Eis, leitor, que temos de volta uma das colunas originais do Ouro de Tolo: a “Samba de Terça”. Trazendo o espírito original, a ideia é contar a história de sambas e de desfiles, preferencialmente não tão conhecidos ou badalados. Não prometo uma atualização semanal, mas na medida do possível.

Neste reinício, abordo dois sambas que tem a ver com o momento econômico atual do Brasil. Como escrevi em outra oportunidade a respeito da Europa, estamos em um “Círculo Vicioso do Monetarismo”, com contração econômica e políticas no sentido de concentrar renda, retirar dinheiro em circulação e impedir o Estado de investir. Assim a contração econômica aumenta e a crise se acentua.

Em momentos assim, quando há o aprofundamento da crise sempre há a tentação por parte dos governantes de apelar a saídas mirabolantes, de retorno rápido – normalmente até a próxima eleição – e resultados catastróficos a médio prazo.

E neste texto iremos abordar dois sambas e desfiles que abordam estas “saídas mirabolantes”, também conhecidas como “planos econômicos”: Unidos da Tijuca 1987 e Unidos de Vila Isabel 1995.

1986. O Brasil havia acabado de voltar a um governo civil – embora eleito indiretamente – e experimentava grave crise econômica, resultado de anos com compressão salarial, sem capacidade de investimento estatal e concentração de renda. Familiar, não?

Somando-se a isso, uma inflação anual de 235% em 1985. No mês de fevereiro, o presidente José Sarney anunciou o Plano Cruzado, baseado no congelamento de preços, salários e do câmbio e na troca do cruzeiro pelo cruzado como moeda – com corte de três zeros.

Houve um alívio momentâneo, mas começou a haver problemas de desabastecimento – causados especialmente pela utilização plena da capacidade instalada da economia sem poder se reequilibrar via preço com a demanda – e consequentemente pressões sobre os preços.

Logo após as eleições de 1986, onde o PMDB só não elegeu um único governador, veio o Cruzado 2. Rapidamente a inflação recruscedeu a patamares maiores ainda – em 1987 chegou a 415%.

Para o carnaval de 1987, a Unidos da Tijuca escolheu o enredo “As Três Faces da Moeda”. A agremiação voltava ao então Grupo 2 após ter sofrido um rebaixamento polêmico em 1986 – contei aqui a história.

Não temos a sinopse disponível, mas no período entre a divulgação do enredo e a disputa do samba já estava claro que o Plano Cruzado teria vida curta. O carnavalesco era Sílvio Cunha.

O samba, que seria profético, já ironizava situações que ocorriam naquele instante, como a falta de carne e o boi no pasto. Versos como “Não sei o que foi que aconteceu/com o Plano Cruzado tudo desapareceu/tava tudo congelado/acho que já derreteu”, do refrão do meio, ironizavam a situação daquele momento.

A pobreza e a concentração de renda também eram retratadas nos versos “inventaram o pobre e o dinheiro/e com isso muita gente enriqueceu”, entre outros. A composição, que contava com apenas um único autor, de nome artístico Piedade, descrevia o Plano Cruzado e já previa a sua derrocada.

Naquele ano o Grupo 2, hoje Série A, desfilava na sexta feira de carnaval, em um único dia. Somente no ano seguinte é que este grupo passaria para o sábado de carnaval, com os blocos de enredo indo desfilar na Avenida Rio Branco.

A Unidos da Tijuca era a sétima escola a desfilar dentre nove escolas, adentrando a Marquês de Sapucaí já na manhã de sábado. O desfile sofreu um grande atraso devido a falhas no som nas duas primeiras escolas, o que acabou levando à anulação do quesito Harmonia na apuração.

No grito de guerra, o intérprete Nego, para mostrar que a Tijuca naquele ano viria para disputar e não seria escrachada como no polêmico desfile anterior, lançou no microfone em seu grito de guerra “alô povão, agora é sério!” Este se tornaria seu grito de guerra definitivo através dos anos. A bateria era comandada por Mestre Marçal, que fez história na Portela.

