Peço licença para antecipar em alguns dias uma coluna que queria muito escrever. Afinal, na próxima segunda-feira os desfiles das escolas de samba estarão em ebulição e, claro, você vai acompanhar tudo aqui no Ouro de Tolo. Pois bem, o texto de hoje relembra a trajetória de Martinho José Ferreira, o nosso Martinho da Vila, que completa 80 anos no próximo dia 12, segunda de Carnaval.

Poucos nomes contribuíram tanto para o samba brasileiro como Martinho. Se ficarmos no Carnaval então, o valor dele é imensurável. Ele começou sua trajetória na Aprendizes da Boca do Mato, agremiação da Zona Norte que enrolou a bandeira em 1968. O primeiro samba que serviu a uma agremiação num desfile foi em 1957, uma homenagem a Carlos Gomes.

Ele ganhou o concurso de samba-enredo da Aprendizes por sete vezes consecutivas. Muitos anos depois, a obra de 1959, sobre Machado de Assis, ganhou linda gravação feita por Martinho em um de seus discos.

Mas a consagração veio mesmo na Unidos de Vila Isabel. De 1967 a 1970, Martinho emplacou quatro sambas consecutivos, com destaque para o antológico Yayá do Cais Dourado (1969), no qual o artista já deixava claro seu estilo: versos mais curtos e melodias mais dinâmicas.

Nos anos 1970, Martinho adotou uma linha extremamente crítica, como fica evidente no primoroso samba para o enredo “Onde o Brasil aprendeu a liberdade”. Vale lembrar que o Brasil atravessava um de seus períodos mais sangrentos durante a ditadura militar e os censores estavam babando…

Dois anos depois, Martinho teria uma grande decepção. A Vila levaria para a avenida o enredo “Aruanã-Açu”, sobre os índios do Xingu, e o compositor escreveu com todas as letras que os índios estavam “sumindo da face da terra” ante ao progresso imposto pelo homem branco.

É claro que a ditadura ficou incomodada e a obra de Martinho caiu para um samba muito inferior. A Vila então desenvolveu seu desfile baseada na integração entre índios e brancos pela famigerada rodovia Transamazônica, uma das meninas dos olhos do regime. Mas o samba de Martinho ficou para a eternidade com o nome “Tribo dos Carajás”.

Em 1978, outro lindo samba de Martinho caiu “inexplicavelmente” nas eliminatórias da Vila. De novo a ditadura meteu o bedelho, já que havia o termo “povo sofredor” na letra… Numa homenagem a Iemanjá, a Azul e Branco optou por um fraquíssimo samba que empurrou a escola ladeira abaixo rumo a um inédito rebaixamento. Mais uma vez Martinho gravou um samba derrotado para um de seus discos, dando à faixa o nome de “Iemanjá desperta”.

Nos anos 1980, Martinho continuaria emplacando sambas extraordinários, um deles o poético e ao mesmo tempo valente “Sonho de um sonho”, enredo baseado num poema de Carlos Drummond de Andrade. Na abertura do sambódromo, em 1984, “Pra tudo se acabar na quarta-feira” homenageou todos os que fazem parte das escolas.

Só que três anos depois ele se superou. Escreveu um samba sem rimas para o sensacional enredo “Raízes”. A Vila ganhou o Estandarte de Ouro de “O Globo” nas categorias Escola e Samba-Enredo e estava cotada para o título, mas terminou num inexplicável quinto lugar na apuração.

Para 1988, Martinho da Vila não compôs o samba, mas idealizou o enredo “Kizomba, a Festa da Raça”. Enredo que seria transformado num dos maiores – senão o maior – desfile de escola de samba de todos os tempos.

Depois de escrever e puxar na avenida com Gera o inesquecível “Gbala” em 1993, Martinho ficou um tempo sem compor sambas-enredo. Em 2010 emplacou samba em homenagem a Noel Rosa, e em 2013 foi um dos autores da linda obra que conduziu a Vila ao campeonato ao falar sobre a vida no campo.

Inicialmente não queria participar da superparceria com André Diniz, Arlindo Cruz, Leonel e seu filho Tonico, mas acabou convencido e fez uma intervenção importantíssima. Ele queria alguma citação à reforma agrária e dali saiu o singelo verso “Partilhar, proteger…”

Martinho ainda participou da composição do samba de 2016 em homenagem a Miguel Arraes, mas parece finalmente ter se retirado definitivamente das disputas. Afinal, são sambas ganhos nas últimas sete décadas (incluindo a atual). Nada menos do que 12 sambas da Vila são de autoria de Martinho, que só fica atrás de André Diniz (13) e Paulo Brasão (16) na história da agremiação.

Por tudo isso, só temos que enaltecer este mito chamado Martinho da Vila. Que Deus te dê muita saúde! Parabéns!

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3 Replies to “Viva Martinho!”

  1. Parabéns ao grande Martinho da Vila! Mestre do samba de todos os tipos, simplesmente um gênio! Fred, completando suas ótimas lembranças dos sambas compostos pelo mestre, acho que vale lembrar da linda composição para o Carnaval de 2006 da Vila Isabel, ano do “Soy Loco por ti América – A Vila canta a latinidade”, samba derrotado na final pelo apenas correto samba do grande compositor André Diniz. Felizmente para a Vila, a estranheza nessa escolha foi mascarada com o título…

    Aliás, a Vila está devendo um belo enredo sobre o mestre. Mas pelo menos a Peruche, em São Paulo, não vai deixar a data passar em branco.

    1. 1 – eu acho melhor o vencedor do André Diniz;
      2 – ele já foi convidado duas vezes para ser enredo e disse que não era a hora

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