Nesta sexta a coluna do advogado Rodrigo Salomão retoma o tema do elitismo e da exclusão social, sob o ângulo jurídico.

Nós vamos invadir sua praia

Com um misto de pesar e indignação, temos visto nos últimos dias a volta de uma prática criminosa recorrente no Rio de Janeiro nos anos 90: os arrastões. Obviamente, é algo a se lamentar e que causa muita preocupação a toda população. Isso é indiscutível.

Assim, duas situações causaram certa polêmica na última semana e que, apesar de não estarem diretamente ligadas, na realidade fazem parte do mesmo contexto conceitual de compreensão sobre a desigualdade tão presente no cotidiano carioca.

A primeira e mais grave polêmica se deu por conta das medidas que a polícia militar do estado do Rio de Janeiro resolveu tomar por conta dos recentes arrastões.

Repetindo a arbitrariedade inconstitucional do passado, a PM vem trilhando pelo caminho mais desigual possível: revistar pessoas em ônibus que originalmente saem da periferia e do subúrbio com destino à Zona Sul (para o leitor de fora do Rio, é considerada a área nobre da cidade).

O procedimento corre mais ou menos assim: vistoriam os pertences de quem vem e, ao final, se a pessoa por acaso não tiver dinheiro suficiente para voltar é “convidada a se retirar” do ônibus. O objetivo, dizem, é “cortar o mal pela raiz”. Só que nem eles sabem direito de onde vem o mal.

Parece uma medida preconceituosa. E é.

Para se ter uma ideia, uma rápida leitura da Constituição já nos traz a informação de que esse tipo de revista é completamente fora da lei. Diz ela, para ficar apenas num exemplo: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”.

Passada a limpo a medida absurda anterior, agora tratemos do outro assunto que causou certo burburinho nas redes sociais (em menor escala que o outro, mas não deixa de ser alarmante). Uma senhora afirmou, com todas as letras, o seguinte:

“A prefeitura do Rio decretou a morte de Ipanema e Leblon nos fins de semana e feriados. Não dá mais para os moradores, que pagam os maiores IPTU’s do país saírem às ruas ou irem à praia em paz. O cenário é aterrador. Sem nenhum preconceito, não é possível ônibus a cada 15 minutos para o Morro do Alemão. Podem marcar o enterro!”

O comentário acima foi apagado, muito provavelmente pela repercussão que teve. Porém, até o último momento em que vi, já havia sido compartilhada 38 vezes, com 45 curtidas e 13 comentários. Para uma pessoa comum, números consideráveis.

Interessante que a sua postagem tem vários trechos que podem ser explorados e que demorariam dias para ser completamente analisados. Não que a frase da moça seja complexa. Nada disso. Mas é que é tão absurdamente cheia de retalhos que o universo a ser explorado é enorme. Vou me ater a alguns principais pontos apenas. O restante, inclusive de modo muito completo, está bem elucidado pelo meu colega de Ouro de Tolo, o Gustavo Cardoso.

Assim, tomando como ponto de referência o que foi dito acima e a conduta da PM apresentada no início desse texto, é curioso notar como, no fim das contas, quando há algum caos a culpa é sempre do lado mais fraco. Do pobre. Aquele que não pode mais ir à praia sem desconfiança e não pode sequer transitar pelo Leblon. Flagrante, portanto, a sua limitação de seu “ir e vir”.

Esse direito, na verdade, tecnicamente falando é o que chamamos de direito de locomoção. Assim diz a Constituição (sempre ela), em seus direitos e garantias fundamentais: “XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;”.

Inequívoco, portanto, que qualquer pessoa pode ir até o bairro que quiser. Se tal bairro vai ficar cheio ou se a praia ficará cheia, paciência, a cidade é tão sua quanto a do suburbano que, além de chegar ao seu bairro cheio, pega horas de ônibus lotado porque no bairro “vazio” dele não tem uma opção de lazer sequer. Por que a morte do Rio de Janeiro só é decretada com algum indício de caos na Zona Sul e não o contrário?

Outro fator interessante a ser observado é aquilo que falamos lá atrás, quanto ao argumento “IPTU mais caro do Brasil”. Em ambos os casos, a sensação passada é a de que cada vez mais estamos esquecendo de que vivemos em sociedade. É frequente esquecer que, nessa vida, nós sempre estaremos algo, não seremos nada para sempre. Um dia o sertão pode virar mar. O IPTU que é pago tem viés meramente fiscal. O dinheiro (em tese) é pago ao Município para que este tenha recursos e invista no bairro e na cidade como um todo. Isso não inclui construção de cercas. Nem de muros.

Você paga o IPTU por morar num determinado bairro, mas ele não é só seu. Aliás, ele não é quase nada seu. Ele é da sociedade como um todo. Ali pode andar. Pode ter metrô. E (pasmem!) pode vir gente do morro para servir o seu café. Sou tão dono do Leblon quanto qualquer morador do bairro. Assim como o sou da Rocinha. Todos somos. Qualquer um pode transitar livremente por todos os lugares públicos. Quer dizer, em tese pode. Tese essa que o próprio poder público e alguns cidadãos vêm rechaçando com grande vontade de sair rasgando a lei.

Infelizmente, apesar de ser algo tão expresso na Constituição Federal, não há nada mais concreto, depois do que vimos nessa semana, do que o muro social que separa a nossa cidade.

Quando é que a nossa guerra fria acabará para quebrá-lo de vez?