No final do ano passado, escrevi aqui e aqui sobre os sambas-enredo do Grupo Especial do Rio de Janeiro para o Carnaval de 2017. Agora, após a virada do ano, venho aqui analisar as 14 obras que passarão pela Marquês de Sapucaí na sexta e no sábado de Carnaval no desfile da Série A, a segunda divisão, de onde sairá uma escola para o desfile do Grupo Especial em 2018.

O padrão das análises será o mesmo. Parti das gravações que fazem parte do CD oficial cuja produção, por sinal, não me agradou. Acho as faixas simples demais e a opção pela primeira passada sem bateria muito me incomoda. Até ajuda os sambas mais simples, mas os de melodia mais rebuscada acabam sendo prejudicados. Enfim, os critérios usados são os mesmos do Manual do Julgador: a nota varia de 9 a 10, dividida em décimos (9,0, 9,1, 9,2, etc), e resulta da soma entre os subquesitos letra do samba e melodia, ambos com notas de 4,5 a 5,0. Em letra do samba, avalia-se a adequação ao enredo, a riqueza poética, ou seja, a beleza e o bom gosto, e também a adaptação à melodia. Nesta, por sua vez, são levados em conta o ritmo do samba, a beleza e o bom gosto dos desenhos musicais e a capacidade de adaptação ao canto do componente.

Obviamente, não tenho a pretensão de ser jurado, nem tampouco de antecipar o julgamento oficial, uma vez que na Avenida algumas virtudes ocultas aparecem e outros defeitos que passaram batidos se tornam explícitos. Acho apenas que esse é o método mais justo de fazer uma análise já que, noves fora a relevância cultural e artística do samba-enredo, é feito a partir desses critérios estabelecidos pelo julgamento oficial. Para esclarecer melhor, já que no caso do Grupo Especial algumas pessoas interpretaram de outra forma: vou descontando pontos a partir dos erros, como manda o Manual. Não gosto desse sistema, mas é assim que funciona. O samba parte do 10 e vai perdendo ponto a cada erro, sem a possibilidade de recuperar esses pontos por seus acertos. Isso posto, o fato de um samba receber nota 9,0 não significa que ele é um desastre ou que não poderia ser pior. Significa apenas que houve pelo menos 10 ocorrências ao longo da obra. Como o intervalo de notas atual é muito pequeno, um 9,2 dá a impressão de que o samba é um completo horror, que de zero a dez ele merece um 2, o que não é verdade.

Agora sim, lá vamos nós. Hoje analisarei os sambas que desfilarão na sexta-feira, pela ordem do desfile, e amanhã os de sábado, também na ordem do desfile.

Acadêmicos do Sossego: “Zezé Motta – A Deusa de Ébano!”

Compositores: Felipe Filósofo, Fabio Borges, Ademir Ribeiro, Bertolo, Sérgio Joca, Paulinho Ju, Marcelo do Rap, João Perigo e Wallace Oliveira.

Intérprete: Leandro Santos. Participação Especial: Zezé Motta.

De volta à Marquês de Sapucaí após seis anos, a Acadêmicos do Sossego certamente deixará sua marca na estreia pelo segundo grupo. Um samba-enredo em forma de diálogo, pelo menos até onde eu sei, é algo absolutamente inédito na história do gênero e mostra, antes de mais nada, a veia revolucionária de um grupo de compositores que está se destacando pelos sambas muito acima da média nos últimos anos. Além disso, vale destacar a coragem da agremiação de Niterói ao escolher uma obra densa e de difícil assimilação. Embora a qualidade seja indiscutível, vale lembrar que a parceria de Igor Leal também tinha um samba muito bom e mais próximo aos padrões atuais. Ainda assim, a harmonia da Sossego topou o desafio e a escola, felizmente, optou por uma obra que, em outros tempos e em outros grupos, poderia tranquilamente entrar para a história.

O diálogo entre a escola e Zezé Motta, atriz e cantora homenageada no enredo, apresenta versos bonitos, boas sacadas e uma melodia criativa, com boas variações e desenhos surpreendentes. A começar pelo refrão principal: ele se inicia com o “chamado” da escola em “Eu vi Mamãe Oxum clarear a cachoeira / Eu vi Mamãe Oxum clarear a cachoeira / Zezé Motta vai brilhar, nasce uma estrela” – o enredo começa justamente com uma reverência à Oxum, orixá das águas doces. Depois, aparece a “resposta” da atriz, que “topa” a homenagem no verso “Sossego mandou me chamar, eu vou!”.

A estrofe poderia estar concluída ali, mas os compositores não se contentaram com o básico e foram além, de modo que a estrofe ganha ainda um prolongamento com um verso repetido – justamente uma saudação à Oxum: “Ora yê yê Oxum, aiê iê ô”. Uma costura ousada e muito bem executada, mostrando grande criatividade e ao mesmo tempo muito cuidado para que o samba não saísse dos trilhos. No entanto, por haver duas repetições em uma estrofe de seis versos – “Eu vi Mamãe Oxum clarear a cachoeira” no início e “Ora yê yê Oxum, aiê iê ô” no fim –, não havia a necessidade de repetir toda a estrofe no refrão. Com uma passada só ela estaria muito melhor resolvida. Com duas, fica um pouco cansativo (-0,1 em melodia).

Na sequência, o samba “direciona” a homenageada ao seu templo sagrado – como fica claro pelo título, ela é tratada como uma “Deusa de Ébano”, como são chamadas as mulheres negras mais exuberantes. Gosto muito do verso “Dionísio embriagado de alegria te oferta a lira de Orfeu”. Dionísio é o deus grego das festas e do teatro, o que tem tudo a ver com Zezé. Orfeu é uma personagem da mitologia grega conhecida pela lira que tocava para a amada Eurídice. A origem em comum entre Dionísio e Orfeu por si só justificaria o verso, mas a sacada fica ainda melhor através da resposta de Zezé: “Ah, é uma honra! Eu já fui Conceição”. “Conceição” é o nome da personagem que Zezé interpretou no filme “Orfeu”, de 1999, baseado numa peça teatral de Vinicius de Moraes onde o mito de Orfeu era adaptado à realidade dos morros cariocas (Zezé também interpretou uma Conceição na minissérie Chiquinha Gonzaga, da TV Globo, também em 1999). Quanta criatividade os compositores tiveram ao encaixar todas essas referências!

