça para fazer um samba que exprima as características musicais do homenageado, com assinatura tão própria quanto Martinho. Mas aqui voltamos ao ponto de discussão já abordado no módulo 2, o cerne da discussão é exatamente o mesmo e já foi explorada em matérias feitas tanto junto ao compositor André Diniz, e o próprio Del Penho.

Porém minha dificuldade de compreender essa “falta de criatividade” contra a Vila Isabel ainda é mais ressaltada ao se comparar com a nota 10 dada a Portela, um samba que fora considerado menos “criativo”. O próprio 10 da Imperatriz acaba sendo um pouco estranho para mim em comparação com a nota e a justificativa da Vila Isabel.

Porém, com o que conheço do julgador, posso até imaginar o pensamento dele para essas duas notas 10: “Teoricamente nenhum dos sambas tem problemas, passaram bem na avenida e comparativamente não ficavam atrás de outros, logo não tive como despontuar”. Enquanto isso, ele considera que o samba da Vila tem um problema inescapável.

Ainda sim, considerando o trabalho geral em relação às doze escolas, temos o sexto bom caderno consecutivo de Alfredo Del Penho e, repito, só é possível discurtir saudavelmente suas notas justamente pela clareza e o didatismo de sempre de suas justificativas.

Módulo 5

Julgadora: Alice Serrano

  • Imperatriz – 9.8 (letra 4.9 e melodia 4.9)
  • Mangueira – 9.9 (letra 4.9)
  • Salgueiro – 9.8 (letra 4.9 e melodia 4.9)
  • São Clemente – 9.8 (letra 4.9 e melodia 4.9)
  • Viradouro – 10
  • Beija-Flor – 10
  • Tuiuti – 9.9 (melodia 4.9)
  • Portela – 9.8 (letra 4.9 e melodia 4.9)
  • Mocidade – 10
  • U. da Tijuca – 9.9 (melodia 4.9)
  • Grande Rio – 10
  • Vila Isabel – 10

Alice é outra julgadora de bom destaque longínquo nesta coluna (aliás é uma julgadora que tenho muita vontade de conhecer um dia e conversar sobre seus julgamentos). Ela tem uma característica de ser muito criteriosa no julgamento de letras, a melhor neste sentido. Não foi diferente esse ano, com mais um ótimo caderno e justificativas muito bem elaboradas.

Porém, apesar do seu destaque na análise das letras, este ano quero destacar uma justificativa de melodia, a da Portela: “O caminho melódico fragmentado e alguns momentos, para acréscimo de outros trechos estranhos ao desenvolvimento como em ‘do mesmo preceito e saber’ ou na mudança forçada de tonalidade na entrada da 2ª estrofe ou na passagem de ‘coragem no medo’ para o verso seguinte ‘meu povo é resistência’ que parece colado na anterior, faltando uma espinha dorsal que dê unidade a proposta melódica.”.

Aqui ela teve um momento “Del Penho” e conseguiu explicar em palavras tudo o que a crítica carnavalesca sentia sobre essa melodia durante todo pré-carnaval. O que realmente me impressiona é que ela foi a única julgadora a despontuar a Portela em melodia. Inclusive, antes da apuração, eu jurava que quem faria essa justificativa seria o próprio Del Penho, não a Alice.

Já que estamos na Portela, a perda de ponto da escola em letra era a maior pedra cantada deste carnaval para quem estuda os trabalhos passados dos julgadores. Serrano já havia deixado clara sua posição sobre a colocação de palavras estrangeiras em uma longuíssima observação escrita no caderno de 2017 e que mereceu destaque especial desta coluna à época porque ser uma posição bem equilibrada. Não precisava ser um Nostradamus para, ao final desta leitura, saber que ela despontuaria a Portela por excesso de termos de etnias africanas que prejudicou a compreensão da letra. Dito e feito, lá se foi o décimo exatamente com esta justificativa.

Além disso, ela ainda reclamou do excesso de rimas em “a/á/ar” e, comparando a justificativa da Portela com outras, tinha espaço até para um décimo extra de despontuação.

Do mesmo jeito, o décimo do Salgueiro de letra também foi embora pela falta de contextualização do enredo no refrão principal.

Para não dizer que apenas elogiei a julgadora, também fiquei ressabiado em relação à justificativa da U. da Tijuca que foi despontuado por possuir melodia descendente “não estimulando o canto” pela mesma situação do estímulo à “ditadura dos tons altos” que já discutimos em outro módulo acima. Porém, esse não foi o único motivo citado.

Também foi observado um problema de prosódia no verso “de pele vermelha, os frutos de uma nação”. Problemas de prosódia abrem todo um outro leque de polêmicas no quesito desde o “minhá Tijuca” em 2006, já que a prosódia é parte da gramática que cuida da emissão dos sons das palavras (inclusive o deslocamento de sílaba tônica). Entretanto quanto a este ponto, inevitavelmente entramos em uma questão subjetiva e não se pode dizer que seja um erro a despontuação por prosódia, mas apenas a legítima opinião da julgadora que não afronta o Manual do Julgador da forma como está escrito hoje.

Recomendações para LIESA em Samba-Enredo:

  • Discutir com todos os interessados (julgadores, compositores e responsável pela direção musical das escolas) a situação do julgamento de melodias com tons mais baixos.
  • Tentar achar uma solução institucional para que os próprios compositores sejam chamados a discutir o julgamento do quesito com os julgadores, da mesma forma que os outros responsáveis pelos quesitos o fizeram neste ano.