A Tijuca saiu da avenida como uma das favoritas ao título, junto com a Tradição. Em uma apuração muito tumultuada, com brigas de torcida, Tijuca e Tradição empataram com 203 pontos. O desempate a favor das “Três Faces da Moeda” foi no quesito Bateria, dando o título à Tijuca. Ainda assim, as duas foram promovidas ao Grupo 1 para 1988.

Uma curiosidade é que o Desfile das Campeãs daquele ano teve apenas as duas promovidas ao Grupo 1 e as quatro primeiras colocadas deste. Não há imagens no Youtube do desfile oficial da Tijuca, apenas do Desfile das Campeãs.

Abaixo, a letra do samba:

Inventaram o pobre e o dinheiro
E com isso muita gente enriqueceu
Através dos tempos
Tanta coisa aconteceu
Pedindo esmola, dando golpes pra viver
Ganhando pouco, muito mal dá pra chorar
Enquanto o rico vai nadando no dinheiro
O FMI vai dominando o mundo inteiro
Até parece história que vovó contou
Que, no tempo do mil reis quanta coisa ela comprou
E o cruzeiro que o cruzado empacotou
Teve uma queda tão forte que a inflação baixou

Não sei o que foi que aconteceu
Com o Plano Cruzado tudo desapareceu
Tava tudo congelado
Acho que já derreteu

Eu também quero receber o meu quinhão
Falta leite, falta carne, qualquer dia falta pão
E a Unidos da Tijuca vem mostrar
As três faces da moeda pra você fiscalizar
Eu vou pra rua com a tabela na mão
Quero sentir firmeza nesse tal de pacotão
Eu tenho a força, sou o raio congelante
Quero ver se o meu dinheiro
Vai ficar como antes

No jogo do troca-troca
Vem comigo pra folia
Barganhar sua tristeza
Com a nossa alegria

O ano já era 1994. Depois de mais alguns planos econômicos infrutíferos, a inflação chegara à estratosfera de 84% ao mês. Novamente seguindo experiências já adotadas em outros países, o Brasil desindexou sua economia com a URV (Unidade Real de Valor), transformada então no real, a nova moeda.

A âncora do Plano Real era o câmbio praticamente fixo atrelado ao dólar, o que conjugado à desindexação trazida pela URV derrubou a inflação imediatamente. Também trouxe uma elevação do poder de compra da população, logo anulada pela política do governo de comprimir o salário real, concentrar renda e elevar os juros, o que aumentou o desemprego a patamares nunca vistos anteriormente.

Mas em meados de 1994, com a euforia trazida pelo Plano Real, a Unidos de Vila Isabel achou por bem contar a história do dinheiro. A sinopse – disponível no Galeria do Samba – começa nos árabes, trazendo o sal e o cauri como substitutos do dinheiro. O carnavalesco era o já multicampeão à época Max Lopes.

Depois chega ao Brasil,  fala dos escravos e do açúcar, cita a independência, a criação do Banco do Brasil, o cruzeiro… até desaguar em uma mensagem de esperança trazida pelo Plano Real. Ao contrário da abordagem crítica do enredo da Tijuca oito anos antes, estava longe de ser uma abordagem crítica.

O samba enredo, assinado por André Diniz e Evandro Bocão, está longe de ser um dos mais brilhantes desta parceria, mas contava com correção o enredo. Se encerrava com uma mensagem de esperança nos versos “a inflação deixou de herança/no real, realidade e esperança”. 

A Vila Isabel foi a terceira escola a desfilar na segunda feira de carnaval, 27 de fevereiro – curiosamente, no mesmo dia do desfile da Tijuca em 1987. Após um longo esquenta de mais de 10 minutos, os intérpretes Gera e Jorge Tropical levaram com competência o samba, com o luxuoso auxílio de Martinho da Vila.

A comissão de frente trazia moedas de 1 real, e ao final havia um componente representando o então presidente Fernando Henrique Cardoso.

No terço final do desfile a Vila Isabel teve de apertar o passo devido à lentidão do início, causada pela morosidade da comissão de frente em sua apresentação. Em um grupo inchado de 18 escolas, foi um desfile simpático, mas que nem disputaria as primeiras posições nem cairia para o Grupo de Acesso. Acabou exatamente no meio, na nona colocação.