A segunda estrofe se encerra com uma “promessa” de Zezé, onde mais uma vez os compositores provaram que é possível rechear o samba de trabalhos do homenageado sem perder o sentido da letra: “Farei dessa avenida um quilombo”. Nessa passagem, cita-se, de uma tacada só, a militância da atriz nas causas dos negros e vários de seus trabalhos na TV, no cinema e no teatro onde ela era escrava – inclusive um filme de 1984 chamado “Quilombo”, onde ela interpretava Dandara, mulher de Zumbi dos Palmares. A melodia, apesar de linear, apresenta trechos muito melodiosos e interessantes como “Ah, é uma honra! Eu já fui Conceição” e o ótimo ““Nas voltas do meu coração””, que tem uma aceleração que de fato remete à canção “Roda Viva”, de Chico Buarque, que virou um musical símbolo da luta contra a ditadura militar – e no qual Zezé Motta atuou.

O refrão do meio ainda incorpora a luta da artista pelas causas dos negros, onde uma vez mais sua discografia é utilizada de modo a facilitar a compreensão do enredo. O pedido da escola, “Rufam os tambores por dignidade”, é respondido com uma linda passagem: “Pois é, “meu sangue não nega” / Trilha sonora da senhora liberdade”. É uma referência à “O sangue não nega”, música de Luiz Melodia gravada por Zezé, cuja letra fala justamente da história de resistência dos negros. Ou seja: está no sangue (e na voz) da homenageada a luta pela liberdade. Melodicamente, destaque para o desenho de “Pois é, “meu sangue não nega””, que é mais truncado e quebra com muita competência a estrutura mais melodiosa da estrofe.

Os compositores optaram por construir a melodia do refrão do meio de maneira bastante distinta do fim da estrofe anterior e do início da posterior. É um recurso que, em geral, não me agrada, mas nesse caso não tenho muito o que questionar. Principalmente porque o início da última estrofe é belíssimo. O verso “Fiz dançar a hipocrisia numa “negra melodia”” é de uma inspiração ímpar. Novamente abordando uma obra de Zezé (no caso, o álbum “Negra Melodia”), os compositores mostram sua discografia como forma de combater a hipocrisia que é o racismo no país. Também me agrada muito o verso “Tenho a cor da noite, a dor ensina”, que além da bela sacada da “cor da noite” e da citação à dor sofrida pelos negros, tem um ótimo entrosamento entre letra e melodia.

A grande passagem da estrofe e do samba, porém, vem logo na sequência. A Acadêmicos do Sossego pede: “Seja a luz que ilumina, ó, divina!”, ou seja, que ela inspire novos artistas. E ela responde: “Serei até quando a tela deixar meus nobres irmãos atuar”. Espetacular! O alerta para que as produções televisivas e cinematográficas do país não esqueçam os atores negros tem tudo a ver com a carreira de Zezé Motta e foi passado com clareza. O trecho “Onde o sol bate e se firma, abrem-se as cortinas / Negras estrelas caem do céu” não faz sentido dentro da carreira da homenageada. Por mais que “Onde o sol bate e se firma” seja outra das músicas de Luiz Melodia interpretadas por Zezé Motta, a letra não tem nada que esteja associada ao contexto da letra.

No entanto, não é possível penalizar o samba por isso, uma vez que na sinopse há justamente a passagem em que o sol bate e se firma para as cortinas se abrirem. O samba se encerra com a saudação da escola em outro trecho de ótima célula melódica: “Até breve, diva, axé!”. E a resposta se encaixa quase que como um resumo do enredo. Várias em uma só, Zezé Motta encerra o papo com um simples ““Muito prazer”, eu sou Zezé”, que ainda faz referência à música “Muito Prazer Zezé”.

Leandro Santos tem muito boa condução do samba e a participação de Zezé Motta na primeira passagem enriquece a letra, uma vez que ele canta as “falas” da escola e ela as dela mesma. No entanto, por mais que tenha ficado espetacular, sigo dizendo: quem canta samba no CD oficial é o intérprete principal. E só.

Letra do samba: 5,0. Melodia: 4,9. Nota: 9,9.

Alegria da Zona Sul: “Vou Festejar com Beth Carvalho, a Madrinha do Samba”

Compositores: Pixulé, Rafael Tubino, James Bernardes, André Kaballa, Marcelão, José Mario, Pedro Miranda, Victor Alves e Marco Moreno.

Intérprete: Igor Vianna. Participação Especial: Beth Carvalho.

Ao contrário do que muito tenho lido e ouvido por aí, acho esse samba um outro exemplo de como as muitas citações à obra de um homenageado não são obrigatoriamente sinônimo de falta de criatividade ou de sentido. A homenagem à sambista Beth Carvalho, que mantém a escola da Zona Sul na linha de enredos de grande apelo popular, levou a um samba que tem tudo a ver com a cantora: parece um samba de roda, o que definitivamente não é um defeito. Muito pelo contrário. Muito agradável de se ouvir e de se cantar, parece ter sido feito sem a pretensão de entrar para a história (talvez seja essa sua diferença vital para o samba da Sossego). Por outro lado, é “pule de dez” cravar que servirá muito bem ao desfile, à escola e principalmente ao público que estiver na Marquês de Sapucaí.

A construção da letra é feita em primeira pessoa, com a escola se declamando para Beth Carvalho. Foi um recurso que deu muito certo em outra homenagem recebida recentemente pela cantora na paulistana Acadêmicos do Tatuapé, em 2013, e que volta a servir de base para uma letra extremamente correta e com trechos inspirados. O refrão principal, por exemplo, é de uma felicidade enorme. O uso de termos como “Bate na palma da mão” seria passível de críticas em outros enredos, mas não nesse. Falando de uma sambista, vem muito a calhar, ainda mais porque faz referência a “O samba começa assim”.

