Eu havia jurado a mim mesmo que não escreveria sobre disputas de samba este ano, porque ano passado o desgaste foi imenso após abordar duas vezes o tema. Minha pobre mãe, que não tem nada a ver com isso, foi bastante (por assim dizer) “homenageada” por leitores, puxa sacos de compositores e assemelhados.

Desculpe, Dona Wilma.

Entretanto, este ano a Série A, o grupo de acesso imediato ao Especial, está apresentando um fenômeno muito interessante. Ou melhor, dois.

Respectivamente, estes dois fenômenos são as encomendas se alastrando, por um lado; e por outro, compositores assinando praticamente em todas as agremiações deste grupo que estão fazendo concursos. Vamos por partes.

Das treze escolas que desfilam na sexta e no sábado de carnaval, nada menos que cinco estão utilizando o recurso da encomenda: Inocentes de Belford Roxo, Renascer, Sossego, Rocinha e Alegria. Está certo que neste último caso a encomenda foi involuntária, mas explico este caso mais abaixo.

Das outras oito, Unidos de Padre Miguel, Cubango e Santa Cruz (estas duas, únicas a não ter ainda os concorrentes divulgados quando este artigo estiver no ar) farão disputas mais curtas, com poucas eliminatórias; ou, no caso da Santa Cruz, com parte delas fechadas ao público.

Ou seja, mais da metade das agremiações deste grupo não fará uma disputa tradicional, como aquelas a que nos acostumamos há décadas.

A que se deve este fenômeno?

Conversando com dirigentes, compositores e intérpretes deste grupo, a principal motivação para este fenômeno é a questão do custo. Normalmente as disputas neste grupo são amplamente deficitárias, não apenas para os compositores concorrentes como às próprias escolas.

Para se abrir a quadra, paga-se pessoal, luz, água, muitas vezes segmentos que se apresentam. Em praticamente todas estas escolas, somente na finalíssima o lucro ao abrir a quadra compensa no balanço financeiro.

Em escolas onde as fontes de recursos já não cobrem o necessário ao desfile, e com uma subvenção ainda menor da Prefeitura para 2018, cada centavo economizado faz enorme diferença na preparação de seu desfile. Então, abrir a quadra para ter prejuízo acaba deslocando recursos escassos da preparação de alegorias e fantasias.

Pelo ângulo dos compositores, é uma disputa muito custosa para direitos autorais que variam entre 15 a 20 mil reais totais – dado me fornecido por compositor envolvido. A Unidos de Padre Miguel ainda dará 35 mil reais de prêmio ao vencedor, mas nas demais, até onde tenho conhecimento, são somente os direitos autorais.

Some-se a isso concursos com poucos concorrentes. Poucas escolas deste grupo, ultimamente, tem superado as 10 composições inscritas. Para fazer com quatro, cinco sambas, sinceramente penso ser melhor encomendar.

Somando-se à questão do custo, ao se encomendar uma composição, sem a pressão da disputa os compositores encarregados podem ousar um pouco mais e, ao mesmo tempo, trabalhar com mais cuidado nos sambas.

Sem dúvida alguma, a sequência de bons sambas trazidos pela Renascer de Jacarepaguá desde 2014, quando de sua primeira encomenda, encorajou outras escolas a adotarem o expediente – embora pouca gente se lembre que no mesmo 2014 a Rocinha também encomendou sua composição sobre a Barra da Tijuca e o resultado, veja bem…

Para 2018, inclusive, a Inocentes de Belford Roxo não somente adotou a referida estratégia pioneira na Renascer de Jacarepaguá como convidou o mesmo Cláudio Russo, um dos autores desta sequência, para assinar seu samba em parceria com outra fera, André Diniz.

O resultado foi aquele que, a meu juízo, é o melhor samba da história da escola, ainda que com um enredo a princípio árido – a cidade de Magé.

Russo, aliás, também assina a encomenda da Paraíso do Tuiuti, do Grupo Especial. Outro belo samba. Mas não somente em encomendas ele está disputando.

Então temos o segundo fenômeno destas disputas da Série A: compositores disputando em diversas escolas.

Na verdade, em minha avaliação o correto seria dizer que estes compositores estão assinando em mais de uma escola, não participando. Não é segredo de ninguém que havia os chamados “pombos”, composições com autores “ocultos” por estarem assinando em outras agremiações.

Isto já havia ocorrido de forma tímida para 2017, mas para 2018 temos casos como o do compositor Samir Trindade assinando no Império da Tijuca, na Unidos de Padre Miguel e na Unidos de Bangu, além da encomenda do Alegria. Felipe Filósofo (um dos autores do magistral samba da Viradouro para 2016), além de responsável pela encomenda da Sossego, também está na Unidos de Bangu e na Viradouro.