Abaixo, a letra do samba:

“O cauri que eu vou jogar já foi dinheiro
O salário vem do sal que é tempero
No azul desse mar eu faço meu carnaval
Com a Vila levantando o meu astral

A Vila ao girar sua coroa
Mostra a cara na avenida
E diz que a vida sempre foi um troca-troca
A Arábia em duas faces se escondia
Atraindo pro Oriente os interesses da Europa
Ao aumentar sua fronteiras
Surgiram novas rotas financeiras
O ciclo da moeda refletia
O comércio das especiarias

O “Eldorado Negro”, império e tesouro
Taghaza transformava “ouro em pó” em pó de ouro

Renascem da evolução novos filões
Entre o Ocidente e regiões
Daí a cobiça tão viril
Caravelas aportaram no Brasil
Um paraíso, um colírio no olhar
Novo eldorado fez a corte delirar
Pregoeiros de riquezas
Pau-Brasil de mão em mão
Nosso chão virou senzala
Um mercado a escravidão
D. João trouxe o progresso
A inflação deixou de herança
No real, realidade é esperança”

Vejamos se daqui a alguns anos, com a crise econômica e social se aprofundando, haverá um novo plano econômico que irá gerar um enredo sobre ele. Como os leitores puderam ver neste texto, a combinação entre samba e economia pode sim dar samba.

Nem que seja para mitigar a falta de dinheiro…

Imagens: O Globo e Época

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8 Replies to “Samba de Terça: Samba e Economia”

  1. Muito legal o retorno dessa coluna Pedro! Lembro dela no Galeria do Samba, e depois achei vários textos antigos aqui, um mais interessante do que o outro, tomara que venham mais histórias interessantes por aí!

    Desse desfile da Vila lembro bem, realmente não deixou lá grande impressão a época, mas não conhecia esse da Tijuca, que desde já me agradou por ter um lado mais crítico e irreverente, o que anda muito em falta atualmente… Se não me engano, a Tijuca só desfilaria outra vez no acesso em 1999 (e que desfile!) se firmando de vez entre as grandes do Carnaval Carioca.

    1. Obrigado, Luis

      Realmente, a Unidos da Tijuca desfilaria apenas uma vez mais no Acesso, em 1999 – com um samba, aliás, que embora seja bom acho bastante superestimado.

  2. Plano Real um das poucas conquistas do povo brasileiro nos ultimos 50 anos,não a nada pior que inflação.

    1. A estabilização da moeda, ok – concordo com você sobre a inflação. Entretanto, vale ressaltar que era um processo que vinha ocorrendo em outras partes do mundo que sofriam com o fenômeno da superinflação.

      Quanto aos demais aspectos do Plano, são bem discutíveis, especialmente quando se olha o que ocorreu nos anos seguintes.

      1. A se destacar o timing de se iniciar o Plano (com a URV) em ano de eleição e praticamente no último mês do então Ministro da Fazenda no cargo, que deixou para disputar a (surpresa!) Presidência da República!

  3. Sorte da Tijuca que o desempate foi na bateria. Fosse samba enredo a Tradição (o lindo “Sonhos de Natal”) levaria com sobras. Curiosidade tijucana deste 1987 foi a troca de papeis das duas vizinhas. O Império, que vinha de uma sequência de desfiles no Especial, seria rebaixado para voltar apenas duas vezes nesses trinta anos (1996 e 2014). Desfilou com “Viva o Povo Brasileiro”, da obra de João Ubaldo Ribeiro, com muitos problemas de evolução. A Unidos subiria campeã e se firmaria. Tendo apenas o deslize (a meu ver uma queda injusta) de 1998. Hoje, as primas do Borel e da Formiga vivem momentos bem distintos do que viviam até aquele carnaval de 1987. O desfile da Vila em 95 teve seus bons momentos (vi de arquibancada) mas, de fato, num ano inchado, ficou onde deveria mesmo.

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