O mesmo vale para o termo “levanta poeira” e a associação a “Volta por cima”. A passagem “De vermelho e branco, vou festejar”, que durante muito tempo me incomodou, agora me agrada bastante. Houve um ajuste feito pela ala musical impedindo que a subida de tom, feita para que o refrão não ficasse meio “desanimado”, provocasse um atropelamento da melodia na letra. Também me agrada o trecho “Na alegria, o batuque é de arerê / Beth Carvalho, o meu samba é pra você” que fecha essa estrofe de maneira muito inteligente, sobretudo pelo termo “arerê”. Sobretudo porque arerê em iorubá significa uma grande bagunça. Tudo a ver com o enredo, convenhamos.

A primeira estrofe já deixa evidente uma característica do samba: menos explosão e mais células melódicas suaves, que, por outro lado, não cansam o ouvido mesmo após sucessivas passagens. As canções de Beth Carvalho começam a ser apresentadas de maneira mais explícita dentro de um contexto. No começo, por exemplo, a escola fala do surgimento do ritmo que consagraria a cantora com uma referência muito clara à música “Andança” na passagem: “Ê, lindo luar / Ilumine as “andanças” dessa gente / É semba, tambores a contagiar / É samba, malandro, vadio, valente”. O fato da melodia ser mais suave não tira sua criatividade. Só nesses quatro versos temos uma passagem bastante lenta nos dois primeiros e outra bem mais acelerada nos dois últimos.

É uma estrutura cuja velocidade vai em uma crescente até atingir o clímax no trecho que fala sobre a infância de Beth: “Então, a pequena bailarina / Viu “alvorada” menina / Lá no morro, que beleza”. E é aí que não entendo as críticas ao excesso de citações às músicas da homenageada. Certo, está ali mais uma, “Alvorada”, mas vai dizer que não é bonito imaginar a pequena Beth Carvalho vendo a alvorada do morro? E vai dizer que isso tudo não tem uma brilhante sequência quando o samba volta a ficar mais cadenciado em “Seguiu a melodia da canção / As “folhas secas” e as “rosas” de Mangueira”? Se for pra citar “Folhas secas” e “As rosas não falam”, que seja assim, mostrando como os poetas de Mangueira influenciaram musicalmente a então jovem cantora. Também acho muito bonito o verso “E descobriu seu dom, amor pra vida inteira”.

Apesar da melodia bastante contagiante, acho que a letra dá uma pequena derrapada no refrão do meio. Sobretudo pelo verso ““Esquece a dor”… Entra na roda”. Se a letra é feita de modo que a escola canta para a homenageada e a vida dessa homenageada é apresentada de maneira cronológica, não me agrada que o samba “pule” para o presente a convidando para entrar na roda e, logo depois, volte a contar a sua história. Essa citação à “Caciqueando”, no meu modo de ver, não ficou legal, bem como acho que o verso ““Doce refúgio” onde a arte foi morar” ficou um pouco deslocado, sem dialogar com clareza com os versos anterior e posterior (-0,2 em letra). O encerramento da estrofe, porém, é brilhante com a passagem “Caciqueando à sombra da tamarineira / O subúrbio te chama pra sambar”. Isso, sim, tem tudo a ver com a vida e a obra da homenageada.

O início da terceira estrofe também é lindo. A estrutura melódica se assemelha à da primeira, com a diferença de que toda a primeira metade é mais lenta. Gosto da exaltação feita no verso ““Você vale ouro”, é inspiração”, em referência à música “Coisinha do Pai”, um dos seus maiores sucessos. Também me agrada a lembrança da sua militância política na passagem “No sonho da democracia / Lutando pela liberdade de expressão”. No entanto, a estrutura “verso-verso terminado em ão-verso-verso terminado em ão-verso-verso terminado em ão” torna a melodia um pouco cansativa (-0,1 em melodia), muito embora o último deles seja brilhante: “Tão “gloriosa” que “nem cabe explicação””, que associou de maneira muito inteligente a paixão de Beth pelo Botafogo, o Glorioso, à música “Sei Lá Mangueira”, onde a importância da verde-e-rosa aparece como sem explicação.

Depois desse verso, há um ponto de virada que foi melodicamente construído com perfeição em “Madrinha, “divina” dama” (as aspas são referência a “Divina é a música”). É quando o samba atinge seu ápice com a consagração popular de Beth Carvalho no desfile da escola, o que fica evidente no verso “O povo te aclama, “não é pecado sambar””. Ali, no entanto, ainda percebo a letra sendo atropelada pela melodia (-0,1 em melodia). No entanto, a lembrança de “Se é pecado sambar” merece todos os elogios, bem como “O show tem que continuar”, que é recordada no verso final.

Igor Vianna mostra todas as suas credenciais em sua volta à Sapucaí como cantor principal após quatro anos. O samba feito sob medida para o seu estilo de canto colabora, mas a atuação é irretocável e valoriza ainda mais a obra. Não surpreende quem já conhece, o que talvez não seja o caso do grande público. Isso posto, é possível apostar que o cantor será um dos destaques do desfile da Alegria da Zona Sul. Beth Carvalho aparece no início da faixa saudando e agradecendo à agremiação.

Letra do samba: 4,8. Melodia: 4,8. Nota: 9,6.

Unidos do Viradouro: “…E Todo Menino É Um Rei”

Compositores: Cláudio Mattos, Felipe Filósofo, Diego Nicolau, Fabio Borges, Manolo, Renan Gêmeo, Bertolo, Rodrigo Gêmeo e Anderson Lemos.

Intérpretes: Zé Paulo Sierra e Dominguinhos do Estácio.