O próprio Cláudio Russo, além de assinar as encomendas da Inocentes e da Renascer, está disputando na Unidos de Padre Miguel e na Viradouro. Lembro aos leitores que o regulamento deste grupo – e nem do Especial – não proíbe que se assine em mais de uma agremiação. Normalmente é regra interna da própria escola – nem todas.

O colunista Aloísio Villar escreveu no último domingo que as encomendas iriam impedir o surgimento de novos compositores, mas penso um pouco diferente.

Primeiro porque estas estão elevando o nível das disputas nas escolas remanescentes, sendo isto deliberado ou não. Das escolas que divulgaram suas composições até o momento, somente Viradouro e Estácio não tem ao menos um grande concorrente – ainda assim, ambas tem opções que irão perder na comparação mas que não podem ser consideradas ruins.

A meu juízo, aliás, o grande samba do ano até agora está em uma das escolas que estão fazendo concurso, não nas encomendas. E com nenhum destes considerados “medalhões” assinando.

Penso que, se houver talento, obviamente um jovem compositor irá conseguir furar este bloqueio, nem que seja para compor ao lado de quem já está estabelecido. Ainda mais em disputas ou encomendas com menor duração, onde o poder financeiro não tem tanto peso – afinal de contas, com menos eliminatórias, o gasto necessário é menor.

Como disse acima, o caso da Alegria da Zona Sul foi um pouco diferente: a escola recebeu apenas um samba concorrente para sua disputa, e a diretoria da agremiação, em medida a meu ver acertada, optou por oficializar esta composição como a definitiva. Não foi exatamente uma encomenda, originalmente.

Finalizando, penso que estes dois fenômenos vieram para ficar: tanto o de escolas encomendando sambas na Série A como de compositores assinando em várias escolas neste grupo. O que não sabemos ainda é qual será o peso que as encomendas irão ter nos próximos anos neste grupo.

Penso que qualquer tentativa de sair do modelo de disputas longas e especialmente deficitárias deveria ser testado e tentado. Assim como precisa ser debatido e ressignificado o conceito de “Ala de Compositores”.

Mas este é tema para outro artigo.

Imagem: Ouro de Tolo

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13 Replies to “As Encomendas na Série A”

  1. Só uma pequena correção: Samir Trindade não está assinando na Viradouro, e Cláudio Russo está, por sinal na mesma parceria de Felipe Filósofo. Abçs

    1. Xará Pedro, realmente ele não assina, mas o próprio me mandou o link do samba via Whatsapp. Curioso rs

      De qualquer forma, farei a alteração.

  2. Preciso nem dizer que discordo de você né? Já que você mesmo disse que eu penso diferente.

    Primeiro que não adianta você usar como fonte “Dirigentes, compositores e cantores” porque esses fazem parte do sistema e evidente que vão usar inúmeras desculpas para não falarem o óbvio.

    Que as disputas para compositores são caras e deficitárias porque eles criaram o monstro. Compositores que inventaram usar mais de um cantor do especial no mesmo palco, videoclips, super produções em quadra e megas torcidas. Em 2001 eu ganhei samba nesse mesmo grupo pagando menos de 100 reais ao palco todo, hoje deveria equivaler a uns 500 reais e botando torcida só na reta final e me perdoem, o samba que vencemos não deve a nenhum dos atuais. Mas hoje seria impossível gastar tão pouco porque teria algum compositor maluco botando ônibus na estreia.

    Não passam dos dez sambas porque aqueles que tem mais dinheiro inflacionaram as disputas e os “compositores normais” precisam fazer coisas coo botar comida em casa e pagar contas, não tem como acompanhar esses gastos sem ferrar a família então tem que priorizar. Ninguém quer ser todos os anos o índio que o John Wayne mata para virar herói no filme.

    E dizer que a não renovação não afeta porque temos boas obras esse ano é enxugar gelo, é uma visão imediatista. Para esse ano está resolvido, talvez ano que vem também..E daqui a dez anos? Você citou compositores consagrados que estão em mais da metade das disputas que restaram e evidente são favoritos nessas, isso é cartel, você pode até falar que a não renovação não prejudica o samba, mas é nítido que não existe.

    Quanto a um garoto se sobressair e entrar numa parceria grande isso está virando utopia, se esses grandes compositores já escrevem porque vão precisar de um menino sem dinheiro que escreva? Vão entrar é novos caras com grana pra ajudar a bancar.

    Mas enfim..O carnaval sabe o que faz, talvez ontem quando vendeu a alma ao diabo esteja incluso a solução desses problemas.

    Abraços

    1. Villar, entendo tuas ponderações, mas o mote do artigo é justamente este: o custo excessivo das disputas – tanto para as escolas como para as parcerias – levando a tentativas de novos formatos. Entendo que ainda levará alguns anos até estas transformações se cristalizarem.