O enredo de temática infantil não tem muito a ver com a Viradouro, nem com o momento atual do Carnaval carioca (essa temática tem sido bem mais popular em São Paulo, de onde, aliás, vem o carnavalesco Jorge Silveira) mas acabou vindo a calhar dada a péssima posição de desfile da escola. Enfrentando um público ainda frio, a escola terá um enredo leve, de bom visual e que proporcionou um samba extremamente agradável. Talvez o mais convencional já feito por Felipe Filósofo (olha ele aí de novo), ele flui com facilidade e não cansa. Com letra altamente inspirada e melodia com boas variações, a obra se destaca, ainda que perca com folga no cruel comparativo com os últimos dois sambas da vermelho-e-branco.

O refrão principal tem uma sacada daquelas ocultas, que só ouvindo muitas e muitas vezes é possível perceber. Mas é genial. O enredo diz que toda criança é um rei. Na sinopse, é clara a mensagem de que o tema fala sobre todas as crianças. O refrão principal, então, começa com “Abre a roda ioiô… É ciranda”. “Ioiô” era o modo como os escravos se referiam aos brancos filhos dos patrões. Ou seja: é uma criança negra convidando uma criança branca para cirandar e, posteriormente “entrar na roda e sambar”. Sensacional! Não sei se foi intencional, mas, mais adiante, essa construção com o eu-lírico negro vai proporcionar um outro momento de enorme inspiração e que valorizará um trecho sensível do enredo. Enfim, voltando ao refrão, gosto muito do seu final em homenagem à escola: “Viradouro… Foi nesse chão que me criei / Aqui todo menino é um rei”. Melodicamente, o destaque da estrofe é para o prolongamento em “Viradouro” e “criei”.

A primeira estrofe começa com melodia mais lenta, representando com clareza o cenário proposto pela sinopse. Acho muito bonito o verso “Onde a imaginação é poesia”, bem como o próprio prolongamento da melodia em “poesia”. A passagem “No meu pequeno lugar viajei / Na infinita imensidão do meu olhar” também é muito bonita, apresentando a capacidade que o menino rei tem para sonhar. Se o enredo peca pela pouca carnavalização dos sonhos do menino rei, o samba trata de corrigir isso com o excelente verso “Gira boneca, brinca de porta-bandeira”. Para fechar a melodia, a solução foi repetir o verso seguinte, “Nessa brincadeira quero ser seu par”, duas vezes. Um truque simples, sem muita criatividade, mas que não compromete o conjunto e evita uma quebra na unidade melódica da obra.

A estrofe seguinte é a mais bonita do samba e uma das mais bonitas de todo o CD: “Desejo ser mais um super-herói / Porque menino sonha demais / Menino sonha com coisas que nunca esquece / E quando cresce não vê jamais”. O “quando cresce não vê jamais” não é propriamente inédito, eu sei. É um verso da canção homônima e inspiradora do enredo e está na sinopse. Ainda assim, é muito bonito. Agora vamos voltar ao início dessa análise. O enredo tem, especialmente em seu último setor, uma preocupação social. Fala de injustiças, desigualdade, direitos. E o eu-lírico, quem é? Um menino negro que se refere a um menino branco a partir de uma expressão usada pelos escravos para falar com os patrões. Basta ligar uma coisa a outra, então. Num país marcado pela desigualdade, muitos meninos reis, em especial os negros, sonham com coisas que jamais verão no futuro. Quanta poesia e sensibilidade!

Na sequência, porém, o samba derrapa e derrapa feio. A melodia do refrão central é perigosa, pois é muito diferente do que se ouve no resto do samba. Até acho que a transição da estrofe anterior para esta foi bem costurada após o ajuste feito pela ala musical da escola. O problema é que arrumou-se uma falha gerando outra. Primeiro porque os “erê”s do verso “Erê, erê, erê, erá” agora possuem uma métrica muito ruim (canta-se “êre”, com a entonação mais forte no primeiro “e” e não no segundo), o que prejudica a beleza do samba (-0,1 em melodia). Depois, a letra é atropelada pela melodia, que torna uma tarefa quase impossível o canto claro e completo das quatro palavras do verso (-0,1 em melodia). Outra coisa que me incomoda é esse “erá”. “Erê” significa brincadeira em iorubá, além de ser também o espírito das crianças. “Erá”, porém, não tem nenhum significado claro e parece estar ali apenas para “fechar” a melodia (-0,1 em letra). Pra não dizer que esse refrão foi de todo ruim, gosto bastante do verso “Ê, menino rei, vem batucar”.

A saída para a estrofe seguinte é muito bem costurada. O samba retoma as células melódicas mais suaves e tem mais uma bela sacada na letra. Os versos “Quem dera poder tocas as nuvens de algodão / Quem dera mergulhar na doce tentação” falam sobre as comidas que fazem sucesso com a criançada. Os compositores, porém, fizeram os versos seguintes como se eles também fizessem parte do “quem dera”, entrando assim no setor final, que fala dos desejos do menino rei. Daí surge a bela passagem “Colorir um mundo bem mais belo / Fazer da alegria o meu castelo / Com lápis de cor eu vou desenhar / Traços da minha paixão”.

Melodicamente, destaque para os desenhos do primeiro e do último dos versos citados. Depois, há uma transição melódica muito agradável para o verso “No amanhã, eu acredito é nessa molecada”, que, no entanto, me incomoda pela quebra de sentido. Se o eu-lírico é uma criança, acho estranho o uso do “nessa molecada” em terceira pessoa (-0,1 em letra). Por outro lado, é excelente o encerramento com “Que não dá bola pra tristeza, não / Na proteção da ibejada”, que mostra a capacidade infantil de superar os problemas e a proteção dos Ibejís, as divindades infantis dos orixás.

A dupla Zé Paulo Sierra e Dominguinhos do Estácio faz uma gravação irretocável. Apesar do timbre bastante diferente, os dois se mostraram altamente entrosados e fizeram uma gravação alegre como pede o samba. O grito de guerra no início da faixa é um dos melhores momentos do disco.

Letra do samba: 4,8. Melodia: 4,8. Nota: 9,6.

Império da Tijuca: “O último dos profetas”

Compositores: Ferreti, Ismael David, Sergio, Michel do Alto, Orlando Ambrósio, Gilmar L. Silva e Washington Motta.

Intérprete: Rogerinho.

Se eu tivesse que definir esse samba do Império da Tijuca em uma palavra, seria ela “irregular”. A obra tem alguns grandes momentos que se alternam com outros de enorme infelicidade, tornando o conjunto um pouco confuso. É uma irregularidade que se traduz até mesmo no meu gosto pessoal: de vez em quando coloco os fones de ouvido só para ouvir esse samba; em outros momentos, quase nego os meus princípios e “pulo a faixa”. Tentando ser o mais ponderado possível, começo destacando a tarefa espinhosa que o enredo deu aos compositores: apesar do conteúdo ser bom, ele mistura três estilos diferentes e esses estilos pedem três construções melódicas igualmente distintas. Ou seja: é preciso uma melodia mais densa para falar de São João Batista, uma “pegada afro” nos setores sobre Xangô e uma bossa mais nordestina no encerramento com a festa junina.

Os compositores tiveram a ousadia de encaixar esses três ritmos no samba. Já vi algumas pessoas comentando que isso transformou a obra em uma espécie de “samba do crioulo doido”, mas eu discordo. Acho que ficou bom. Ousado, diferente, surpreendente. Gostei. Gostei também da construção melódica do refrão principal, especialmente na passagem mais acelerada em “O Morro da Formiga canta em louvação / Então me batizei em suas mãos”, que é muito gostosa de ouvir e cantar. A letra também é interessante pois começa com “O meu Império é a voz da justiça”, o que faz referência ao orixá da justiça Xangô.

Na sequência, já se introduz a louvação a São João Batista, deixando a explícita a ideia central do enredo, que é falar do santo a partir do seu sincretismo com o orixá. O que me incomoda é o final. O “Então me batizei em suas mãos” ainda passa como licença poética. Ainda que ninguém seja efetivamente batizado por São João Batista, há um simbolismo no catolicismo que referenda essa citação. Mas em “Nas águas do Rio Jordão” a letra desaba de vez porque aí fica evidente que está se revelando o episódio do batismo de Jesus Cristo. Dessa forma, o eu-lírico passaria a ser o próprio Jesus Cristo (“me batizei”), o que não aparece em nenhum outro momento (-0,1 em letra).

Esse descuido não é o único. Ao longo de toda a letra é possível notar uma certa falta de cuidado que prejudica o lirismo e até mesmo a compreensão dos versos. No começo do samba, por exemplo, temos a passagem “Raio de luz prenuncia a vinda / A noite encantada é tão bonita / Virá um anjo bom anunciar / O nascimento na aldeia de Judá”. Se retirarmos o segundo verso, há uma lógica muito clara. Com ele no meio, fica muito confuso. Esse “A noite encantada é tão bonita” fica claramente sobrando (-0,1 em letra). A melodia nessa estrofe, apesar de correta, apresenta desenhos muito mais longos que os versos, o que torna o samba um pouco arrastado (-0,1 em melodia). Apenas no final há um casamento feliz entre os dois subquesitos na passagem “Profeta, de muita fé no coração / Sou teu seguidor nessa missão”.

O refrão do meio nos leva a análise bastante semelhante. No início, uma falta de cuidado com a letra em “Deixa florescer palavras”, quando o correto seria “deixe florescer”. Em outro enredo, outro contexto, outra temática, poderia passar batido. Com a letra optando por um vocabulário mais rebuscado, a quebra de unidade é flagrante (-0,1 em letra). Também noto que o verso “Renascer da dor”, apesar de forte, fica sobrando no conjunto da estrofe, sem conexão nem com o anterior, nem com o posterior (-0,1 em letra). A melodia volta a apresentar coma construção muito engenhosa para versos muito curtos, o que torna o samba cansativo e sem vibração (-0,1 em melodia). Falando da letra, vale o destaque para os versos “Salve o meu santo / Tua mensagem que me traz acalanto / Venho te homenagear, em verde e branco”, sobretudo para o último, onde há um ótimo diálogo entre letra e melodia.

A estrofe seguinte é disparada a melhor do samba. A “pegada afro” é introduzida aos poucos, com a melodia ganhando contornos mais pesados de maneira crescente. O didatismo do verso “Na umbanda ele é o Rei Xangô / Kaô kabecilê” também me agrada bastante, pois deixa muito clara a mensagem de que já está se falando do orixá que tem sincretismo com São João Batista – o “kaô kabecilê” é a tradicional saudação a Xangô. O verso “Vem ver no ylê meu orixá dançando no xirê” também é ótimo, já que “ylê” é uma casa e “xirê” uma festa dos orixás. No entanto, a melodia de “Vem ver no ylê” praticamente “afunda”, dificultando muito o canto (-0,1 em melodia).

Por outro lado, o trecho “Levo na gamela o amalá / Na pedreira eu vou ofertar” é ótimo, tanto em letra (“gamela” é uma espécie de vasilha e o “amalá” é o alimento dos rituais para Xangô) quanto em melodia, introduzindo o espetacular verso-refrão “Yaô, Xangô é protetor”, cuja melodia é inspiradíssima. A virada deste verso para o momento em que a melodia ganha contornos mais nordestinos também é muito boa. A letra descreve bem o clima das festas juninas (dia 24 de junho, bom lembrar, é dia de São João, o santo homenageado nesta celebração) e a melodia acompanha esse ambiente alegre e contagiante com desenhos musicais crescentes e que atingem a explosão em “O céu fica todo iluminado, o arraiá tá animado / Viva São João!”, que fecha muito bem um samba de altos e baixos.

Cantando com um tom mais alto do que o samba pede, Rogerinho compromete um pouco da beleza da melodia e tira um pouco da força da obra. É sem dúvida um samba que se ajusta muito mais ao timbre e ao estilo de canto de Daniel Silva, intérprete contratado após a gravação do CD e que dividirá o posto de cantor oficial com Rogerinho.