  3. Acho que as encomendas são apenas a consequência de um modelo de escolha dos sambas falido e viciado, com um alto custo e um critério de julgamento falho e erradamente padronizado. A meu ver, é esse modelo que vai impedindo o surgimento de novos compositores, afinal, não adianta não encomendar e limar todos os sambas que não sejam de compositores conhecidos e/ou com dinheiro. A encomenda pode dificultar, mas tem grandes chances de garantir um bom samba e, quem sabe, elevar o padrão das disputas para as escolas olharem além da nota 10 de um jurado que muitas vezes sequer sabe o que escreve.

    Só por curiosidade Pedro, qual é o samba concorrente citado por você no texto que te encantou a ponto de considerar o mais belo dos lançados até aqui? Quero ouvir!

    1. Luis, me parece claro que a “bolha” financeira das disputas está estourando, ao menos no Acesso. Mesmo no Especial, escolas como São Clemente e Grande Rio estão buscando formas de disputas mais curtas e menos custosas.

      Sobre o samba, é o da parceria de Diogo Nicolau na Unidos de Bangu.

      1. Finalmente consegui ouvir o samba Pedro, é muito bom mesmo. Também gostei do concorrente do Felipe Filósofo, apesar que, pelo burburinho que ouvi em torno deste, esperava um pouquinho mais. Os que mais me encantaram, por enquanto, são os sambas do Cláudio Russo na Unidos de Padre Miguel e o da Renascer de Jacarepaguá.

        1. Confesso que desta fase de encomendas da Renascer esse foi o que menos me chamou atenção – embora seja um bom samba

  4. Muito bom o debate entre o Pedro Migão e o Aloísio Villar, alto nível com excelentes argumentos pros dois lados. Mas eu tendo a ficar mais do lado do Aloísio nessa.

    Sim, a culpa é em parte dos compositores que começaram a inflacionar o mercado. Mas também é culpa das escolas que começaram a escolher os sambas com base em critérios como “mais torcida” ou “cantor de mais peso” e não pela qualidade musical dos sambas. Em última instância, é culpa também dos julgadores de samba-enredo, que nem de longe são tão exigentes quanto os julgadores de outros quesitos – no Grupo Especial o Alfredo Del-Penho é o único julgador decente, os outros nem devem saber o que fazem ali. Com qualquer samba levando 10 ou na pior hipótese, 9,8, com critérios muitas vezes nebulosos, pra que as escolas vão se esforçar em levar pra avenida a melhor composição, se uma razoável é o suficiente?

    Agora só fiquei com uma dúvida do que o Pedro falou: pq realizar uma eliminatória de sambas está tão caro? Uma eliminatória é nada mais que um ensaio que tem disputa de samba no meio. Se a disputa dá prejuízo, então os ensaios sem disputa de samba dão mais prejuízo ainda.

    A única conclusão a que esse raciocínio me leva então é que ensaio de escola de samba é um produto deficitário, e as escolas só sobrevivem por causa da subvenção da Prefeitura. Será? Pode ser talvez nas escolas da Intendente Magalhães, mas me recuso a acreditar que seja o caso das escolas dos grupos Especial e de Acesso.

    Se for isso mesmo, então penso parecido com o Luiz Simas, as escolas precisam começar a se reinventar, trazer de volta pra seus ensaios a comunidade que antes estava sempre presente, incentivar o talento de novos sambistas, inclusive novos compositores, de forma até mesmo a criar um público cativo. Caso contrário, as escolas de samba estarão trilhando um caminho meio que suicida.

    1. Leandro,

      Ensaio de escola de samba do Acesso, hoje, só não é deficitário a um mês, um mês e meio do carnaval. Lógico quer há exceções – a Unidos de Padre Miguel é uma delas -, mas o quadro é esse. E isso mostra um problema ainda maior, que é o distanciamento de muitas das escolas de suas “comunidades ampliadas.”

      Você tem total razão sobre o horroroso julgamento do quesito samba enredo – que piorou, aliás, depois que Beija Flor e Unidos da Tijuca levaram uns (merecidos) 9,5 em 2014.

  5. Excelente artigo, acredito que de fato faça sentido o argumento que a encomenda do samba seja uma saída economicamente melhor para as escolas, porém a preocupação que fica é o fim da ala dos compositores, mas cada agremiação deve analisar o que acredita ser mais viável, de fato, manter uma disputa para escolha de samba que traga prejuízo financeiro não vale a pena( melhor deixar esse tipo de tolice para o futebol já que muitos grandes clubes do Brasil estão acostumados a “pagar” para jogar), a única coisa que me incomoda é um compositor tentar emplacar sambas em muitas agremiações e muitas vezes do mesmo grupo, para mim deveria haver uma limitação. Abraço.

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