Letra do samba: 4,6. Melodia: 4,7. Nota: 9,3.

União do Parque Curicica: “O Importante É Ser Feliz e Mais Nada!”

Compositores: Alex Português, Neguinho, Berequinho Jpa, Tide, Tonho do Cavaco, Mariano, Fabian Guerreiro, Cleber, Aniceto e Robertinho Bacairis.

Intérprete: Ronaldo Yllê.

Com um enredo interessante, mas não muito claro sobre os anos 70, 80 e 90, a União do Parque Curicica apresenta em 2017 um samba que é fruto de uma junção. Como quase sempre acontece nesses casos, a unidade melódica ficou bastante comprometida em alguns trechos, ao passo que a letra alterna bons e maus momentos ao tentar, durante todo o tempo, cativar o ouvinte com expressões e fatos marcantes do período retratado no enredo. Se por um lado não é dos mais criativos e apresenta falhas graves de letra e melodia, por outro é um samba que diverte em uma audição mais despretensiosa e pode até alcançar um bom rendimento na Sapucaí.

O refrão principal peca pelos dois primeiros versos, onde a letra é demasiadamente batida e sem um sentido mais claro dentro da proposta da escola (-0,1 em letra): “Vem comigo, amor, sou Curicica / Aqui o samba é nossa raiz”. Por outro lado, gosto muito dos dois versos finais, onde a escola convida o público para o desfile de maneira criativa, relembrando com propriedade e sentido claro os sucessos “No se reprima”, dos Menudos, e “Dancin Days”, das Frenéticas, na passagem “Não se reprima, solte essa fera / O importante é ser feliz!”. Melodicamente, a estrofe não tem grandes variações. É cantada em tom bem alto, com uma leve queda no verso “Não se reprima, solte essa fera”. Se não é uma construção genial ou empolgante, também não incomoda.

O problema da junção, porém, se mostra claro logo no início da primeira estrofe. Os três primeiros versos ainda fazem parte do mesmo samba do refrão principal e a transição para o quarto verso, que já foi tirado de outro samba, foi muito complicada. Foi preciso subir demasiada e incomodamente o tom de “Voltei aos tempos de criança” para que este verso se encaixasse ao seguinte, “Tem ciranda, amarelinha” (-0,1 em melodia).

A letra, por sua vez, flui com facilidade. Nenhum verso merece destaque uma vez que as brincadeiras vão sendo jogadas ao longo dos versos. Há de se elogiar o verso “E aquela brincadeira de beijar”, pois esse “e” encerra com clareza o setor que fala sobre os jogos.  No entanto, a transição melódica deste verso para o seguinte, “Na tela da TV tem trapalhadas”, não foi bem feita por conta da grande diferença de tonalidade entre as duas passagens (-0,1 em melodia). A letra volta a usar o recurso de apresentar vários itens do setor e patina no trecho “Chega a rainha em sua nave espacial / Ô, Terezinha, vocês querem bacalhau”. Embora fiquem claras as citações à Xuxa e Chacrinha, os versos parecem dialogar um com o outro e, assim, não fazem o menor sentido (-0,1 em letra). Esse último verso, por sinal, tem um tom mais baixo, causando um contraste incômodo com o início do refrão do meio. Dá até pra tomar um susto com o “É o amor, meu amor… É fogo e paixão” (-0,1 em melodia).

A amarração da letra nesse refrão do meio me agrada: fala-se do amor através de um amor e a partir dele citam-se sucessos românticos como “Fogo e Paixão”, de Wando e “Menina Veneno”, de Ritchie. O problema é que para que esse último se encaixasse na melodia foi preciso fazer uma espécie de gambiarra: ““Mina” veneno conquistou meu coração”. Um recurso de pobreza bastante complicada (-0,1 em letra). Porém, a criatividade volta a aparecer na passagem “Bota o vinil pra tocar / Quero vê-la sorrir, quero vê-la cantar”. Em resumo: o eu-lírico apaixonado (com “fogo e paixão”) pela Menina Veneno de Ritchie quer vê-la sorrir e cantar como cantava Sidney Magal. Mais uma mostra de que citar canções famosas ao léu não impede obrigatoriamente que a letra tenha um sentido mais claro.

O que não faz muito sentido e soa até um pouco redundante é o verso que abre a estrofe seguinte: “A cada dia surge um novo amanhecer” (-0,1 em letra) que parece ter sido criado apenas para rimar com “Quem sabe faz a hora / Não espera acontecer”. Por outro lado, gosto dessa citação a “Pra não dizer que não falei das flores”, um hino da luta contra a ditadura militar, vindo antes de “O tempo voa / Cara pintada gritou não foi à toa”. Esse “O tempo voa” acaba fazendo uma ponte entre duas grandes mobilizações nacionais do período do enredo – a luta por democracia na década de 1970 e os protestos pelo impeachment do presidente Fernando Collor de Melo em 1992.

É um raro momento de inspiração da letra, que infelizmente vem sucedido de outra passagem extremamente confusa: “A natureza é forte / Mas tem que preservar / Mais educação para esse povo varonil / Salve a juventude do Brasil”. A mensagem da preservação da natureza misturada à preocupação com as crianças não apresenta um sentido claro (-0,1 em letra). O mesmo problema aparece na sequência, agora por conta da junção. Os versos “Cantando e recordando antigos carnavais / Tempos que não voltam mais” fazem parte de um samba e o seguinte, “Nosso baú é esse, valeu! Diz qual é o seu?”, de outro. É praticamente impossível unir duas passagens assim sem que haja uma grave perca de sentido. Curiosamente, a junção foi muito competente melodicamente, o que surpreende em um samba bastante complicado.

Ronaldo Yllê alterna bons e maus momentos na gravação. Ao cantar ora em tons mais altos e ora em tons mais baixos, ele tem um desempenho confuso. Valoriza o samba em alguns momentos, mas o atropela em outros.

Letra do samba: 4,5. Melodia: 4,7. Nota: 9,2.

Estácio de Sá: “É! O Moleque Desceu o São Carlos, Pegou um Sonho e Partiu com a Estácio!”

Compositores: Daniel Gonzaga, Edson Marinho, Cláudio Russo, Lequinho, Igor Ferreira, Jorge Xavier, Salviano, Julio Alves, Alexandre Moraes, Marquinhos, Hugo Bruno, Tinga e Gabriel Martins.

Intérprete: Thiago Brito.

O enredo em homenagem ao grande Gonzaguinha pedia muito mais, isso é fato. Muito provavelmente em função da sinopse lamentavelmente engessada, o samba da Estácio de Sá é um recorte pouco inspirado e confuso de várias e várias das canções do homenageado. Com pouquíssimos momentos de emoção ou que provoquem reações mais entusiasmadas em quem ouve, o samba se destaca positivamente pela construção melódica correta e com boas variações. Ainda assim, o conjunto é decepcionante e tecnicamente o samba apresenta algumas falhas bastante graves.

A meu juízo, o melhor momento do samba é o não-refrão principal, que usa muito bem a letra e a melodia da música “O Homem Falou”: “Eô eô eá… Berço do samba! Estácio de Sá! / Eô eô eá… A nossa festa vai recomeçar!”. É uma passagem curta, simples, mas de bom efeito, muito embora haja uma disparidade muito grande em relação à melodia do final da estrofe anterior (-0,1 em melodia). Por outro lado, a transição desta passagem para o início da primeira estrofe é belíssima. Os primeiros versos também apresentam ótimo casamento entre letra e melodia na passagem “Acreditava na vida… / E na alegria de ser… Feliz / Andava no São Carlos / Pensava em ser guerreiro / Com terras e gentes a conquistar”. É um dos raros momentos em que o uso das canções do homenageado apresenta algum sentido. No caso, a partir de “Com a perna no mundo” se recordam as origens do cantor no Morro de São Carlos, onde está situada a escola.

Ainda no contexto de “Com a perna no mundo”, a letra apresenta uma passagem absolutamente confusa, onde são apresentados nada menos que quatro tempos verbais diferentes: “Ô Dina… Seu guri foi em busca de um sonho / Espalhar todo amor que componho / Pus a perna no mundo e parti / Ô Dina… Seu moleque voltou novamente / Pra fazer mais feliz essa gente / Chega de chorar, vamos sorrir”. Os últimos versos até são bem interessantes, pois mostram Gonzaguinha voltando para o seu berço para receber essa homenagem, mas o conjunto todo ficou muito confuso (-0,1 em letra). Melodicamente, as rimas muito próximas de “sonho” e “componho” e “novamente” e “gente” fazem com que o samba se torne um pouco cansativo, sobretudo por conta do prolongamento de alguns dos versos (-0,1 em melodia).

Outro bom momento do samba é o refrão do meio. É o momento mais contagiante da obra, sobretudo pela célula melódica dos versos “Eu vou mostrar pra vocês / Como se dança o baião”, que é praticamente idêntica à da canção homônima de Luis Gonzaga. A citação não vem por acaso, já que é o momento em que o samba cita a relação do homenageado com o seu pai adotivo. Após algumas citações a tradições nordestinas, aparece uma passagem muito bonita: “Herança que vem de pai / Lembranças do seu lugar / Saudade meu remédio é cantar” – o último verso é tirado de outra canção de Luiz Gonzaga, “Que nem jiló”. Se a letra se destaca, a melodia incomoda por uma aceleração desnecessária. Até pela beleza desse trecho, seria mais interessante que ele fosse levado de maneira mais cadenciada (-0,1 em melodia).

Pra falar da terceira estrofe é preciso, antes de mais nada, fazer uma crítica severa: a letra não apresenta sentido algum. Ao contrário do que vinha acontecendo na outra parte do samba, as canções agora passam a ser jogadas ao longo da letra sem o menor sentido, dificultando muito o entendimento da obra (-0,2 em letra). Soltos no ar, alguns versos até são bem bonitos como “Eis aqui a minha escola / Se entregando”, “Peito aberto lá vou eu / Porque nada foi em vão” e “Quero sentir a dor dessa manhã / Olha o meu povo cantando nas ruas”.

O problema é que, em um conjunto, o eu-lírico (que no caso é o próprio Gonzaguinha, já que o samba é todo cantado em primeira pessoa) não diz nada com coisa alguma. Ou, se diz, não deixa claro o que é. O final do samba até chama a atenção isoladamente ao recuperar letra e melodia do sucesso “O que é, o que é?”. O problema é que tal recurso já foi utilizado no não-refrão e no refrão do meio, de modo que fica nítida a falta de criatividade (-0,1 em melodia).

Thiago Brito fez uma gravação bem mais comedida se comparada aos últimos anos na Caprichosos de Pilares, mas segue exagerando nas reverberações, o que compromete seu trabalho. Até pelo formato de produção do CD, ingrato aos intérpretes que cantam em tons mais altos, urge que ele repense o seu estilo de gravação.

Letra do samba: 4,7. Melodia: 4,6. Nota: 9,3.

Acadêmicos de Santa Cruz: “Vou Levar Somente o Que Couber no Bolso e no Coração… Uma Viagem de Sabedoria Além da Imaginação”

Compositores: Renatinho do Batuque, Júnior Pitbull, Jack Topete, Jorge Maia, Gil Lessa, Rafael Lima, Cláudio Brow, Henrique Negão, André Félix, Roninho Remandiola, Tatiane Abrantes, Preguinho Santa Cruz, Zé Luiz, Cláudio Russo, Fernando de Lima, Zé Glória e Marquinhos Beija-Flor.

Intérpretes: Carlinhos Pavarotti e Gabby Moura.

A Acadêmicos de Santa Cruz, a exemplo da União do Parque Curicica, apostou em uma junção de dois sambas para formar o seu hino para o desfile de 2017. Por ser uma fusão mais simples (aproveitou-se apenas o refrão principal de um dos sambas), o resultado também foi bem mais satisfatório melodicamente, de modo que a obra não apresenta rupturas muito nítidas. Quem não acompanhou o processo de escolha não deve ser capaz de notar a junção, o que de certa forma é raro quando se usa desse tipo de artifício. Porém, apesar desse mérito, o samba como um todo deixa muito a desejar e desponta como um dos piores que passarão pela Marquês de Sapucaí neste Carnaval. Apesar da melodia agradável em vários momentos, a letra chama atenção negativamente pela pobreza. Além disso, nada na obra parece novo. Tudo parece um recorte de muitos e muitos sambas que já passaram pela Avenida.

A falta de cuidado com o sentido da letra já fica evidente nos primeiros versos do refrão principal: “Só vou levar na minha emoção / O que cabe no bolso e no meu coração”. Para encontrar a rima com “coração”, o uso da palavra “emoção” quebrou completamente o sentido dos versos. Como se leva alguma coisa na emoção (-0,1 em letra)? Por falar em rima, a sequência de três palavras terminadas em “ão” (“emoção”, “coração” e “paixão” fez com que a melodia ficasse travada (-0,1 em melodia). O próprio verso “Nossa Escola é paixão, verdadeira raiz!” incomoda pela falta de criatividade (-0,1 em letra). O “É verde e branco, um final feliz!” também não é exatamente inédito, mas dá para relevar porque faz sentido dentro da proposta do enredo. No geral, gosto da melodia “pra cima”.

A letra apresenta bem o enredo nos sete primeiros versos da primeira estrofe. É bem verdade que não há nenhum verso muito inspirado, nem mesmo uma sacada brilhante ou surpreendente, mas a letra é correta. A melodia também é bastante correta e se desenrola sem atropelos ou variações incômodas de tonalidade. Tem até um pequeno momento de inspiração no verso “Enfrentou e venceu Karabá”. No entanto, a transição para o verso seguinte, “Onde nasce a fantasia”, não foi muito bem resolvida (-0,1 em melodia). Ali sim há uma mudança de tom estranha. É até curioso: nessa passagem o samba parece mais ser fruto de uma junção do que no trecho em que de fato é.

A propósito, esse é outro momento onde a letra se mostra extremamente confusa: “Onde nasce a fantasia / Contos de raro esplendor / Há uma luz de esperança / Brilhando no olhar do escritor”. Os dois primeiros versos não tem nada a ver com os dois últimos e, assim, as duas passagens ficam sem sentido. Até é possível interpretar que a luz de esperança está onde nasce a fantasia, mas, nesse caso, o correto seria “nascem”, pois aí nasceriam ali a fantasia e os contos de raro esplendor (-0,1 em letra).

O melhor momento do samba, sobretudo em termos de melodia, é o começo refrão do meio. A passagem “Vibrante alegria / Gigante aventura” é muito animada e chega até a ser contagiante. Depois, no entanto, o samba volta a repetir dois erros muito comuns: na melodia, uma transição muito ruim para uma célula melódica que é muito diferente no verso “Era uma vez na ilusão”, de modo que a estrofe parece se dividir em duas (-0,1 em melodia); na letra, a falta de concordância na passagem “A princesa e o dragão / No encontro da leitura”, já que, para que houvesse um sentido claro, o correto seria “ao encontro” (-0,1 em letra). No geral, contudo, a estrofe agrada e até dá um certo fôlego para um samba que no final da estrofe anterior parece condenado ao arrastamento. Lembra um pouco os primeiros sambas a apostar na fórmula “12 versos-refrão de quatro-12 versos-refrão de quatro”, lá na “década perdida” do gênero, onde os refrãos servem para aumentar a força da escola e as estrofes intermediárias para um certo descanso.

A terceira estrofe começa de maneira bem parecida com a primeira: melodia correta, sem atropelos, e letra apenas descritiva, com um leve brilho no verso “Guardar a herança em cada lição”. No entanto, o samba “afunda” melodicamente na passagem “A literatura infantil / Enriquece meu Brasil”. No primeiro verso dá até a impressão de que o samba vai explodir, o que acaba não se confirmando no segundo, quando a queda rítmica é muito brusca (-0,1 em melodia). Gosto bastante dos desenhos musicais da passagem “Vem conhecer meu castelo / No sonho mais belo / Que a inocência traduz”, mas acho que a rima de “Monteiro Lobato” com “de fato” nos dois versos seguintes sintetiza a falta de criatividade da letra como um todo (-0,1 em letra). Elogio apenas a subida de tom muito bem costurada do “Ilumina Santa Cruz”, que leva com muita competência ao refrão principal.

Carlinhos Pavarotti e Gabby Moura se mostraram bastante entrosados. O timbre dos dois combina (fazem o estilo “vozeirão”) e a dupla valorizou a melodia da obra. É o destaque da faixa.

Letra do samba: 4,5. Melodia: 4,6. Nota: 9,1.

Amanhã, a análise dos sambas do segundo dia de desfiles.

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8 Replies to “Análise: Os sambas-enredo da Série A 2017 – Parte I”

  1. Com esse 9.3 para a Estácio duvido alguém reclamar que eu atribuí 9.5 para o mesmo samba, rs

    Muito boa a análise, mas discordo em muitos pontos: 9.3 pro Imperinho eu achei um tanto que exagerado, o mesmo digo do 9.6 da Viradouro. Mas cada um com seu ponto de vista, né?

    Em tempo: em quantos minutos essa análise vai parar no Espaço Aberto? rs

      1. Espero que dessa vez coloquem o autor certo rs

        E 9,3 pro samba da Estácio é exagero. A composição tem deficiências, mas não é para tanto. 9,6 tava de bom tamanho.

  2. Discordo do 9.3 dado a Estácio, mesmo que tenha falhas na letra a melodia é espetacular e promete empolgar muito na Sapucaí.Império da Tijuca também tem um belo samba e foi muito malhada nessa analise. Para ambas,9.7; Mas o melhor da primeira noite, sem dúvida é o da Viradouro. Abraço a todos do Ouro de Tolo.

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